segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Estresse informativo ou fastio webiano?


Estresse Informativo ou fastio webiano?

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Na era digital, com o avanço galopante da tecnologia moderna, vivemos verdadeiro tsunami de informações instantâneas, que estão assoberbando nossa capacidade de apreensão e triagem em relação ao que ler ou acolher como relevante. São tempos de estresse informativo, com acentuada dependência tecnológica digital. E, então, basta um apagão momentâneo do efeito dos aplicativos, e o caos se instala dentro no circuito da nossa maníaco-compulsão interativa nas redes sociais.
Senhoras do cotidiano, as informações chegam instantaneamente, varrendo o controle e o equilíbrio da curiosidade. Paramos tudo e nos voltamos aos imperativos das máquinas ao alcance da mão. Perdemos a concentração, nos dispersamos na atenção ao essencial, e corremos, infrenes, pressurosos, na aceleração pisada pelas novidades. Saímos do eixo gravitacional de nós mesmos, de nossa substância, das motivações mais sublimes de nossa própria identidade, abraçada pela convivência. Fugimos do âmago fundamental do que somos e permanecemos à superfície das frivolidades do inconsciente.
Em algumas postagens, percebemos repetições irrefletidas de pensamentos alheios, e nem paramos para refletir se são verdadeiros, se valem a pena ser “copiados” e “colados”. Quando não plagiamos, cinicamente, as ideias os outros. Simplesmente, reproduzimos a intenção malevolente de terceiros e não ponderamos a importância, ou não, do conteúdo ali depositados. Somos vorazes na repetição do que os outros querem nos fazer ver, sem a possibilidade da discussão dialética de sua veracidade. Desse modo, acabamos nos tornando reprodutores mecânicos, autômatos da inspiração alienígena.
A tecnologia está nos emburrecendo! Pensemos, por exemplo, nos números de telefones que guardamos na memória! Fiquei assustado! Não consegui lembrar nem dez números. Antigamente, o gesto repetivo de pressionar a tecla dos aparelhos analógicos nos permitia gravar e registrar na mente os algarismos mais frequentemente indigitados. Na hodiernidade, isso está cada dia mais esporádico e difícil. Tudo está memorizado nos aparelhos tecnológicos, na memória externa, e o mesmo acontece em relação às investidas do saber. Tudo está depositado, ali, nos sítios informativos de todo tipo de conhecimento. Sem falar das assinaturas em aplicativos ou de outros expedientes de interesse da freguesia. Basta a inscrição para que automaticamente cheguem até as malhas da comunicação as notificações. São informações tão saturadas de conteúdos variados que não estamos dando conta de tudo isso. Assim, conectados, se não formos vigilantes, perderemos muito tempo precioso garimpando coisas que podem nos informar, mas não nos formam, não acrescentam nada à essência do que já somos. Trata-se de uma perda de tempo desorganizado, sem proveito nenhum.
Não obstante todos os benefícios das redes sociais, elas ainda têm causado muita dependência tecnológica e, em certo sentido, também está desumanizando as pessoas, sobretudo, quando se age como se do outro lado da tela fria não houvesse uma pessoa, de carne e osso, plena de sensibilidade e sentimentos. É quando aparecem os xingamentos, os desabafos sentimentais, as ironias dialéticas, as provocações inconvenientes, enfim, as hostilidades patrocinadas pela aparente distância das vítimas das “turbulências afetivas”. Mas depois dos excessos, vem o fastio. Eu chamá-lo-ia de “fastio webiano”. Os sinais de cansaço começam a aparecer. Pelo que percebemos, aos poucos, menos pessoais estão frequentando as redes sociais. Encontro-me entre elas. Saí definitivamente do Facebook! A intenção é a de priorizar outros aspectos mais importantes e substanciais do que me interessa no momento, não somente de formação acadêmica, mas também de avanços pessoais no equilíbrio das pesquisas e investigações. Muitos amigos também estão nessa de um tempo de repouso ou descanso do Facebook. Pode até parecer um contrassenso, andar na contramão da modernidade. Contudo, um pouso de deserto pode ajudar-nos a nos conectar mais com nós mesmos no frescor e no aconchego do oásis interior, tanto quanto em relação às pessoas que nos cercam, com as quais convivemos diariamente. Menos tempo nas redes, mais tempo nas teias diretas dos relacionamentos. 
Se antes a vida estava exposta à infinidade de curiosos, críticos e censores, sem falar daqueles com quem se tornou impossível dialogar, tão penetrados de ideologias nocivas, facínoras ou homicidas, destruidoras até de bonitas amizades, agora, fora dessa dimensão da virtualidade tecnológica, que reine a paz e a tranquilidade, longe dos holofotes indiscretos dos fofoqueiros de plantão, dos invejosos e dos maledicentes. E o que dizer, então, dos carniceiros, para os quais “besteira pouca é bobagem?”. Se a desgraça posta nas redes sociais não for imensa, bem catastrófica, ninguém demonstra interesse, de modo que ficamos expostos aos abutres necrofágicos da sociedade.
Quanto ao mais, a vida real mostrará melhor os amigos de verdade que colecionamos durante a existência. Esses saberão onde, quando e como tempestivamente nos encontrar. (PGRS).

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Natal e transformação geracional


NATAL E TRANSFORMAÇÃO GERACIONAL

Papa Francisco diante do presépio na Casa Santa Marta

O Natal chegando, e nós como iremos celebrá-lo? O que iremos pedir ao Menino-Deus? O dom maior Deus já nos concedeu em sua infinita misericórdia: A Salvação em Jesus, cujo nome significa justamente o “Salvador”. Mas “salvador” de que mesmo? A humanidade, adormecida nos porões da ideologias modernas, que foram construídas ao longo dos séculos, parece que já o esqueceu. O homem não é o salvador de si mesmo, apesar de sua luta por emancipação. Segundo relato bíblico, Deus nos salvou das garras do demônio tentador e de suas investidas facínoras. Foi quando o “pecado” entrou no mundo pela desobediência de Adão e Eva. “Pecado” se tornou uma palavra em desuso, e o instinto das pessoas faz de tudo para tentar esquecê-la, mas não adianta. Ela está aí diante de nossos olhos, garimpando o comportamento libertino de todos nós. Recusamos aceitar que não somos criadores, mas criaturas. Criaturas rebeldes, por sinal! Daí decorre todo tipo de rejeição aos mandamentos, à atitude religiosa espiritual, ao desejo de superação de si mesmo em relação à ruína das virtudes, ao melhoramento ético e moral, no sentido do progresso ascendente no que concerne à vida na graça divina, à conversação e à santidade, e assim por diante.
O mundo está profundamente marcado pela chamada “desorientação ontológica” porquanto, desde as origens de nossa formação ou criação civilizatória – sim, a civilização humana iniciou com Abel e Caim – perdemos o rumo certo do equilíbrio espiritual ou psíquico interior, da intimidade com Deus. Tudo isso exigido para nossa felicidade puramente humana, antes da queda. De lá para cá, todos nós somos vítimas odontológicas da tragédia que trouxe desarmonia entre o Criador e as criaturas, e entre as próprias criaturas. No entanto, a chave de recuperação que Deus usou para reabrir o caminho da “reformatio harmoniae” – re-formação da harmonia – foi o envio do seu Filho Eterno, Jesus Cristo, a fim de ligar de novo a criatura humana ao Criador. E aqui está o segredo do Mysterium que celebramos no Natal. Deus, em Jesus, reabre para todos nós a senda do céu. Todavia, a salvação é um dom oferecido a todos, de modo que é preciso que nós o queiramos, que nós o aceitemos. Ou seja, o caminho em direção ao inferno – que existe, independentemente de o aceitarmos ou não – é uma escolha que fazemos com nossas atitudes contrárias ao convite soteriológico de Deus. Santo Agostinho é quem o afirma: “Quem te criou sem ti, não te salva sem ti”. Mas será que nós queremos o céu? Ou preferimos a liberalidade de nossas conveniências morais, espirituais, éticas, religiosas – criamos nossa própria religião – etc.?
Então, o tempo do Natal é o momento em que devemos colocar todas as nossas convicções na balança da ponderação, para decidirmos o que realmente queremos para nossa felicidade, com Deus ou sem Deus. A decisão é imperativamente nossa. Infelizmente, vivemos conjunturas sociais de um ateísmo tão perturbador e estonteante que muitas pessoas pensam poder se liberar de Deus, de seus juízos, de seu tribunal, diante do qual, um dia, deveremos comparecer para a prestação de contas da nossa existência. E o tribunal de Deus é insubornável Diante dele, nenhum álibi nosso será suficientemente justificável. E não adiante tentarmos fugir, porque, mais cedo ou mais tarde, todos os nossos esforços de autossuficiência e arrogância se demonstrarão inúteis, não terão servido para nada. Talvez, por isso, diante das incertezas ou de nossas próprias incongruências humanas, pensemos em poder zombar de Deus e de seu Filho Jesus. Um comportamento aberrante e desrespeitoso que mancha de ignomínia e indignação o devido respeito à liberdade religiosa. Acintes e provocações desse tipo não melhoram em nada, por exemplo, o mesmo respeito que muitos artistas tentam impingir dos outros em nome do que eles, alucinada e cinicamente, consideram ser “cultura” ou “liberdade de expressão”. Mas, a seu tempo, cada um pagará a sua conta, porque a história é implacavelmente vingativa e, oportunamente, apresentar-lhes-á a devida conta.
Ninguém pense que Deus possa descer ao nível de nossas mediocridades. Vez por outra, recebo mensagens equivocadas de pessoas que imaginam que a Igreja do Papa Francisco está trazendo inovações, a ponto de, por exemplo, mudar a doutrina da fé católica, escancarando as portas a todo tipo de conveniências morais, espirituais, etc., segundo os gostos da modernidade. Há inclusive quem deseja que, um dia, a Igreja de Cristo possa “ter cara e pensamento condizentes com o século XXI”. Quem assim o espera, saiba que se trata de um “desejo sem esperança”, para recorrer a uma frase de Dante Alighieri na Divina Comédia. Nunca, jamais, a Igreja se tornará aliada do mundo contra a riqueza de sua doutrina, com fundamentação nos Evangelhos. Isso não significa dizer que não possamos fazer nossas escolhas, determinar nossas orientações, afinal de contas, o mesmo Deus que nos criou livres, jamais se colocará contra o dom da liberdade que também nos concedeu. Contudo, ninguém se engane, pois ela também terá o seu preço, e a própria humanidade tem dado sinal de cansaço.
Nossa humanidade é um cansaço crônico, histórico, gravado pelas consequências da desobediência de Adão. Mas, a cada Natal, a misericórdia divina vem nos advertir de que, não obstante tudo, ainda existe a esperança da regeneração. O Emanuel, o Deus conosco não nos abandona, nem mesmo quando parecemos à deriva, desorientados, sem bússola pelo mar agitado das feridas mais profundas de nossas inquietações interiores. Transformando a cada um de nós, ele também pode trazer a transformação geracional dos povos, conforme os ditames de seu poder Salvador, porque ELE É O SALVADOR... (PGRS).
Feliz Natal, com Jesus, o Salvador!


quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Somos livres, não, independentes...


Somos livres, mas não somos independentes...



O maior drama da criatura humana é não aceitar a condição do que ela é, quer dizer, de ser criatura. De fato, na raiz dessa recusa, dessa inadequação entre seu desejo de autossuficiência e a radical dependência de Outrem, está a origem de todos os dilemas da história da humanidade, de cada homem, de cada projeto de busca de felicidade. Dentre todos os seres criados e jogados dentro do universo visível das criaturas, só o homem pôde voltar as costas ao Criador. É o profeta Isaías quem o afirma, de modo contundente e sereno: “O boi conhece o seu dono, e o jumento, a manjedoura de seu senhor, mas Israel é incapaz de conhecer, meu povo não é capaz de entender. Ai da nação pecadora! do povo cheio de iniquidade! Da raça dos malfeitores, dos filhos pervertidos! Eles abandonaram o Senhor, desprezaram o Santo de Israel, afastaram-se dele” (Is 1,3-4). O profeta Isaías pinta com cores vivas e incandescentes a realidade na qual o homem está mergulhando desde que se rebelou contra seu criador. O povo de Israel, enquanto expressão da humanidade inteira, encarna e atrai sobre si o destino de todos os filhos de Adão. Racionalmente livres dentro do seu espírito, sua consciência vagueia entre o bem e o mal, o certo e o errado, a verdade e a mentira, o moralmente belo e o feio, entre a vida e a morte. A possibilidade de uma escolha livre foi o que o tornou prisioneiro de si mesmo, de sua liberdade, de suas inclinações para a própria maldade do coração. Paradoxalmente, sua liberdade o fez escravo. Querendo emancipação, encontrou escravidão.
Tudo isso está narrado no livro do Gênesis, o livro das origens, o primeiro livro da Bíblia. Deus criou tudo o que existe das coisas da natureza, viu que tudo “era bom” (Gn 1,10.12.18.25) e resolveu criar também o homem, coroando assim o trabalho criacional de seis dias, depois do que, vendo que tudo “era muito bom” (Gn 1,31), resolveu descansar. Diz o texto sagrado: “Deus concluiu no sétimo dia a obra que fizera e no sétimo dia descansou, depois de toda a obra que fizera. Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nele descansou depois de toda a sua obra de criação” (Gn (2,2-3). “Descansar?” O relato bíblico fala do sétimo dia como sendo o sábado. Dia do repouso divino. Claro que a linguagem bíblica é simbólica e revela por trás de si a pedagogia divina da revelação, de Deus que se dá a conhecer às criaturas pelas próprias criaturas. A palavra do livro da Sabedoria é incisiva quanto a este ponto: “Sim, naturalmente, vão foram todos os homens que ignoraram a Deus e que, partindo de bens visíveis, não foram capazes de reconhecer Aquele que é, nem, considerando as obras, de reconhecer o Artífice. Mas foi o fogo, ou o vento, ou o ar sutil, ou a abóboda estrelada, ou a água impetuosa, ou os luzeiros do céu, os príncipes do mundo, que eles consideraram como deuses. Se, fascinados por sua beleza, os tomaram por deuses, aprendam quanto lhes é superior o Senhor dessas coisas, pois foi a própria fonte da beleza que os criou. E se os assombrou sua força e atividade, calculem quanto mais poderoso é Aquele que as formou, pois a grandeza e a beleza das criaturas fazem, por analogia, contemplar o seu Autor” (Sb 13,1-5). De fato, recorrendo ao início da filosofia grega, de um tempo em que os sinais da natureza eram vistos e aceitos como manifestação dos “deuses”, está a constatação daquilo que o homem primitivo via como animismo. Segundo o Dicionário Aurélio, o “animismo” é definido como “modo de pensamento ou sistema de crenças em que se atribui a seres vivos, objetos inanimados e fenômenos naturais um princípio vital pessoal, isto é, uma alma”. Assim, mais tarde, a mesma filosofia grega indicaria o estágio de superação desse tipo de mentalidade. Segundo Comparato, “No século V a.C., tanto na Ásia quanto na Grécia (o século de Péricles), nasce a filosofia, com a substituição, pela primeira vez na História, do saber mitológico da tradição pelo saber lógico da razão. O indivíduo ousa exercer a sua faculdade de crítica racional da realidade”. (Comparato, 2015, p. 21).
A partir da criação do homem, penso que Deus nunca mais descansou. Pelo contrário, desde então, vive correndo atrás da intimidade com sua criatura rebelde. Às vezes, sinto pena de Deus, porque parece que ele está perdendo para o homem em criatividade! Ele criou homem e mulher, masculino e feminino, e, agora, dizem que já há mais de 70 possibilidades de sermos algo diferente! Também me dá vontade de rir da “criatividade maligna” do homem. Tentando inverter a ordem criacional, o homem que fora criado à imagem e semelhança de Deus, agora procura um “deus” à sua imagem e semelhança. Foi, então, por inspiração do demônio que ele desejou ser igual a Deus, mas acabou imaginando poder criar o seu deus, um demiurgo à sua estatura pequena, tacanha, impotente e limitado. No entanto, refém de si mesmo, a sede humana de autonomia não dispensa o homem da necessidade de Deus. Por mais que as descobertas científicas encham seu espírito de orgulho e autossuficiência, de liberdade e sonhos, ele permanece na zona criacional de dependência e inclinação à finitude biológica e temporal diante do que ele também se debate sem alcançar o sucesso desejado.
Por conseguinte, desde o primeiro Adão até o último – querendo expressar dessa maneira a lista interminável de todos os seres humanos que habitaram a terra, em todos os estágios da duração da vida – a história da humanidade segue seu destino irrefreável na textura da criatividade com que pessoas geniais deram sua contribuição em todos os ramos das ciências, e das artes e das técnicas. Mas a genialidade humana é reflexo dos atributos divinos depositados dentro da inteligência de que a obra-prima da criação – a criatura humana – foi dotada. Inteligência, vontade e liberdade fazem parte da constituição que a luz da consciência projeta dentro do homem, permitindo-lhe dobrar-se diante de si mesmo e do seu Criador.
A inteligência ilumina o caminho da vontade, indicando a direção do voo para a liberdade. É a liberdade o que livra o homem de si mesmo, de suas armadilhas mais secretas, do calabouço de seus medos, da estranheza de suas inspirações, das tristezas da vida, da ilusão das incertezas, da tortura de pensamentos que o oprimem pelas ondas interiores das angústias, enfim, da prisão dos seus próprios receios.

