domingo, 23 de junho de 2019

Ana Medina - Cronoradiografia de um Médico


Ana Maria Medina
Cronoradiografia de um médico


Venho de ler o “ensaio biográfico” da amiga Ana Maria Medina – carinhosamente cognominada de minha “madrinha intelectual” – sobre a vida de um médico sergipano, boquinense, que estendeu sua experiência na medicina sobre os telhados do mundo. Refiro-me à obra sobre o Dr. Valmir Fernandes Fontes (2019). Na verdade, a cultura das letras é um caminho que ninguém percorre sem esforço. Com efeito, imaginação, intuição e criatividade no brilhantismo dos códigos da comunicação gráfica também é fruto do empenho, da investigação e da especulação que se imbricam nas linhas cruzadas do pensamento. A ideia de “ensaio biográfico” projeta as intenções do espírito na dimensão profunda das evidências de uma personalidade. O ensaio é, pois, uma tentativa, uma faísca luminosa no céu plúmbeo dos esgarços históricos pessoais que acobertam a quase consciência, que tenta buscar a si mesma, nas reminiscências existenciais do passado. Um “ensaio” é como um “esboço”, o que, em nada, diminui o valor da obra. Pelo contrário, segundo Jean Guitton, em colóquios imaginativos com Blaise Pascal, mediante excogitações filosóficas como sinopses de final de cena no pôr do sol da existência, “os esboços são sempre mais belos”. Essa é também a grandeza do “ensaio”.
Do vocabulário, talhado à maneira da linguagem apropriada para a narrativa, adentramos com a autora no universo cultural e histórico, não apenas da família do homenageado, mas também no contexto social da época. Eram tempos diferentes dos nossos, em que o primor da gentileza das tradições parece desbotar o brio dos amores modernos. Assim, história, tradição e cultura se misturam na estampa do tecido literário da trama. Efetivamente, a literatura possui o poder e a magia de abrir nosso espírito aos ventos de recordações do passado, colocando-nos dentro do ambiente emoldurado pela estatura eloquente da palavra. Desse modo, traços específicos de um tipo de erudição cronobiográfica enfronham décadas de formação e relevo social da casta dos Fontes, de cuja prole descende o Dr. Valmir Fernandes, que protagoniza o “Ensaio Biográfico” de Ana Maria Medina, prima do referendado nas páginas de sua obra. Sem dúvida, exaltada por sentimentos familiares em relação aos fulgores de personagens ilustres e positivamente influentes no meio social em que se destacaram pela profissão escolhida e abraçada, não poderia desconsiderar o estudo da figura em relevo na obra. Mas não somente por impulso sanguíneo. Na verdade, é preciso ter muita lucidez e sensibilidade para entender e perceber que, do seio de famílias simples na origem dos rebentos de seus troncos, também nascem vultos, celebridades importantes, que expandem sua sombra sobre a sociedade, contribuindo, de maneira mais ampla, para o bem da coletividade. É o que acontece, por exemplo, com a dinâmica da vida do médico, que não se deteve nos umbrais da medicina caseira, residual, íntima, mas se permitiu ir além fronteiras com suas pesquisas rigorosamente científicas e tecnológicas, inclusive publicando artigos em revistas de renome internacional. Porém, não apenas pelos artigos. De fato, “Suas contribuições também ficaram registradas em centenas de trabalhos científicos publicados em revistas e livros especializados, vários dos quais premiados, tanto no Brasil quanto no Exterior”. Segundo Sotero, citado pela autora, “A literatura médica internacional é a fonte bibliográfica da genialidade deste sergipano”.
