Trilogia Judaica – Cantos do Gueto (Sarah Gorby)
(Dos Arquivos do então Instituto Dom Luciano Duarte)
Para fazer memória do dia em que Dom Luciano
Duarte comemoraria 76 anos de ministério sacerdotal (18 de aneiro de 1948),
gostaria de apresentar-lhe a “Trilogia judaica – cantos do gueto”, a que fui
convidado a analisar quando ainda existia o Instituto Dom Luciano Duarte. Isso também
fez parte do patrimônio cultural da personalidade de quem, por sinal, dentro de
um ano, estaremos celebrando o centenário de seu nascimento (1925-2025). Portanto,
ei-lo:
O universo cultural do homem sempre atravessa
as fronteiras de suas percepções e sensibilidades, sobretudo quando ele está
voluntariamente devotado ao enriquecimento das apreensões elásticas do saber
erudito. Sem sombra de dúvidas, isso poderia ser dito sobre Dom Luciano José
Cabral Duarte que nunca se deixou vencer pelas fatigas acadêmicas, por mais que
as gavetas de seu espírito já estivessem ocupadas. Ainda bem que o conhecimento
não ocupa lugar na inteligência como poderia acontecer com os bens materiais
que acumulamos nas gavetas e dos quais, vez por outra, temos de nos desfazer!
Mas isso é privilégio do homo sapiens
que, pela artimanha da intelecção, projeta dentro de si o mundo exterior,
maravilhando-se, assim, pelo fascínio das possiblidades de suas descobertas.
Convidado para analisar o conteúdo da Trilogia
Judaica, que envolve Cantos do Gueto,
Cânticos dos cânticos e Cantos judaico-espanhóis do século XVI,
embalados pela voz cândida e solene de Sarah Gorby, o contexto histórico por si
mesmo fala profundamente de um tempo em que os judeus viviam a experiência
dolorosa de mais uma diáspora. Com efeito, é isso mesmo que o canto reflete no
conteúdo doloroso de pais e mães que sofrem a tristeza do distanciamento dos
filhos pela covardia da brutalidade humana com que são perseguidos, torturados,
psicológica e espiritualmente, nas dobras mais recônditas e profundas da alma
que silencia o grito sufocante do desespero.
Marcadamente o fato histórico de 1942, quando
os judeus foram expulsos da Espanha, encheu de angústia e lágrimas a vida de
muitos espanhóis dessa etnia, como tantas outras vicissitudes o fizeram ao
longo dos séculos, o que se estendeu também pelo século XVI e até os nossos
dias. Certamente, temos de recorrer a alguns dados históricos se quisermos
adentrar no âmbito da situação judaica, especialmente do conhecido mundo sefardita, isto é, de toda a conjuntura
que concerne aos judeus da Espanha. Segundo o Dicionário Enciclopédico do Judaísmo, em nossos dias, o judaísmo
compreende dois componentes principais: o asquenaze
e o sefardita. Os sefarditas deveriam
tirar o seu nome do país onde viveram seus ancestrais na Idade Média, de modo
que o termo sefardita designa tradicionalmente
a Espanha. Trata-se, na verdade, de um hápax
da Bíblia (palavra que aparece apenas uma vez), citado no livro de
Abdias (v.20), que anuncia que os “exilados de Jerusalém, que estão em Safarad,
tomarão posse das cidades do Negueb”. Portanto, para a crítica bíblica, esse
topônimo se aplica, então, à cidade de Sardes na Ásia Menor, e os primeiros
comentadores judeus se tornaram Safarad pela Espanha. Em 1917, sob o mandato
britânico, estabeleceu-se a dualidade rabínica (ritual ou litúrgica)
Asquenaze-Sefardita, de modo que todos aqueles que pela filiação não eram
asquenazes pertenciam ao grupo dos sefarditas. Mais tarde, no encontro
acontecido em Amsterdam, organizado de 14 a 17 de 1971 pela Federação Sefardita
Mundial, tomou-se para si o pragmatismo israelense que apregoava a declaração
de Élie Éliyachar: “Chamo Sefardim
(plural hebraico de sefardita) todos aqueles que não são Asquenazim (plural hebraico de asquenaze)”. (W., Geoffrey et al, 1996, p.
1234). Quanto a esse último nome, também julgo necessário algum esclarecimento
para os que não estão muito afeitos a tal terminologia. O dicionário Aurélio
afirma: “Do hebr. ashquenazi, do top. bíblico Ashkenaz,
posteriormente atribuído à Alemanha medieval.]”; e ainda: “Relativo a, ou
próprio dos asquenazes, ou do judaísmo da Europa central e oriental”. Portanto,
sem maiores detalhes, pois a intenção é a de tão somente situar a compreensão
do leitor, esse grupo surge das numerosas comunidades originadas da Polônia, da
Alemanha, da Holanda, da Áustria, da Tchecoslováquia, da Iugoslávia e da
Grécia, entre outros países como o bloco da União Soviética (antiga), Romênia e
Hungria. (W., Geoffrey et al,
1996, p. 1339). Voltando à conjuntura sefardita, que é a que nos interessa no
momento, as mudanças comerciais, demográficas e culturais que sempre
aconteceram antes e depois da expulsão dos judeus da Espanha, vividas entre as
comunidades judaicas da bacia do Mediterrâneo permitem falar de “sefardização”
e de “região sefardita”.
Já na Idade Média, mesmo que a civilização
sefardita seja diferente daquela dos Judeus da Europa do Norte, ela está muito
próxima dos Judeus da África do Norte e do Oriente, de modo que existe uma
espécie de civilização comum a todas as comunidades judaicas. (W., Geoffrey et al, 1996, p.