domingo, 23 de junho de 2019

Ana Medina - Cronoradiografia de um Médico


Ana Maria Medina
Cronoradiografia de um médico


Venho de ler o “ensaio biográfico” da amiga Ana Maria Medina – carinhosamente cognominada de minha “madrinha intelectual” – sobre a vida de um médico sergipano, boquinense, que estendeu sua experiência na medicina sobre os telhados do mundo. Refiro-me à obra sobre o Dr. Valmir Fernandes Fontes (2019). Na verdade, a cultura das letras é um caminho que ninguém percorre sem esforço. Com efeito, imaginação, intuição e criatividade no brilhantismo dos códigos da comunicação gráfica também é fruto do empenho, da investigação e da especulação que se imbricam nas linhas cruzadas do pensamento. A ideia de “ensaio biográfico” projeta as intenções do espírito na dimensão profunda das evidências de uma personalidade. O ensaio é, pois, uma tentativa, uma faísca luminosa no céu plúmbeo dos esgarços históricos pessoais que acobertam a quase consciência, que tenta buscar a si mesma, nas reminiscências existenciais do passado. Um “ensaio” é como um “esboço”, o que, em nada, diminui o valor da obra. Pelo contrário, segundo Jean Guitton, em colóquios imaginativos com Blaise Pascal, mediante excogitações filosóficas como sinopses de final de cena no pôr do sol da existência, “os esboços são sempre mais belos”. Essa é também a grandeza do “ensaio”.
Do vocabulário, talhado à maneira da linguagem apropriada para a narrativa, adentramos com a autora no universo cultural e histórico, não apenas da família do homenageado, mas também no contexto social da época. Eram tempos diferentes dos nossos, em que o primor da gentileza das tradições parece desbotar o brio dos amores modernos. Assim, história, tradição e cultura se misturam na estampa do tecido literário da trama. Efetivamente, a literatura possui o poder e a magia de abrir nosso espírito aos ventos de recordações do passado, colocando-nos dentro do ambiente emoldurado pela estatura eloquente da palavra. Desse modo, traços específicos de um tipo de erudição cronobiográfica enfronham décadas de formação e relevo social da casta dos Fontes, de cuja prole descende o Dr. Valmir Fernandes, que protagoniza o “Ensaio Biográfico” de Ana Maria Medina, prima do referendado nas páginas de sua obra. Sem dúvida, exaltada por sentimentos familiares em relação aos fulgores de personagens ilustres e positivamente influentes no meio social em que se destacaram pela profissão escolhida e abraçada, não poderia desconsiderar o estudo da figura em relevo na obra. Mas não somente por impulso sanguíneo. Na verdade, é preciso ter muita lucidez e sensibilidade para entender e perceber que, do seio de famílias simples na origem dos rebentos de seus troncos, também nascem vultos, celebridades importantes, que expandem sua sombra sobre a sociedade, contribuindo, de maneira mais ampla, para o bem da coletividade. É o que acontece, por exemplo, com a dinâmica da vida do médico, que não se deteve nos umbrais da medicina caseira, residual, íntima, mas se permitiu ir além fronteiras com suas pesquisas rigorosamente científicas e tecnológicas, inclusive publicando artigos em revistas de renome internacional. Porém, não apenas pelos artigos. De fato, “Suas contribuições também ficaram registradas em centenas de trabalhos científicos publicados em revistas e livros especializados, vários dos quais premiados, tanto no Brasil quanto no Exterior”. Segundo Sotero, citado pela autora, “A literatura médica internacional é a fonte bibliográfica da genialidade deste sergipano”.
A obra é leve, fruitiva e aprazível, no sentido da satisfação intelectiva que nos causa, embora traga consigo a exigência terminológica do ambiente descrito e do estilo condigno à envergadura e à imponência do Dr. Valmir Fernandes Fontes. Entre superstições e folclores da cultura nordestina dos tempos de antanho, como “enterrar o umbigo no mourão da cancela”, a fim de que o indivíduo se prenda ao lugar e tenha sorte, entre outras argumentações e crendices – saci-pererê, caipora, como reflexos de mitos afrodescendentes – ela também revela o gosto pela sabedoria popular, enriquecendo o enredo para deleite do ledor. Dessarte, ela foge à monotonia de obras enfadonhas pela ausência de dinamicidade literária, sem falar da estética visual sobre a qual o olhar descansa, perlustrando o caminho das ideias e da impressão das figuras. Desse modo, sob as cinzas do passado, reacendido por suas memórias, também descobrimos rasgos educacionais que experimentamos na era da “palmatória”. De fato, ninguém gosta de apanhar por ignorância, pois, diferentemente da concepção da época, não se tratava da “docilização do corpo”, mas era um constrangimento para quem batia e para quem recebia o “bolo” dos mais sabidos. Mesmo assim, na contraluz entre o passado e o presente, era o tempo “em que criança não questionava: obedecia”.
À mercê de outro ângulo de percepção, a vitalidade também escorre pelos cantos sombrios, tristes e obscuros de qualquer existência, de modo que vida e morte se encontram nos ingredientes etnolinguísticos da literatura biográfica da autora. Há sofrimentos e mortes que pendem sobre a família diante dos desafios da cronologia consanguínea. Mas as perdas familiares não conseguem deter os passos determinados da sobrevivência. E a responsabilidade que tomba sobre os ombros dos primogênitos demonstra, de igual modo, a ousadia dos fortes nas batalhas da vida. Isso também não faltou à vida do Dr. Valmir Fernandes Fontes. Mesmo fazendo parte dos corolários do nascimento, a morte sempre causa incômodos ao espírito humano. Na própria expressão da escritora, “a tragédia se abate sobre a família, levando o chefe para o insondável mistério da morte”. Diante da perda irremediável, “João, o primogênito, de apenas 17 anos, investiu-se da couraça que só os bravos têm sobre os ombros para sustentar e afiançou à mãe e ao avô que iria tocar a Fazenda Campo da Onça, e que nada iria faltar à família, mesmo que abdicasse de seus planos pessoais”.
Por certo, da leitura do livro, da simetria de suas palavras e da extensão de seu conteúdo, muitas vertentes de reflexão e entretenimentos intelectuais podem brotar da semeadura das páginas. Todavia, diferentemente da colheita das plantações, que fazem germinar o que ali fora depositado, no caso da literatura, seus frutos dependem também da ótica do leitor e do ponto de vista da realidade que açambarca seus conhecimentos. De fato, a sinfonia das letras tem o tom da sensibilidade dos músicos. Sobrevoando os campos da filografia espontânea e envolvente, a escritora, como em tantos outros livros seus, permite-nos vislumbrar horizontes mais profundos e longínquos, que nos mergulham além da superfície do texto, lá, onde o sabor das palavras revela a riqueza da elaboração e o segredo dos argumentos da escritura. Discorrendo sobre o passado de uma vida, tudo parece tão rápido e efêmero sob a esferografia da pena. No entanto, entre o acontecido e o dito em segundos, a extensão do tempo traz consigo a glória dos imortais e o brilho de suas façanhas.
Na verdade, a obra trata da cronoradiografia de um médico, isto é, uma espécie de raio “X” existencial do eminente galardoado. Antes, porém, de concluir minhas apreciações sobre a constituição sincrônica da obra, não poderia deixar de externar a grata surpresa e o gáudio que me permearam a alma por me encontrar na história do livro quando se fala de “Benjamim e Bebé [Elizabeth]”. No sobressalto da curiosidade, procurei saber se se tratava de uma senhora que, antes de falecer, eu lhe dera o sacramento da Unção dos Enfermos, no Instituto do Coração, na Capital, pois ela era muito religiosa e bastante conhecida em Aracaju. Eu também a conhecia! Felizmente, mesmo em contextos de vidas diferentes, em conjunturas temporais de aproximação de uns com os outros, ainda é possível o milagre do encontro e do reencontro. Então, parabéns à Ana Maria Medina, a autora, pela magnanimidade da obra, e ao homenageado, o Dr. Valmir Fernandes Fontes, “pela figura de homem representativo da dignidade humana”, por ser “competente, altruísta, desprovido das vaidades egoicas”, como afirmou em depoimento a Dra. Diana Maria e, sobretudo, pelo testemunho humano e profissional no mister de sua vida. 