A obra é leve, fruitiva e aprazível, no sentido da satisfação intelectiva que nos causa, embora traga consigo a exigência terminológica do ambiente descrito e do estilo condigno à envergadura e à imponência do Dr. Valmir Fernandes Fontes. Entre superstições e folclores da cultura nordestina dos tempos de antanho, como “enterrar o umbigo no mourão da cancela”, a fim de que o indivíduo se prenda ao lugar e tenha sorte, entre outras argumentações e crendices – saci-pererê, caipora, como reflexos de mitos afrodescendentes – ela também revela o gosto pela sabedoria popular, enriquecendo o enredo para deleite do ledor. Dessarte, ela foge à monotonia de obras enfadonhas pela ausência de dinamicidade literária, sem falar da estética visual sobre a qual o olhar descansa, perlustrando o caminho das ideias e da impressão das figuras. Desse modo, sob as cinzas do passado, reacendido por suas memórias, também descobrimos rasgos educacionais que experimentamos na era da “palmatória”. De fato, ninguém gosta de apanhar por ignorância, pois, diferentemente da concepção da época, não se tratava da “docilização do corpo”, mas era um constrangimento para quem batia e para quem recebia o “bolo” dos mais sabidos. Mesmo assim, na contraluz entre o passado e o presente, era o tempo “em que criança não questionava: obedecia”.
À mercê de outro ângulo de percepção, a vitalidade também escorre pelos cantos sombrios, tristes e obscuros de qualquer existência, de modo que vida e morte se encontram nos ingredientes etnolinguísticos da literatura biográfica da autora. Há sofrimentos e mortes que pendem sobre a família diante dos desafios da cronologia consanguínea. Mas as perdas familiares não conseguem deter os passos determinados da sobrevivência. E a responsabilidade que tomba sobre os ombros dos primogênitos demonstra, de igual modo, a ousadia dos fortes nas batalhas da vida. Isso também não faltou à vida do Dr. Valmir Fernandes Fontes. Mesmo fazendo parte dos corolários do nascimento, a morte sempre causa incômodos ao espírito humano. Na própria expressão da escritora, “a tragédia se abate sobre a família, levando o chefe para o insondável mistério da morte”. Diante da perda irremediável, “João, o primogênito, de apenas 17 anos, investiu-se da couraça que só os bravos têm sobre os ombros para sustentar e afiançou à mãe e ao avô que iria tocar a Fazenda Campo da Onça, e que nada iria faltar à família, mesmo que abdicasse de seus planos pessoais”.
Por certo, da leitura do livro, da simetria de suas palavras e da extensão de seu conteúdo, muitas vertentes de reflexão e entretenimentos intelectuais podem brotar da semeadura das páginas. Todavia, diferentemente da colheita das plantações, que fazem germinar o que ali fora depositado, no caso da literatura, seus frutos dependem também da ótica do leitor e do ponto de vista da realidade que açambarca seus conhecimentos. De fato, a sinfonia das letras tem o tom da sensibilidade dos músicos. Sobrevoando os campos da filografia espontânea e envolvente, a escritora, como em tantos outros livros seus, permite-nos vislumbrar horizontes mais profundos e longínquos, que nos mergulham além da superfície do texto, lá, onde o sabor das palavras revela a riqueza da elaboração e o segredo dos argumentos da escritura. Discorrendo sobre o passado de uma vida, tudo parece tão rápido e efêmero sob a esferografia da pena. No entanto, entre o acontecido e o dito em segundos, a extensão do tempo traz consigo a glória dos imortais e o brilho de suas façanhas.
Na verdade, a obra trata da cronoradiografia de um médico, isto é, uma espécie de raio “X” existencial do eminente galardoado. Antes, porém, de concluir minhas apreciações sobre a constituição sincrônica da obra, não poderia deixar de externar a grata surpresa e o gáudio que me permearam a alma por me encontrar na história do livro quando se fala de “Benjamim e Bebé [Elizabeth]”. No sobressalto da curiosidade, procurei saber se se tratava de uma senhora que, antes de falecer, eu lhe dera o sacramento da Unção dos Enfermos, no Instituto do Coração, na Capital, pois ela era muito religiosa e bastante conhecida em Aracaju. Eu também a conhecia! Felizmente, mesmo em contextos de vidas diferentes, em conjunturas temporais de aproximação de uns com os outros, ainda é possível o milagre do encontro e do reencontro. Então, parabéns à Ana Maria Medina, a autora, pela magnanimidade da obra, e ao homenageado, o Dr. Valmir Fernandes Fontes, “pela figura de homem representativo da dignidade humana”, por ser “competente, altruísta, desprovido das vaidades egoicas”, como afirmou em depoimento a Dra. Diana Maria e, sobretudo, pelo testemunho humano e profissional no mister de sua vida.