terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Spes Non Confundit


Spes non Confundit 

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A esperança não decepciona” (Rm 5,5). Foi com esse pensamento da Carta de São Paulo aos Romanos, que há exatos 17 anos, eu subi ao Altar do Senhor para ser ordenado sacerdote e, depois, também subi ao Altar do Senhor para rezar a minha primeira missa. O frescor daqueles dias que antecedem e seguem os dias da ordenação ficam, de tal maneira impregnado na alma sacerdotal, que jamais ele se esquecerá da sensação de graça que o invadiu naquele dia para a vida toda. Era o dia 21 de janeiro de 1998, quando a Igreja celebra o Martírio de Santa Inês, na cidade de Carira, no interior do Estado de Sergipe. Coincidentemente, era um dia de quarta-feira como, agora, em 2015. 

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São Paulo tem consciência plena da verdade que ele deixou se sedimentar no fundo de sua alma e de seu espírito. E foi por causa dessa convicção que ele se “deixou ferir” (Bento XVI) pelo Cristo depois de sua conversão. Por conseguinte, também nós podemos caminhar sob a lucidez serena da certeza de que essa palavra serve para todos nós, e de modo mais especial ainda para os seus sacerdotes. Do ponto de vista da espiritualidade, trata-se de uma palavra que alimenta a fé inquebrantável dos cristãos, dos seguidores de Jesus pelos séculos afora. De fato, Cristo, a nossa “Esperança” encarnada, jamais poderá nos decepcionar. Quem nunca sentiu na pele o significado, mesmo se superficial no bojo do vocabulário português, da “decepção”, que “surpreende”, “desagradavelmente”, que “desaponta” no interior do coração humano as estruturas das convicções mais profundas? A decepção traz consigo o sabor amargo da traição, da indiferença, do desamor, do desafeto, enfim, de realidades que machucam a alma e expõem o espírito ao vendaval da insegurança. Jesus jamais poderia fazer com que experimentos em relação à Sua pessoa esse “desgosto afetivo” ou até mesmo espiritual. A decepção nos coloca em situação de embaraço, de vergonha, de frustração, que quebra o entusiasmo da confiança e nos deixa prostrados. Por Ele, podemos até perder a vida, e a perdemos, mas nunca ficaremos desapontados pela fidelidade incondicional de suas promessas. 

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Celebrando esse dia, fico pensamento na grandeza do mistério profundo da vida sacerdotal, mistério que nos envolve e nos ultrapassa. Quem é verdadeiramente digno do mistério depositado em “vasos de argila”, como é a nossa humanidade, tão frágil quanto uma folha seca carregada pelo vento, mas tão preciosa aos olhos do Senhor, que não escolheu os anjos para serem os seus sacerdotes! Inaudito mistério! A Carta aos Hebreus nos lembra de que “ninguém se arvorei atribuindo a si mesmo essa honra, senão aquele que foi chamado por Deus” (Hb 5,4). Com efeito, “tirado do meio dos homens, ele é estabelecido [por Deus] para intervir em favor dos homens em suas relações com Deus, a fim de oferecer dons e sacrifícios pelos pecados” (Hb 5,1). Não obstante o convite pessoal do Senhor feito aos homens para o sacerdócio – que nada mais é do que uma participação na essência sublime de seu Eterno Sacerdócio – permanecemos naquela zona de mistério que nos torna, por nós mesmos, “inaptos” [São João Paulo II falou de “inaptidão”] para tão grande dádiva divina. No entanto, tudo acontece por obra e graça do próprio Senhor que “participou da mesma condição [humana], para assim destruir, com a sua morte, aquele que tinha o poder da morte, isto é, o diabo, e libertar os que por medo da morte, estavam a vida toda sujeitos à escravidão. Pois, afinal, não veio ocupar-se com os anjos, mas com a descendência de Abraão. Por isso devia fazer-se em tudo semelhante aos irmãos, para se tornar um sumo-sacerdote misericordioso e digno de confiança nas coisas referentes a Deus, a fim de expiar os pecados do povo” (Hb 2,14-17). 