sexta-feira, 31 de maio de 2019

Dom Luciano Duarte





Dom Luciano Duarte
e a ousadia dos gênios




A admiração que sempre nutri por Dom Luciano Duarte (1925-2018) nasceu quanto eu ainda era jovem vocacionado, e, depois, seminarista, no final da década dos anos oitenta, participando dos encontros vocacionais no Seminário Menor de Aracaju. Como esquecer aquele tempo e suas visitas frequentes aos seminaristas? Pelo menos, para mim, foi um tempo de desejo ardente de florescimento multicultural, ouvindo e aclamando, com tantos encômios dignos de sua autoridade pessoal e eclesiástica, o então Arcebispo Metropolitano da Arquidiocese de Aracaju. O fulgor de sua inteligência era, realmente, contagiante. Portanto, o que trago aqui outra coisa não é, senão, um breve memorandum sobre o mítico de multifacetada personalidade que ficou conhecido no meio intelectual de Sergipe e na própria Igreja católica simplesmente como Dom Luciano Duarte.
Grande visionário, estudioso, intelectual, de profundo e rico veio oratório e dialético, versátil na exposição vocabular de seu conhecimento linguístico. O homem da palavra fácil, da réplica espontânea, no belo estilo polido da finesse dos grandes espíritos argutos, sábios, mas também capaz de ajudar os menos afeitos ao rico patrimônio do saber, da “sabedoria acumulada” de que fora dotado pela própria natureza de sua insistência na formação do caráter e da individualidade. Mas nada aconteceu por acaso, no sentido de que ele não tenha se esforçado para atingir os páramos mais elevados da grandeza que a envergadura de sua genialidade poderia lhe favorecer. Com efeito, a intensidade da educação que recebemos pode tornar-se uma referência que determina, negativa ou positivamente, a vida de quem se abre ou se fecha aos dotes cognoscitivos dos próprios recursos que brotam dentro da claridade dos pensadores.

Grande estudioso, insaciável na ânsia pelo saber, de raciocínio investigador, extremamente inquieto e saliente nos limites das aquisições já adquiridas, sempre desejoso de ir mais além, alfinetado pelas respostas prontas que trazia sob os riscos ou traços da pena literária, lúcido até onde lhe permitiram os rasgos do brilhantismo intelectual, Dom Luciano Duarte sabia se posicionar, de modo categórico e certeiro dentro dos vários ambientes em que se encontrava, sob qualquer tema ou assunto, mesmo não agradando nem convencendo, mas estando convencido de suas certezas, de suas convicções pessoais, fundamentadas no fértil solo do conhecimento erudito de que se servia para expor seus argumentos.
Embora o caráter e a personalidade de uma pessoa possam crescer e amadurecer no tempo cronológico de sua formação educacional ou acadêmica, levando em consideração outros efeitos da conceituação antropológica do indivíduo – sua infância e adolescência, o meio onde foi criado e educado, o acesso que pôde ter às letras e aos livros, a oportunidade de leituras e elaboração do pensamento etc. – o fato é que algumas mentes privilegiadas podem se destacar, desde cedo, mediante o mistério inebriante da acuidade espiritual e intelectiva de suas percepções mais tenras. Penso que isso tenha acontecido com o homenageado, Dom Luciano Duarte. Gênios brincam como gênios, mesmo que o alcance de sua criatividade seja traído pela não concretude de seus anseios na vida futura. Aliás, quem pode garantir a vida futura? Ouvi um dia, numa pregação da quinta-feira santa, na missa do lava-pés, Dom Luciano dizer que quase morreu quando criança, muito doente. Mas conseguiu se tratar e sobreviver, e não apenas não se tornou mais um número nas estatísticas do governo federal, aumentando o índice da mortalidade infantil no país, mas, sobretudo – dizia ele – havia se tornado alguém importante e influente no seio da sociedade sergipana e alhures. Na verdade, ele se referia, no contexto da celebração, ao modo como, muitas vezes, o Senhor Jesus poderia nos lavar os pés, servindo-se daquela maneira.
Nos vários “recreios culturais”, que tive e tenho com a amiga Ana Maria Medina, da Academia Sergipana de Leras, ela me contou que, num episódio narrado em seu diário seminarístico, consta que, um dia, numa brincadeira de menino que queria ser “gente grande”, no sentido da importância de uma personalidade que se destaca pelos seus talentos, numa espécie de peça de teatro, que ele escreveu aos onze anos, ele se colocara como aquele a quem todos deveriam obedecer, isto é, a “Dom Luciano Duarte”. Certamente, adormecida nas dobras da alma pueril do menino levado, inteligente, jazia o tom brincalhão de quem, um dia, se tornaria, realmente, importante e influente. Esse fato, narrado por ele mesmo, fez-me acordar dentro do espírito algo que li, por sua influência, sobre Geovanni Papini, um dos tantos convertidos do século passado, entre os quais podemos destacar também Maurice Blondel e Léon Bloy, sobre os quais ele falava com largueza de conhecimento e riqueza de detalhes da vida dos dois. Geovanni Papini, que dizia nunca ter sido criança, sisudo na fisionomia do rosto, já era tratado e apelidado como “velho”, aos sete anos de idade. Não brincava como as outras crianças de sua contemporaneidade, mas, penetrado por uma inteligência brilhante e astuciosa, rivalizava com o próprio Deus em peças de teatro que imaginava, querendo concretizar o acontecimento bíblico de quando a serpente disse a Adão e Eva que eles seriam como o próprio Deus. Assim sãos os gênios e sua ousadia intelectual, tempestivamente provocados por suas intuições mais profundas. Às vezes, tento fantasiar em minhas especulações a ousadia da genialidade de meninos assim, abertos aos ventos do espírito, com as asas da inteligência volitando sobre os encantos de suas criações inocentes. Devaneios ou sede de autoafirmação mesmo? Consciência plena dos caminhos de suas buscas ou enlevos francos de sua esperteza em arrebatamentos idealistas? Não sei! Mas tenho certeza de que as sementes dos grandes sonhos plantados na alma dos pequenos gênios podem ser sinais de virtude, de coragem ou de desejo de realizações oportunas. A vida é o caminho dessas vitórias e conquistas, mas os limites são os desafios impostos pela superação dos grandes ideais e aspirações do espírito humano.
O tempo é o senhor de todos os sonhos! Para os ideais daquele menino também. Levantando-se do chão pelo crescimento da força física, mas também intelectual, seu caminho estaria marcado pela lucidez com que, sempre, se embrenhou pelas florestas altas do saber e do conhecimento, percorrendo o mundo pela construção acadêmica que a Igreja lhe abriu durante a formação, porém ampliando, cada vez mais, o horizonte das inquietações que lhe perturbavam o espírito. Não se deteve no conhecimento das coisas da Igreja, apenas, mas igualmente se deixou desassossegar pela conjuntura mundial das ideologias que, de um modo ou de outro, espezinhou e vilipendiou a dignidade humana em conflitos revolucionários de governos caudilhistas e déspotas. Ele, que costumava citar o pensamento de um pastor inglês, metodista, John Wesley (1703-1791), que dizia que, ao abrir a janela de sua casa pela manhã, contemplava o mundo inteiro como se fosse sua paróquia, também saiu das sacristias e elevou seu pensamento e suas preocupações sobre os telhados do mundo em decomposição moral, deteriorando-se nos seus valores mais prementes.
Com efeito, a alma dos gigantes não se contenta com o mundo pequeno de suas percepções, mas com a grandeza e a elasticidade de suas inquietações mais profundas. Não quis somente ser o padre ou pastor, especializado nas coisas da Teologia e da Igreja, mas também se abriu para o mundo, fazendo seu doutorado na Sorbonne de Paris, aos pés de grandes filósofos e amigos como Jean Guitton e Paul Ricoeur, também egrégios inspiradores de grandes ideais pela elevação da humanidade.
Pe. Gilvan Rodrigues, Mestre em Teologia Bíblia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, e Escritor.
  

