Jejum como atitude
penitencial
O jejum deve ser fruto de uma necessidade
penitencial no sentido profundo do desejo de conversão. Portanto, não se trata
apenas de uma prática de dieta ou vontade de emagrecer por meio dele, embora
nos tempos modernos muitas pessoas recorram ao jejum, buscando melhorar seu
condicionamento físico, o que não seria um problema. Contudo, se essa fosse a
intenção primeira de quem se dispõe a fazer algum tipo de sacrifício pela
abstenção de alimentos, estaríamos muito distantes do propósito da reflexão, e
ela nada teria a nos dizer sobre a necessidade da “humilhação da alma” diante
de Deus, segundo uma das expressões judaicas relacionadas à prática do jejum
que descrevemos. Todavia, o
jejum que Deus pede do seu povo deve ser reflexo do comportamento mais
condizente com o espírito do próprio jejum, isto é, ele deve expressar também práticas
de paz e concórdia em meio aos irmãos. Essa é a razão da crítica dos profetas
diante de atitudes meramente externas do jejum que não revelam o sentido
profundo dos desejos do coração.
Na visão de Anselm Grün, que estudou profundamente
os vários sentidos do verdadeiro jejum, “a discórdia nasce da ausência de
medida, da dominação pelas paixões e pelos instintos. O jejum submete o ser
humano à disciplina, liberta-o do domínio das suas paixões e, assim,
proporciona-lhe a paz interior. [...] Desse modo, nos Padres da Igreja,
evidencia-se continuamente uma compreensão do jejum que pressupõe a unidade
entre corpo e alma. Eles nunca se preocupam simplesmente com a saúde do corpo,
tampouco simplesmente com a cura do espírito”. (Grün,
2013, p. 30). Dentro dessa dinâmica que envolve a percepção do homem integral,
“o jejum jamais é uma simples disciplina exterior, uma obra que podemos
apresentar a Deus, e sim um exercício que visa conduzir todo o ser humano a um
estado adequado. O jejum corporal tem que estar acompanhado de um jejum
espiritual, ou melhor: o jejum corporal bem compreendido é sempre, ao mesmo
tempo, um jejum espiritual”. (Grün,
2013, p. 31). Essa compreensão é muito significativa e está subjacente à dura
crítica que Cristo faz aos fariseus, preocupados apenas com o ritualismo
externo, que não permeia o espírito nem o motiva à conversão sincera. É o que
acontece quando Jesus fala do fariseu e do publicano que subiram ao tempo para
rezar. O fariseu se vangloriou tanto, inclusive por jejuar duas vezes por
semana, que não voltou para casa justificado. No seu interior, se exaltava e
desprezava os outros. (Lc 18,9-14). Qualquer pessoa consciente de suas atitudes
sabe que adequar o corpo aos imperativos do espírito não é tarefa fácil.
Podemos fingir diante dos outros, mas nunca disfarçaremos a aflição que
carregamos dentro de nós pelos vendavais das incoerências que nos contorcem
interiormente. Nesse contexto, a conversão é uma caminhada em direção a Deus e
contra nós mesmos, contra nossos instintos e apetites, contra todas as frestas
abertas na alma pela concupiscência que nos dilacera. Que tremendo desafio!
A “concupiscência” traduz, de modo negativo, todos
os anseios do espírito que nos puxam para baixo, que não nos permitem
elevar-nos à transcendência. A concupiscência é a casa dos nossos pecados. É o
olimpo dos deuses infernais que nos perturbam, que nos desorientam no caminho
da perfeição.
No contexto joanino, a “concupiscência” está
relacionada ao desejo das coisas especialmente proibidas. Na verdade, esse é o
terreno de nossas lutas, sobretudo, espirituais: vencer em nós o que contraria
a vontade de Deus. Desse modo, epithymia
e kosmos são termos correlatos, pois
ambos participam do mesmo universo teológico do contexto soteriológico. Essa é
a razão pela qual “o mundo em sentido teológico é o mundo como cenário do
processo da salvação; ele não é somente o cenário, mas é um dos protagonistas
do drama, pois o mundo é a humanidade decaída, alienada de Deus e hostil a Deus
e a Jesus Cristo. Essa concepção é frequentíssima nos escritos paulinos e em
Jo, menos frequente nas cartas, quase totalmente ausente nos evangelhos
sinóticos. O mundo está em oposição a Deus: o espírito do mundo é contrário ao
espírito de Deus (1Cor 2,12)”. (Mckenzie,
1983, p. 637).
Numa profunda reflexão sobre “Blaise Pascal, conversão e apologética”, Gouhier assevera que “a
alma convertida encontra-se voltada para Deus. Ora, o amor de Deus só pode ser
exclusivo; ele exclui, portanto, o amor de si. Essa é a própria essência da
vida espiritual. Mas, na união propriamente mística, o amor de si desaparece
com o eu; à ausência do eu corresponde um estado de indiferença
a tudo o que lhe concerne: o amor exclusivo de Deus é também o esquecimento de
si. Na perspectiva de Pascal, o aniquilamento proclama que a queda fez cair meu
ser sob a cólera de Deus e que faço minha essa cólera: a conversão substitui o
amor-próprio, que desde o pecado põe o eu
no lugar de Deus, pelo amor de Deus [...]”. (Gouhier,
2005, p. 77). É, pois, justamente na direção da conversão, a metanoia, para usar a expressão grega,
que deve nos levar o jejum, mesmo que haja quem defenda a abstinência de
alimentos como um esforço de busca de si, de sua identidade mais profunda, o
que é também evidentemente válido.
Na visão de Balbinot, por exemplo, “o jejum está
relacionado à experiência humana intencional de privação dos produtos que
suprem as necessidades fisiológicas. Por que se faria isso? Não seria uma ação
conta a própria natureza infligir o castigo contra si próprio? O jejum é a
renúncia voluntária de saciar-se fisicamente com a intenção de estar em maior
sintonia com as questões ontológicas interiores, que determinam o sentido do
ser. [...] o jejum, para muitas pessoas, não passa de um tempo de espera pela
comida, quando, na verdade, deveria ser um tempo de reflexão sobre a vida e o
ser. A fome não pode ser confundida com o jejum, pois é uma ameaça à
existência. O jejum é ação pedagógica e espiritual que possibilita vivenciar
uma situação de carência para entender e aprender a viver bem, mesmo em
situações extremas”. (Balbinot,
2015, p. 48-49).
A santidade é outro apelo da Igreja numa trajetória
de vida que dura a existência inteira, até o fim, até o céu. Por isso, no
contexto da espiritualidade do jejum, abre-se, de igual modo, a senda dos
desafios para a santidade nos conturbados tempos modernos.
Tanto quanto a oração, o jejum também deve nos conduzir a humildade, pois ele “nos confronta com nós mesmos, com todos os nossos desejos e necessidades, nossos sentimentos e pensamentos, com nossas sombras. Reconhecer as próprias sombras nos torna mais humildes. Além disso, o jejum nos conduz aos nossos limites. [...] O jejum nos confronta com nossa própria carência. Não somos suficientes para nós mesmos, não possuímos o sossego dentro de nós. Quem está sentado diante de Deus e sente fome sente também seu anseio de satisfação”. (Grün, 2013, p. 46-47). Numa palavra, pelo jejum, podemos reconhecer nossas insuficiências mais profundas e, assim, recorrer ao auxílio divino que nos plenifica, com o dom da graça sobrenatural. (Do livro “O sentido do jejum cristão, p. 47-56 – Pe. Gilvan Rodrigues dos Santos).