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Tantas coisas boas e extraordinárias acontecem na vida do sacerdote por conta da riqueza do ministério que ele carrega consigo, agindo “in persona Christi” – agindo na Pessoa de Cristo – como diz o Concílio Vaticano II. Alegrias e tristezas, desalentos próprios dos desânimos humanos; incompreensões, maledicências, solidão e desprezo, lágrimas derramadas no canteiro da indiferença sofrida pelo desamor provocante de pessoas que gostariam de encontrar no sacerdote todas as conveniências para seus caprichos pessoais, longe daquilo que é o sentido profundo da Igreja ou da vivência eclesial que nos coloca em sintonia com o mistério mais profundo de sua realidade presente no meio de nós, como nos mistérios dos sacramentos que realizamos, sobretudo, do Sacramento da Eucaristia. Mas também tantas outras realidades de enriquecimento espiritual e catequético, doutrinal, para os irmãos, por meio de atitudes de acolhimento que ficam escondidas no tempo interior de cada um que dele se aproximou para ser ouvido e ouvir. Quanta graça por poder estar perto das pessoas pelas confidências derramadas diante do sacerdote. Às vezes, a vida sacerdotal parece tão mergulhada na secura e na aridez espiritual, que quase somos tentados a imaginar que temos a vida derramada no nada, no vazio, no despojamento radical de si mesmo, até por falta de sentido ou de motivações interiores para perceber que esse mistério é superior a nós mesmos. Nada somos além de “servos inúteis”, que só fazem o que mandam fazer, sem coragem ou determinação segura para os passos mais ousados no caminho da consagração. Somos o que somos, e nada mais. Muitas vezes, diminuídos pela grandeza do mistério que nos abraça, somos vistos com desconfiança, desprezo e indiferença. Todavia, no fundo do coração sacerdotal, da alma de cada sacerdote, na dimensão mais profunda e recôndita da consciência dos princípios pelos quais resolvemos entregar a vida inteira, há uma razão superior, talvez, inconsciente, pela qual decidimos arriscar tudo e a vida toda. Essa “razão superior” tem nome: JESUS CRISTO. Não somos os mais santos nem os mais amados ou apreciados pelas vantagens que o mundo poderia nos oferecer, mas fomos os “escolhidos” e, assim, queremos viver e morrer, levando pelo tempo afora a missão que o Senhor nos confiou, por meio da Igreja sob a autoridade do Papa e dos bispos. 

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Por tudo isso – e por todas as pessoas que o bondoso Senhor colocou no meu caminho, começando pela família na qual nasci e pelas que encontrei por onde passei exercendo o ministério sacerdotal – hoje, o meu coração é todo gratidão ao Bom Deus pelo dom da vocação sacerdotal que despontou no meu ser desde tenra idade. Gratidão por tudo aquilo que por meio dela o Senhor pôde me conceder através da formação que recebi e recebo de sua Igreja. Na verdade, a Cristo e à sua Igreja eu devo tudo o que tenho e sou. A Ele, o louvor e a glória pelos séculos sem fim. Que Santa Inês, madrinha espiritual de meu sacerdócio, conceda-me a graça de permanecer fiel até o fim no ministério que o Senhor me confiou. Santa Maria, Mãe dos Sacerdotes de Cristo, rogai por nós. Amém! Jerusalém, 21 de janeiro de 2015, quinto aniversário de ordenação sacerdotal que celebro fora do Brasil.