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Santos da nossa história..


SANTOS DA NOSSA HISTÓRIA
SANTOS DA NOSSA VIDA


Falando sobre a santidade na vidas das pessoas, Bento XVI escreveu o seguinte: “em todas as épocas da história da Igreja, em qualquer canto na geografia do mundo, os santos pertencem a todas as idades e a qualquer estado de vida, são rostos concretos de todos os povos, línguas e nações. [...] Acrescento que, para mim, não só alguns grandes santos, que amo e que conheço bem, servem como ‘placas de sinalização’, mas principalmente os santos simples, ou seja, as pessoas boas que vejo na minha vida e que nunca serão canonizadas. São pessoas normais, por assim dizer, sem heroísmo visível, mas em quem, na sua bondade de todos os dias, vejo a verdade da fé. Essa bondade, que amadureceram na fé da Igreja, é para mim, a mais garantida apologia do cristianismo, e o sinal de onde está a verdade”.
Mesmo sem possuir a clarividência do Papa Emérito nem a profundidade de suas intuições, em proporções menores, eu também posso reconhecer a veracidade de suas palavras em pessoas que passaram por minha vida ou ainda estão, aqui, comigo, na transitoriedade do tempo que nos encaminha para a eternidade. João Paulo II, com quem estive três vezes; Madre Tereza de Calcutá e Irmã Dulce, para citar alguns exemplos perto de nós, e que já celebraram a sua Páscoa definitiva, são testemunhos de uma vida santa. Mas há também aqueles santos que, na afirmação de Jacques Maritain, “nunca serão canonizados”.
É, pois, dentro do contexto desse pensamento que eu gostaria de recordar e fazer memória da Irmã Maria Alice Portela (1928-1999), que nasceu e Portugal, viveu muitos anos em Paris, como superiora geral de sua congregação – a Congregação da Irmãs Franciscanas Missionárias de Nossa Senhor – mas também dedicou tempo de sua existência em Itabaiana, Rio das Pedras e em Jequié, na Bahia. Sei que com essa publicação muitos amigos se lembrarão dela. No mundo globalizado e moderno, ela era de um espírito cativante e empreendedor no âmbito das vocações que devia cultivar para o bem da Igreja e dos consagrados. Era um testemunho de serviço e de alegria em meio a todos com quem convivia. Não por acaso, o livro que escrevemos sobre ela – uma obra a várias mãos, se intitula, numa singela homenagem “...passou sorrindo...”. Foi publicando em português e francês. Há um dramático relato meu, justamente, fazendo referência ao dia 14 de mais de 1999, dia em que fui me despedir dela, sempre sorridente, porque ela deveria partir para sua terra natal, a fim de levar adiante o tratamento de saúde. Também porque afirmou ter medo de morrer fora de sua pátria. Naquele dia, depois da despedida, no Rio das Pedras, viajando para Salvador, eu capotei o carro, num acidente. Fui obrigado a retornar, ferido, para o Hospital, de modo que, na segunda-feira seguinte, pude ir ao aeroporto para aquele instante de “adeus”.
Vinte anos se passaram, e eu conservo ainda o frescor de sua personalidade, sofrendo no corpo e no espírito, mas sorridente também. Em agosto daquele ano, eu fora hospedado na casa de sua congregação em Paris, vindo da Itália, onde participei de um curso de formação religiosa. No dia 24 do mesmo mês, dia em que deixei a “cidade Luz”, falei com ela por telefone. Aliás, chorei mais do que falei. Ela, muito doente, simplesmente, me disse: “Padre, quando chegar ao Brasil, mande notícias, mas não espere mais notícias minhas...”. Depois de tantos encontros que tivemos ao longo de mais de dez anos, aquele foi nosso último diálogo, e ela faleceu no Porto, no dia 2 de novembro de 1999. Nunca a esqueci e sempre trago comigo em minhas orações. Tenho certeza de que ela também vive na memória de muitos amigos e admiradores. Penso que seu pensamento traduz o sentido profundo também de sua vida, de seu testemunho e de sua existência no meio de nós: “Que através de nosso testemunho de vida fraterna vivida no Amor e na Fé profunda, possamos dar muito amor a todos aqueles que nos rodeiam e que têm necessidade de nós. Que possamos levar Esperança àqueles que a vida faz sofrer e para quem ela não tem sentido; muita alegria àqueles que a tristeza e o sofrimento impedem de viver”. De fato, onde a Ir. Maria Alice chegava levava consigo luz e esperança aos circundantes.
Que a contemplação da luz divina no céu seja sua mais digna recompensa por tanta bondade semeada no nosso caminho, na estradas de todos que tiveram o privilégio de encontrá-la pelas estradas da vida. Descanse na paz do Senhor, Irmã Maria Alice Portela.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Democracia ou demonocracia?


DEMOCRACIA OU DEMONOCRACIA?