1234). Consequentemente, esse mosaico de considerações apresentado teve por
objetivo contextualizar melhor o sentido e a compreensão da Trilogia judaica
ensaiada por Sarah Gorby. Nascida no ano de 1900, em Chisinau, capital, a maior e mais
importante cidade da Moldávia, sua voz imortalizou “Les inoubliables chants du Ghetto”, um álbum musical lançado em
1976.
Perlustrando o conteúdo das músicas traduzidas
para o português com títulos em espanhol e outras línguas, graças ao pequeno,
mas significativo acervo adquirido por Dom Luciano Duarte, podemos intuir a
grandeza da experiência transmitida pela voz de Sarah Gorby em tempos difíceis para
os membros da comunidade judaica. Mas antes de adentrarmos em terras mais
profundas da linguística judaica de cantos de sofrimento e de esperança, de
contratempos e de arroubos de entusiasmo em meio às intempéries circunstanciais
dos ventos poéticos, precisamos entender melhor o sentido do “gueto”, dentro do
contexto da sinfonia histórica que, de algum modo, restringiu os judeus no
círculo da persecução que os encerrou nos limites de seus próprios sonhos de
realização e conquistas enquanto povo. Tudo isso vivido como fruto de barbáries
que sempre fizeram diminuir a dignidade de culturas, civilizações e povos,
esmagando a carne humana sob o véu de ideologias e crenças não salutares, mas
perniciosas e, às vezes, extremamente nocivas à humanidade inteira. No
Dicionário Aurélio, uma das definições apresentadas para gueto é a seguinte:
“Bairro onde os judeus eram forçados a morar, em certas cidades europeias”. Um
sítio da internet (http://www.superinteressante.pt/index.php?option...)
apresenta a etimologia do termo: “Um gueto é uma área separada e habitada por
um grupo étnico, cultural ou religioso, voluntária ou involuntariamente, em
maior ou menor reclusão. O termo referia-se originalmente às judiarias e
aplica-se, hoje, a qualquer zona que concentre um determinado grupo social.
Provém da palavra do dialeto veneziano ghetto
(fundição de ferro), devido à fábrica que existia no bairro onde foram
confinados os judeus de Veneza, em 1516. De noite, o acesso ao gueto, situado
numa das ilhotas da cidade e rodeado de canais, permanecia fechado”. Ou seja,
na essência da significação atribuída ao vocábulo, trata-se de pessoas
segregadas por circunstâncias variadas em relação ao contexto social em que
vivem ou são obrigadas a viver.
No contexto das letras cantadas por Sarah
Gorby, encontramos expressões e conteúdos tais como: “Nossa aldeia está em
chamas e vocês ficam indiferentes, de braços cruzados? Nossa aldeia está
ardendo, o vento penetra por todos os lados, ululando e tudo destrói. A
salvação está nas mãos de vocês...”; “Chove no verão e cai neve no inverno. Vou
andando sozinha, caminhando infeliz, sem destino... Todos os meus entes
queridos desapareceram, mortos por forças demoníacas... e após tanto
sofrimento, tantos horrores, após tudo isso... ainda devo fugir da Polônia”;
“Quando te aproximares, todas as portas hão de fechar-se diante de ti. No lugar
em que passares um dia, não poderás passar outro. Fecha teus olhos... Vai,
procura uma rocha escarpada, senta-te e, sozinho, golpeia o peito com teus
punhos... Raquel virá então te acompanhar em tuas lamentações...”; “Multidões expulsas
de seus lares vão se arrastando através de campos poeirentos e manchados de
sangue. Com o coração humilhado e os olhos repletos de angústia, as mães
estreitam os filhos contra o peito... Mães aniquiladas pela dor e pais
extenuados pelo sofrimento, curvados sobe o peso de uma tristeza infinita...
Eles vão caminhando para a morte”; “Dorme, criança... Noite e chuva, noite e
vento... Por caminhos encharcados, famintos como cães, espancados como cães,
caminham eles... Dorme, criança, dorme. Para aonde vão? Só a noite sabe, só o
vento sabe, pois ouviram os seus soluços e gritos lancinantes. Como colunas de
sombras, vão andando. Dorme, filho querido, dorme. Noite e chuva... noite e
vento...”; “Os incêndios foram apagados; contudo, o fogo que brota do meu coração
ficará sempre aceso. A provação dolorosa que sofreu nosso povo dispersou pelo
mundo os melhores de cada geração... As gerações perderam o orgulho e a
alegria. Todavia, a guerra acabou”; “Não digas nunca que o caminho que
percorres é o último porque pesadas nuvens o encobrem: o dia chegará e também a
hora esperada. Hás de escutar nossos passos. Já estamos aqui! O sol da aurora
iluminará nosso caminho. Os dias negros do passado desaparecerão com o inimigo.
Nosso canto será entoado por todas as bocas; por isso, não digas jamais que é a
tua última jornada...”.
Na verdade, os textos acima citados refletem, de maneira singular e profunda, a experiência inaudita de um povo que sempre carregou sobre os ombros da existência a estranha sina da perseguição, da depreciação, da violência mesmo. E nenhuma luz dialética jamais será suficientemente bem apresentada ou projetada sobre ele, de modo a iluminar os pontos obscuros de sua própria história. (Pe. Gilvan Rodrigues dos Santos, da Arquidiocese de Aracaju. Escritor e Advogado).