domingo, 18 de janeiro de 2015

Prosas de um sábio professor



Prosas de um sábio professor


Referindo-me a Dom Luciano Duarte, lembro-me de que, naquele ano de 1987, a Conferência Episcopal dos Bispos do Brasil, havia decidido a instituição do chamado “ano propedêutico”, visando uma melhor preparação intelectual dos candidatos ao sacerdócio, antes de ingressarem nos estudos científicos do, então, dito “Segundo Grau”. A inferência dessa inovação foi fruto da constatação do baixo nível de rendimento escolar dos vocacionados que entravam no Seminário – espero que, hoje, eles tenham melhorado nesse aspecto. Éramos considerados “tábula rasa”, alunos de precária escolaridade, de uma memória limpa como uma “página branca”, como árvores secas e sem os devidos frutos da maturação sistemática do saber. Consequentemente, num esforço ininterrupto de remediar a situação, foram convidados por Dom Luciano professores de refinadas condições intelectuais, alguns dos quais com especialização feita na Europa, como, por exemplo, na França, na Itália, na Alemanha e em Portugal, para nos ajudarem no aprofundamento dos vários ramos do conhecimento. Durante esse ano de parada obrigatória, estudamos Latim, Francês, Português, História da Igreja, Bíblia, Espiritualidade e História do Brasil. Faltou o ensino de matemática, química e física, tão exigentes como foram no ano seguinte no Colégio Arquidiocesano de Aracaju. Todas as aulas eram ministradas no recinto do próprio Seminário. Embora a insistência no aspecto da intelectualidade parecesse frenética e delirante, divertíamo-nos bastante, sobretudo, quando Dom Luciano dizia ao Reitor que, no final do ano, quem não estivesse “trêmulo” de tanto estudar, deveria ser mandado embora. E ele mesmo se encarregaria de fazer o teste no encerramento do ano letivo, solicitando que os seminaristas estendessem os braços. Tudo não passava de um feliz e oportuno expediente recreativo, no tom brincalhão e solene com que ele falava de coisas sérias, como, por exemplo, a importância de estudar, e estudar muito. Claro que a experiência nunca foi feita, mas tenho certeza de que, no ímpeto involuntário de apenas imaginar a concretude do ato, todos seríamos, incondicionalmente, aprovados, pois, diante dele, a tremedeira era uma convulsão tão desintencional quanto indomável como a de quem já se assustou quando surpreendido com a presença de uma serpente agitando-se em seu derredor. Tranquilizar-se, de imediato, mesmo depois do desaparecimento do anfíbio, parece-me impossível. Ainda mais, quando ele fazia as sabatinas repentinas com perguntas para as quais nunca conseguíamos “adivinhar” as respostas. Realmente, diante do estágio da dormência cognoscitiva em que vivíamos, tinha de ser um suado vaticínio, sem sucesso de coincidência com a expectativa da réplica. O saber não é uma adivinhação. O saber é uma conquista exigente e imperativa pela qual temos de “queimar as pestanas”, como ele recordava. Mas, se alguém respondesse bem, era notável sua satisfação, enquanto o elogio era direcionado ao professor da disciplina: “Quando encontrar o seu professor de geografia, diga-lhe que o parabenizo!” – Era, implacavelmente, virulento e terrível! Seu otimismo era tal que, um dia, ele levou ao Seminário cinco Códigos do Direito Canônico, em latim, a fim de que aprendêssemos a língua, lendo-os. Outra vez, obrigou-nos a decorar todo o Evangelho de Marcos: começo, meio e fim; onde começa e onde termina cada parte, capítulo e versículo; personagens, onde Jesus se encontrava, se no Norte ou no Sul... “Na próxima semana, eu quero tudo isto na ponta da língua”. Ficamos aflitos e fizemos o possível para a memorização, mas ele, graças a Deus, nunca mais tocou no assunto. Creio que, a longo prazo, seu intento não foi debalde. Enquanto outros tentavam incutir ou impor nos seminaristas a insegurança da própria mediocridade, como muitos ainda hoje fazem no seio da Igreja, talvez, por preguiça ou incapacidade de elevação ou ascensão aos páramos