Um silêncio estranho ronda a praça da matriz da Igreja Santo Antonio e almas de Itabaiana-SE. Alguém provocou o Ministério Público, e ele fez silenciarem os sinos que anunciam um sinal de Deus no meio da comunidade. Não importa se crente ou não, se ateia ou não, se pagã ou não. Mas a voz se faz ouvir em todos os cantos da cidade. Há séculos e décadas, os sinos de uma igreja e, depois mais recentemente com o avanço moderno da tecnologia, também o serviço de som anunciavam, de modo mais claro, um sinal da presença divina.
Quem ainda não se lembra de quando criança como eram preciosos e edificantes os hinos religiosos que embalavam os sonhos e as esperanças da sociedade em conflito, na luta pela sobrevivência. Os sinos chamam e indicam o caminha da igreja, do encontro e da comunhão com Deus; recordam o falecimento de um amigo na cidade, o instante de seu enterro, e elevam o espírito dos pobres mortais à lembrança de que a vida humana é breve, passa num segundo. Uma das expressões mais clássicas da literatura inglesa ensinava: “Não perguntes: por quem tocam os sinos? Eles tocam por ti”. Existem categorias e toques de sinos que são especiais em momentos, sobretudo, fúnebres, quando nosso coração se entristece, e o badalo do campanário nos recorda também que a vida humana não se esgota, aqui, na poeira dessa terra. Os sinos indicam a direção ao alto, da elevação da alma a Deus, e permite à mísera criatura humana, não orgulhosa, mas humilde, recordar-se de que o seu dia também chegará.
Sei que a Igreja possui muitos inimigos, inclusive, dentro dela mesma. Há grupos fascistas, demoníacos, comunistas, eivados de ideologias satânicas, até mesmo com o patrocínio de alguns padres e bispos – disse “alguns” – que, para não terem o seu nome arranhado ou sua imagem desprestigiada, preferem ver ovelhas de seu rebanho caminhando para o inferno sob o olhar pacato e tranquilo de suas conveniências. Isso porque se furtam à Verdade do próprio Evangelho de Cristo, que propõe conversão e mudança de vida. Um amigo me disse que “a omissão é a trincheira dos covardes”. E eu concordo plenamente! Infelizmente é assim que muitas vezes nos comportamos para não cairmos na indisposição dos desafetos. Mas a omissão é um pecado gravíssimo, de modo que, a seu tempo, cada um pagará a sua conta. Li um cardeal muito admirado e amado pela igreja que dizia: “As contas que não pagarmos durante a vida, voltam todas no final [na hora da morte!]”. Que constatação tremenda. Mas Deus não dá em ninguém de corda!
A bem da verdade, o fato é que vivemos tempos difíceis e não me canso de repeti-lo! A humanidade está maluca, e os princípios que, há bem pouco tempo, pareciam reger a vida das pessoas, mesmo a vida daquelas que nunca professaram fé nenhuma, mas possuíam consciência de retidão, sentido de bondade e desejo de viver e fazer o bem. Mas hoje, o mundo está de pernas para o ar. Ninguém sabe mais ou tem noções básicas do que é certo ou errado, bem ou mal. O caos tem se instalado de dia para dia, com uma avalanche de desprezo e ridicularização pelo sagrado impressionante. Basta lembrar o que aconteceu recentemente no carnaval do RJ em que mostraram Cristo vencido pelo diabo. Mera hipocrisia e satanismo humano. Quando alguém imagina coisas desse tipo, com certeza, é porque ela já foi alcançada por satanás, mas, não, NOSSO SENHOR JESUS CRISTO! E dentro desse universo de desvarios e maluquices, está o problema da educação. Isso mesmo: EDUCAÇÃO! Se ela é considerada o berço da civilização, como conseguimos vislumbrar nos albores da gloriosa Grécia, por certo, já perdemos o rumo há muito tempo. Não por que os homens fossem perfeitos. Não! Não se trata disso. Mas porque nenhuma civilização sobreviveu sem ela. Até os anarquistas precisam dela para atingir seus objetivos, porquanto ela impõe disciplina, aprendizagem, crescimento etc. E olha que estou me referindo a princípios humanos, meramente humanos. Não me refiro a categorias meramente empíricas, afastadas dos ideais de progresso humano. Aludo àquilo que torna o indivíduo senhor de sua pessoa e de sua própria dignidade, lutando para ser, cada vez mais, melhor. Se não somos dotados nem de educação, como poderíamos pretender grimpar a páramos mais elevados? Podemos até pensar que somos educados, mas nos mostramos verdadeiros trogloditas pré-históricos.
Dizem que, no Brasil, vivemos uma democracia! Coisa linda e bonita para engambelar os distraídos. Temos uma Constituição Federal, a chamada Carta Magna do País, que está sendo carcomida pelo STF, os deuses, senhores acima do bem e do mal, que a interpretam como bem a intendem, contanto que a maioria decida o que é certo ou errado, hoje, e, amanhã, mudem de opinião. É isso democracia? Aprendi com um escritor católico que maioria não é sinônimo de verdade. Nunca foi, nunca o será! E ele explicava: se uma caixa com 100 laranjas contiver 90 podres, isso não significa que a maioria é melhor. Parece-me bastante lúcido. E pelo andar da carruagem, estamos longe de atingir o sentido pleno e correto do que chamamos “democracia”. Na minha opinião, vivemos uma “demonocracia”! Sim, pare que o poder emana do demônio e, não, do povo! Tantas aberrações já foram decididas com base no princípio constitucional! Quem for inteligente deve se lembrar de algumas. Enquanto isso, vamos reprimindo, a toque de caixas, a também constitucional “liberdade religiosa”.
“Liberdade religiosa”. Em nome da laicidade, estamos destroçando os valores cristãos, porque dizem que religião é uma coisa interna, da consciência de cada um, e, portanto, deve ser vivida escondido, no silêncio do coração ou da consciência. Mas outros tipos de aberrações, e de imoralidades, e de pornografias, e de comportamentos vis, de desrespeito à presença dos transeuntes – esses, sim – podem ser externados à luz do dia, nas praças das cidades, como prêmio da libertinagem individual e coletiva fomentada pelo Estado de Direito! Quanta hipocrisia! Maldita hipocrisia! Depois, o homem se transforma na besta irracional que devora seus iguais, e ninguém se pergunta por quê. Muitos que intrigam com a igreja e as religiões, vivem como ateus, à toa ou perdidos mesmo, mas quando estão morrendo ainda têm o cinismo de mandar chamar um padre, com medo de ter de atravessar os umbrais do inferno. É como diz Augusto Cury: “Às portas da morte, o ser humano recolhe [todas as] suas máscaras e fala sem disfarce”. Na hora da morte, os que pareciam corajosos na sua descrença, apelam para algum “deus”! E ainda querem missa de corpo presente, de preferência celebrada por um padre famoso, e de sétimo dia. Houve um filosofo francês que, não apenas mandou vir um padre, mas também pediu as credenciais para certificar-se de sua credibilidade.
Em uma cidade da Alemanha, no final de abril de 2019, agora, recentemente, uma grupo de católicos, entre os quais havia muitos padres, bispos, e inúmeros leigos, fizeram uma passeata pacífica, em defesa da vida, contra o aborto, em prol da família cristã e de seus valores. Uma cena tremendamente chocante, dantesca, assustadora! Esse grupo de fiéis católicos, passavam, serenamente, cantando, rezando, flanqueados por barreiras de policiais, que os defendiam dos gritos, das vaias e do desrespeito dos inimigos, que rosnavam como cães raivosos, tentando alcançar suas presas. Uma cena chocante e triste ao mesmo tempo! Como pode o mundo odiar tanto quem só deseja o bem? Os cristãos de verdade sabem a resposta, e tenho certeza de que estamos dispostos a voltar às catacumbas, como acontecia no início do cristianismo, nos três primeiros séculos de sua história. E é isso o que está acontecendo; é o que estamos vivendo! Acuados pela covardia do mundo, os cristãos, cada vez mais uma minoria, estão sendo empurrados para o esconderijo, para as catacumbas.
Lembro-me de um texto terrível, que o Papa Bento XVI escreveu, numa visão profundamente profética, sobre a perseguição crucial e violenta que, ao fio dos anos e dos séculos futuros, os cristãos irão sofrer. Que ninguém se engane: isso já começou! Estamos sentindo na pele. A fumaça de satanás confundido os homens no vendaval da imoralidade, do egoísmo, da indiferença religiosa, do ateísmo prático e doutrinário, do antiteísmo, de ideologias macabras e desconcertantes, que nos conduzem à mais completa obscuridade anticivilizatória. Pena que perdi aquele texto. Talvez, devesse perde-lo! Gostaria de fundamentá-lo melhor. Era, realmente, um texto assombroso, de um tempo sanguinário de perseguição religiosa radical, contra os discípulos de Cristo. Na sua visão, depois de imensos sacrifícios, de mortes e de martírios, de verdadeira purificação, a Igreja do Senhor, como sempre aconteceu após as tormentas levantadas pelo ódio do mundo, renasceria purificada, com um número bem reduzido, mas como expressão viva do Senhoria de Cristo, de cuja Igreja “as portas do inferno nunca prevalecerão contra ela” (Mt 18,16-20). Não obstante tudo, essa também é a nossa fé, a fé dos cristãos e a sua irrenunciável esperança. O mundo moderno passará, com todas as suas prevaricações e desprezo pela Igreja do Senhor, mas o julgamento também é certo. (PGRS).

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Paris e o mundo aos pés de Notre-Dame em chamas


Paris e o mundo aos pés de Notre-Dame em chamas...

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Seria muito bom se não fosse verdade, mas Paris e o mundo se prostram diante da bela catedral Notre-Dame de Paris em chamas, qual luzes que nãos gostaríamos de ver. A bela Paris de meus sonhos parece não querer acreditar do pesadelo do fogo. Em tão pouco tempo, menos de um final de tarde, onde o sol se põe depois das 19 horas, quase um milênio de história e arte desaparece no meio das cinzas das incertezas deste início de século. Será verdade? Sim, o sonho de dezenas de séculos se transforma no nada. Sinal dos tempos? Reflexos do paganismo moderno em que vivemos? Destruição de um símbolo cristão da primogênita filha da Igreja Católica? Afronta à terra de santos e de mártires que se consumiram pelo amor à religião do Senhor Jesus? Não sei! Talvez, nenhuma dessas alternativas. Mas o fato é que todos perdemos!
Perdeu o Ocidente, orgulhoso de sua cultura filosófica, cientista, helênica, astrológica, etc., mas rebelde às raízes da própria fé plantada nos albores do Cristianismo. Perdeu a arte multissecular de vitrais magníficos de constituição catequética, de um tempo em que as gravuras falam por si mesmas, tentando catequizar o mundo vaidoso do Ocidente sonolento no berço de suas conquistas. Perdeu a história arquitetônica, que esboçou nos painéis góticos a imaginação de nervuras de cimento o esplendor da criatividade humana. Perdeu a própria Paris, encruzilhada do mundo, que alberga turistas de todos os povos e lugares. Perdeu a humanidade, senhora de tempos sombrios, de épocas civilizatórias e momentos de barbáries, no mesmo canteiro dos anseios humanitários. Perdeu quem viu o esplendor de um templo cristão, na capital da França católica, de reis santos e de santos convertidos, que beberam na fonte cristalina da graça da conversão. Hoje, no universo cinzento que atraiu a atenção do mundo, cada um, a seu modo, pôde externar sentimento se pesar e tristeza, de assombro, inclusive, de espanto, mas também de oração e de prece à Virgem cujo nome detém o sentido sagrado do que, agora, parece ter se tornado profano no meio das flamas vertiginosas do imprevisível. Quantas vezes, eu pude adentrar no seu recinto, e também rezar a missa com outros sacerdotes concelebrantes em domingos festivos, na liturgia solene do Senhor! A Catedral de Notre-Dame – a catedral de Nossa Senhora, a rainha de todas as coisas criadas, visíveis e invisíveis – certamente renascerá das cinzas, segundo o desejo de todos que lamentaram sua inominável destruição, inclusivo Presidente Emanuel Macron, que já decidiu conclamar o mudo político e artístico para ajuda-lo! Enquanto isso, seguimos, de longe, rezando e torcendo para que sua esplendecência volte ao fulgor de outrora. Numa cruzada de sentimentos e lamentos, hoje, 15 de abril de 2019, o mundo diplomático se uniu à Paris num canto fúnebre de tristezas e lamúrias incendidas de pesar e consternação da alma fraterna dos povos.
Da Alemanha, veio o frêmito de Ângela Merkel, “a dama de gelo”, referindo-se ao trágico acontecimento: “Que dor, ver essas atrozes imagens de Notre-Dame em chamas! Notre-Dame é um símbolo da França e da nossa cultura europeia. Todos os nossos pensamentos aos amigos franceses”; Dos Estados unidos, Trump se solidarizou, afirmando: “É horrível ver o incêndio massivo da catedral de Notre-Dame de Paris”; Melania Trump, a primeira dama americana, declarou seu “coração ardendo”: “Rezo para que todos estejam sãos e salvos”; Barak Obama reconheceu: “Notre-Dame é um dos maiores tesouros do mundo”; e ainda: “É da nossa natureza se lamentar quando vemos a história perdida, mas também é da nossa reconstruir o amanhã, tão forte quanto o podemos”; da Inglaterra, Tereza May manifestou “pensamentos aos serviços de urgência que combatem o terrível incêndio da catedral Notre-Dame”; também o prefeito de Londres, Sadiq Khan, da minha idade, 48, externou pesar pela catedral pegando fogo; “É verdadeiramente terrível. Que tragédia cultural, não apenas para Paris e a França, mas igualmente para o mundo”, afirmou, então, a primeira ministra da Escócia, Nicola Sturgeon; por sua vez, o primeiro ministro canadense, Justin Trudeau, também lamentou: “Isso nos queima o coração, ver a catedral Notre-Dame de Paris na proa das chamas. Pensamos em nossos amigos franceses que combatem esse incêndio devastador”; Sandro Sanchez, primeiro ministro espanhol, destacou: “Seguimos com inquietação as informações que chegam de Paris, sobre o incêndio de Notre-Dame, uma das mais belas catedrais do mundo. Uma notícia triste para nossa história e nosso patrimônio cultural universal”; o presidente da República Mexicana, de igual modo, também deixou sua mensagem: “Esse incêndio é uma infelicidade para a arte, a cultura e a religião”; o presidente colombiano, enfatizou: “Pena irreparável que toca esse símbolo mundial; e o presidente do Brasil... ah, o jornal Le Figaro, do qual colhi tais informações, não disse nada Sobre o assunto! Nossa visão cultural do mundo está sempre em atraso. Paciência! Enfim, para citar mais um pensamento, assim se pronunciou o presidente da comissão europeia, Jean-Claude Juncker: “Que triste espetáculo! Que horror! Eu partilho a emoção da nação francesa que também é nossa...”.


Não obstante tudo, o fato é que muitos outros espíritos de cultura elevada e conectada instantaneamente com as tragédias da história moderna não perdem tempo em juízos de valor sobre o que é realmente essencial na cultura moderna, mesmo que suas raízes estejas plantadas num passado distante que também nos atinge. Ironicamente, Notre-Dame significa “Nossa Senhora”! e, talvez, o mundo moderno tão tenha sentido a necessidade de invocar o seu nome como agora, em que o paganismo se espraia implacavelmente destruindo valores culturais, religiosos, axiológicos da vida, da existência humana, mas também da zona de espiritualidade de que o mondo hodierno tenta se esquecer. E quantos lábios pagãos não a invocaram sem o saber nessas trágicas circunstâncias de incêndio e purificação de que o mundo precisa urgentemente.
Notre-Dame de Paris, priez pour nous! Nossa Senhora de Paris, Rogai por nós! 