mais altos da autoformação, era como se ele desejasse ver reverberando nos futuros sacerdotes o reflexo límpido de sua luminosa “sabedoria acumulada”. Quantos não nos sentíamos motivados à leitura, à investigação curiosa, qual cultores do patrimônio da arte da informação, ao acesso sólido das fontes do saber? Assim, de maneira magistral e empolgante, tentava despertar-nos da hibernação da ignorância, quase invencível, e do entorpecimento letárgico da nossa falta de instrução. Do bojo de suas comparações riscadas a fogo, saiu uma sobre a lentidão da faculdade de aprender, e dizia: “A inteligência humana é como uma carroça de burro puxada por um burro bem velho [...]”. Santo Agostinho já dizia que a “ignorância é a mãe da admiração”, e esta, a admiração, era a única reação segura, não constrangida, de nossos olhos absortos na procedência irrefreável da nascente cuja bela linguagem se derramava. Foi um tempo bom e muito rico de tantos ensinamentos. Sua presença entre nós trazia-nos um oásis à secura sufocante dos dias lentos do Seminário, quebrando a monotonia lassa que a rotina tediosa nos impunha. Agradeço que ele tenha tentado tirar-nos do sono e da inércia da acomodação passiva da inteligência para nos ajudar na aquisição progressiva da criatividade em busca do crescimento intelectivo. Eis por que, entre outras motivações, julgo que ele não merece ser esquecido e manifesto, tempestivamente, a gratidão solícita de sua memória.
As visitas ao Seminário Menor aconteciam, catolicamente, toda semana. Quem não se lembra das buzinadas prolongadas, quando chegava, e estávamos na dispersão da ansiedade e da aceleração desregulada, quando saía? Ao ouvirmos o barulho, a correria era certa, cada um procurando uma cadeira, não muito à frente, por causa das perguntas surgidas ao acaso e que ele as desferia aleatoriamente: “Você, o que significa [...]?” Naquela hora, vinha um “branco” à mente, que a nossa família não merecia. Todavia, dele recebíamos formação cultural sobre múltiplos assuntos, e tudo era embalado pela hilariante descontração, ou seja, que no meio da exposição narrativa de seus discursos, sempre havia uma luz acesa e projetada para o lado humorístico e cômico de alguma provocante e sábia digressão. Para clarear um pouco essa ideia, gostaria de ilustrar determinadas situações com as quais nos entretínhamos com muitas risadas. Quando alguma coisa não andava bem, uma de suas reações, mais ou menos irrefletidas, era a de bater a mão direita na testa e gritar: “Pelo amor de Deus!” Ao mesmo tempo, manifestava a dúvida em relação à nossa capacidade de discernimento entre o que era realmente sério e o que era simplesmente a oportunidade de um desvio relaxante para, depois, retomar o caminho normal da seriedade da argumentação. Essa inquietação provinha de um fato que ele nos contou, mais ou menos, com estas palavras: “Que não aconteça com vocês o que se sucedeu a uma freira. Eu estava fazendo uma palestra para as freiras e, à certa altura, eu me saí com esta: a situação financeira da Arquidiocese não vai muito bem. Hoje, parece que virou moda assalto a bancos e é, justamente, o que eu estou pensando em fazer, e, como vocês sabem, sempre está presente uma loura que ajuda os assaltantes. Então, vou convidar uma freira loura, sem hábito – era o tempo em que elas eram “habitadas” –, para me ajudar e, também, vamos levar o Pe. Osvaldo, que tinha sofrido um derrame cerebral e estava paralítico. Ao término da conferência, uma freira me procurou meio aflita: ‘Dom Luciano, é verdade que o senhor tem coragem de assaltar um banco?’” Ao que ele respondeu: “Irmã, pelo amor de Deus! Tenha juízo, coloque a cabeça no lugar. Não sabe que eu não iria assaltar um banco! Ainda mais, além de carregar o saco de dinheiro, tínhamos de transportar o Pe. Osvaldo nas costas!”
Rir com gracejos arrancados de sua criatividade era uma maneira de ajudar-nos a ver a vida com um pouco mais de espontaneidade e menos rigor pelas contrariedades que ela nos apresenta.