segunda-feira, 25 de março de 2019

Um país sem cultura é um país sem história


Um país sem cultura é um país sem história



Na contra mão do que acabei de afirmar na epígrafe, inicio essa abordagem enfatizando que um país sem história é um país sem cultura. Se não temos cultura, não temos história e vice-versa. Qual é mesmo a nossa história? Um autor francês, Jean de la Croix dizia que se não carregássemos dentro de nós mesmos a história da humanidade, seríamos como bússolas enlouquecidas. Então, não é assim que se encontra o Brasil, uma bússola enlouquecida? Aonde estamos indo? Basta olhar a situação em que a nação verde-amarela se encontra para percebemos que estamos cada vez mais longe dos ideais que estimularam outras nações em direção às suas conquistas.
Num rápido passeio pela história de outras nações, sobretudo europeias, descobrimos quanto sangue foi derramado pela conquista de direitos e emancipações da dependência das tiranias estrangeiras. Muito sangue foi derramado. Duas grandes guerras golpearem terrivelmente aqueles países, e os monumentos em homenagem aos que tombaram na guerra estão espalhados por toda a Europa. Sinais de agressões bélicas mapeiam os ambientes turísticos por que passamos. Nomes intermináveis podem ser lidos ao vento de reminiscências que nada parecem dizer, por exemplo, a um brasileiro, porque aqui nunca derramamos sangue para conquistar nossos direitos. Eles foram dados, gratuitamente, de modo especial, na Constituição Federal que foi promulgada em 1988, quando saíamos da bruma densa do que chamamos ditadura no Brasil. Sonhos e liberdades truncados pela força bruta do caudilhismo que grassava em todos os âmbitos sociais. Mas, nem de longe, poderíamos dizer, que aqui se derramou sangue, a fim de tingir a história de mais orgulho. Nenhuma nação se torna verdadeiramente autônoma e livre sem lutas e batalhas, mesmo que isso não signifique o derramamento de sangue mediante as tempestades belicosas que agitaram os povos. Todavia, infelizmente, foi isso o que aconteceu em várias partes do mundo. De fato, o patriotismo que estranhamos aqui, quando, por exemplo, se pede para cantar o hino nacional nas escolas, é sinal de orgulho para as nações que sabem o quanto pagaram para ser o que são. Famílias destroçadas pela guerra, porque o homem é igual em todas as estações do avanço histórico das civilizações, choraram seus mortos, suportaram os mutilados, experimentaram a miséria do comportamento humano, sentiram a saudade dos que nunca mais voltaram, perdidos nos campos de guerra, sem direito à dignidade de um funeral, e cujas lembranças nada mais são do que o nome recordado por seus entes queridos. No Brasil, vivemos tudo isso historicamente? Alguém me lembre, porque, como dizem que brasileiro não tem memória, é possível que eu tenha acabado de me esquecer.
Durante muito tempo, fomos sendo doutrinados para perder todos os valores que poderiam compor e constituir o sentido profundo da vida em sociedade. Saímos do campo da singularidade – porque a individualidade é uma característica do ser pessoal, do ser pessoa – para a dispersão do gênero, da degeneração coletiva, pois, quem se perde na massa, também perde sua própria identidade. Trabalhamos a cultura do “junto e misturado” e nos esquecemos de que nos misturar não é nos confundir na essência individual mais recôndita do nosso ser. Socialismo, comunismo, marxismo e tantos outros ismos foram engolindo nossa capacidade de percepção da nocividade de seus conceitos ou de sua efetividade prática em relação à própria dignidade humana. Ideologias que matam foram tomando conta do inconsciente coletivo como algo positivo, enquanto, na verdade, só favoreciam o pequeno grupo dos ditadores que comiam a carne viva de seus semelhantes, quando não assavam a lenha verde de suas vísceras em fornos crematórios. Era a vida humana degringolando em direção ao precipício do aviltamento brutal. A história passou, e muitos, alucinados por inspirações diabólicas como a fumaça do nazismo, insistem que um mundo sem Deus, longe de princípios religiosos, é a garantia de que as liberdades serão respeitadas e, os direitos, acautelados.
Antes mesmo dos períodos sombrios do advento da II Grande Guerra Mundial, espíritos altaneiros e pensadores, sobretudo cristãos, já anteviam que a civilização Ocidental post-Cristã escolheria “a Cristo sem a Cruz. Mas Cristo sem o sacrifício que reconcilie o mundo com Deus não passa dum pregador itinerante barato, efeminado, descolorido, que merece a popularidade pelo seu grande Sermão da Montanha, mas que merece também a impopularidade tanto pelo que afirmou acerca de sua Divindade, como pela sua doutrina sobre divórcio, juízo e inferno. Este Cristo sentimental é recordado num fundo de mil lugares-comuns, sustentado às vezes por etimologistas acadêmicos incapazes de ver a Palavra por causa das letras, ou deformado, até perder a fisionomia pessoal, pelo princípio dogmático de que tudo o que é Divino se reduz necessariamente a um misto. Sem a Cruz, ele não passa dum ardente precursor de democracia, ou dum humanitário propugnador da fraternidade sem lágrimas”. (Sheen). Em outras palavras, o escritor quis dizer que a verdade anunciada por Cristo nos encanta quando nos parece comodamente distante das exigências da vida voltada ao espírito de sacrifício e generosidade, mas que, ao mesmo tempo, nos choca e nos constrange quando a mesma verdade nos acusa. É muito fácil aplaudir verdades que não exigem muito do nosso comportamento, que não comprometem o risco de nossas ambições ou mesmo presunções. Vivemos a era dos direitos, buscamos a liberdade de nossos vícios, e nos esquecemos de que os deveres também tecem a filigrana de nossas atitudes, comprometendo-as diante do bem comum, da coletividade. Mas o brasileiro prefere a vida cômoda à guerra. Isso está no seu DNA, talvez, como herança de algum ancestral de outro continente. E a comodidade, filha da preguiça, parece condu-lo pelo caminho das facilidades, do jeitinho, da lei do menor esforço, desembocando na oportunidade da corrupção. Não aquela feita de milhões, mas aquela, pequena, gradual, progressiva, colhida na escuridão da noite moral, que pode levar aos milhões.
Como é triste ver quem deveria ser e dar exemplo ser levado para a cadeia num país tão rico de tudo, inclusive de ladrões! É o tecido social esgarçado pela podridão de algumas lideranças políticas, surrupiando montanhas do dinheiro que poderia ser investido na educação, na saúde, no saneamento básico, na segurança e, assim, por diante. Infelizmente, fomos habituados à passividade, de modo que, quase não nos indignados mais com toda essa sujeira que está aí. Tentamos defender a nossa parte, e pronto. O Brasil está aos frangalhos, depois de anos a fio de corrupção e ideologias degenerativas de tantos valores sociais, familiares, comunitários, religiosos, em que, supostos defensores da diversidade e, que, agora, diante de uma moldura social que se demonstra diferente de suas presunções, aparecem radicalmente intolerantes com quem pensa diferente. As redes sociais que o digam! Cada vez que eu posto um texto assim, com esse tipo de reflexão, descubro que muitos me bloqueiam no Facebook. Deve ser a incapacidade para acolher o diferente, o novo, mesmo considerando que não sou o dono da verdade, que apenas exponho, com toda a “liberdade de expressão” devida a todos, pois esse é um direito constitucional. Outros apelam para a religião, como se ela me tolhesse o direito de pensar e refletir. Mas a religião ou o ser religioso não pode ser uma mordaça na vida de ninguém, nem um tapa olho [como de pirata] que lhe favoreça a tiflose ou mesmo a cegueira intelectual. E o pior é quando torcemos para que o Brasil não dê certo, simplesmente porque o governo que está aí não foi o candidato em quem votamos. Comportamo-nos como aquele cara do avião que lia tranquilamente seu jornal num momento de turbulência que inquietava todos os passageiros. Alguém tentava adverti-lo de que o avião estava prestes a cair. E ele argumentou: “Deixe o avião cair! Ele não é meu!” Ou seja: burrice pura! Se o Brasil afundar, iremos todos juntos com ele. De qualquer modo, nessa precipitação de desejos controversos, muitos ditos intelectuais, artistas, cantores, escritores, cineastas, entre tantos ouros brasileiros, criticam o sistema político do país, mas moram fora, em cidades e nações civilizadas da Europa ou da América Latina. Assim fica mais fácil cuspir no prato em que comeram. Não que eu seja contra quem mora fora do Brasil. Pelo contrário, esse não é o problema. O problema é não permanecer aqui para nos ajudar na superação das dificuldades nacionais, enquanto atiram pedras de longe. Alguns mamaram demais nas tetas do Governo Federal, usando nosso dinheiro e, agora, percebem que a fonte secou.
Embarcamos quase que inconscientemente nas ondas da psicopatia social e ainda nos consideramos normais. O mundo está maluco mesmo, de pernas para o ar. Enquanto tentamos combater os vários tipos de preconceitos, construímos pessoas ainda mais doentes, com sentimentos mórbidos, incapazes de reagir com lucidez aos dramas da própria vida. São assassinatos nas escolas, massacres em ambientes sociais marcados pela presença inocente das pessoas, que não sabem o perigo que as ronda. Mas o que estamos fazendo dentro de nossas casas, com a educação de nossos filhos? Que tipo de testemunho somos para eles? Por que delegamos a responsabilidade por seus comportamentos à Escola ou ao Governo ou ao Estado? Até onde nos interessamos realmente pela mudança de suas atitudes e comportamentos, de modo especial quando eles se tornam agressivos, negativos? Por que nos furtamos à disciplina e à ordem dentro de casa, sem mais exigir o respeito e a obediência dos filhos? Por que o medo de frustrá-los ou fazê-los perceber que a vida tem seu preço e que as dificuldades devem nos ajudar a crescer? Certos traumas nunca mataram ninguém. E não estou defendendo situações que possam, de algum modo, marcar ou estigmatizar psicologicamente nossos filhos com propósitos intencionais de feri-los, mas de socorrê-los na hora da exigência de subordinação e tolerância com seus próprios erros. A formação é um caminho de sacrifício que deve envolver a todos, não apenas as escolas, mas também as famílias, a sociedade, o Estado, a Igreja (e por que não?) no sentido da integralidade do crescimento de cidadãos de bem, capazes de se colocarem no lugar dos outros, com altruísmo, empatia e compassividade. Numa palavra, desde cedo, devemos orientar os filhos para trabalharem em si mesmos a chamada “Inteligência Emocional”, algo sobre o que, infelizmente, sabemos muito pouco ou quase nada.
Altruísmo e empatia são termos correlatos. A palavra não é minha, mas de um grande estudioso do assunto, Daniel Goleman, Ph.D.: “Além dessa ligação imediata entre empatia e altruísmo nos encontros pessoais, Hoffman sugere que a própria capacidade de afeto empático, de colocar-se no lugar de outra pessoa, leva as pessoas a seguir certos princípios morais”. E ele recorda um dos versos mais famosos da literatura inglesa: “Nunca pergunte por quem dobra o sino; ele dobra por ti”. (Goleman). E isso significa o que, afinal de contas? Significa que todos nós fazemos parte do tecido social que, quando se deteriora, atinge também a cada um de nós. Somos filhos da mesma humanidade podre que nos abraça, de modo que ninguém está acima do bem e do mal. Como afirmou o mesmo autor acima referido: “[...] a dor do outro é nossa. Sentir com o outro é envolver-se”. (Goleman). Na verdade, trata-se de uma dinâmica da vida social que começa dentro de casa, ainda na primeira infância e que, depois, se estende sobre todos os estágios da formação da existência da pessoa.