Ana Maria Medina
Cronoradiografia de um
médico
Venho
de ler o “ensaio biográfico” da amiga Ana Maria Medina – carinhosamente
cognominada de minha “madrinha intelectual” – sobre a vida de um médico
sergipano, boquinense, que estendeu sua experiência na medicina sobre os
telhados do mundo. Refiro-me à obra sobre o Dr. Valmir Fernandes Fontes (2019).
Na verdade, a cultura das letras é um caminho que ninguém percorre sem esforço.
Com efeito, imaginação, intuição e criatividade no brilhantismo dos códigos da
comunicação gráfica também é fruto do empenho, da investigação e da especulação
que se imbricam nas linhas cruzadas do pensamento. A ideia de “ensaio
biográfico” projeta as intenções do espírito na dimensão profunda das
evidências de uma personalidade. O ensaio é, pois, uma tentativa, uma faísca
luminosa no céu plúmbeo dos esgarços históricos pessoais que acobertam a quase
consciência, que tenta buscar a si mesma, nas reminiscências existenciais do
passado. Um “ensaio” é como um “esboço”, o que, em nada, diminui o valor da obra.
Pelo contrário, segundo Jean Guitton, em colóquios imaginativos com Blaise
Pascal, mediante excogitações filosóficas como sinopses de final de cena no pôr
do sol da existência, “os esboços são sempre mais belos”. Essa é também a
grandeza do “ensaio”.
Do vocabulário, talhado
à maneira da linguagem apropriada para a narrativa, adentramos com a autora no
universo cultural e histórico, não apenas da família do homenageado, mas também
no contexto social da época. Eram tempos diferentes dos nossos, em que o primor
da gentileza das tradições parece desbotar o brio dos amores modernos. Assim,
história, tradição e cultura se misturam na estampa do tecido literário da
trama. Efetivamente, a literatura possui o poder e a magia de abrir nosso
espírito aos ventos de recordações do passado, colocando-nos dentro do ambiente
emoldurado pela estatura eloquente da palavra. Desse modo, traços específicos
de um tipo de erudição cronobiográfica enfronham décadas de formação e relevo
social da casta dos Fontes, de cuja prole descende o Dr. Valmir Fernandes, que
protagoniza o “Ensaio Biográfico” de Ana Maria Medina, prima do referendado nas
páginas de sua obra. Sem dúvida, exaltada por sentimentos familiares em relação
aos fulgores de personagens ilustres e positivamente influentes no meio social
em que se destacaram pela profissão escolhida e abraçada, não poderia
desconsiderar o estudo da figura em relevo na obra. Mas não somente por impulso
sanguíneo. Na verdade, é preciso ter muita lucidez e sensibilidade para
entender e perceber que, do seio de famílias simples na origem dos rebentos de
seus troncos, também nascem vultos, celebridades importantes, que expandem sua
sombra sobre a sociedade, contribuindo, de maneira mais ampla, para o bem da
coletividade. É o que acontece, por exemplo, com a dinâmica da vida do médico,
que não se deteve nos umbrais da medicina caseira, residual, íntima, mas se
permitiu ir além fronteiras com suas pesquisas rigorosamente científicas e
tecnológicas, inclusive publicando artigos em revistas de renome internacional.
Porém, não apenas pelos artigos. De fato, “Suas contribuições também ficaram
registradas em centenas de trabalhos científicos publicados em revistas e
livros especializados, vários dos quais premiados, tanto no Brasil quanto no
Exterior”. Segundo Sotero, citado pela autora, “A literatura médica
internacional é a fonte bibliográfica da genialidade deste sergipano”.
A
obra é leve, fruitiva e aprazível, no sentido da satisfação intelectiva que nos
causa, embora traga consigo a exigência terminológica do ambiente descrito e do
estilo condigno à envergadura e à imponência do Dr. Valmir Fernandes Fontes.
Entre superstições e folclores da cultura nordestina dos tempos de antanho, como
“enterrar o umbigo no mourão da cancela”, a fim de que o indivíduo se prenda ao
lugar e tenha sorte, entre outras argumentações e crendices – saci-pererê,
caipora, como reflexos de mitos afrodescendentes – ela também revela o gosto
pela sabedoria popular, enriquecendo o enredo para deleite do ledor. Dessarte,
ela foge à monotonia de obras enfadonhas pela ausência de dinamicidade
literária, sem falar da estética visual sobre a qual o olhar descansa, perlustrando
o caminho das ideias e da impressão das figuras. Desse modo, sob as cinzas do
passado, reacendido por suas memórias, também descobrimos rasgos educacionais
que experimentamos na era da “palmatória”. De fato, ninguém gosta de apanhar
por ignorância, pois, diferentemente da concepção da época, não se tratava da
“docilização do corpo”, mas era um constrangimento para quem batia e para quem
recebia o “bolo” dos mais sabidos. Mesmo assim, na contraluz entre o passado e
o presente, era o tempo “em que criança não questionava: obedecia”.
À mercê
de outro ângulo de percepção, a vitalidade também escorre pelos cantos
sombrios, tristes e obscuros de qualquer existência, de modo que vida e morte
se encontram nos ingredientes etnolinguísticos da literatura biográfica da
autora. Há sofrimentos e mortes que pendem sobre a família diante dos desafios
da cronologia consanguínea. Mas as perdas familiares não conseguem deter os
passos determinados da sobrevivência. E a responsabilidade que tomba sobre os
ombros dos primogênitos demonstra, de igual modo, a ousadia dos fortes nas
batalhas da vida. Isso também não faltou à vida do Dr. Valmir Fernandes Fontes.
Mesmo fazendo parte dos corolários do nascimento, a morte sempre causa
incômodos ao espírito humano. Na própria expressão da escritora, “a tragédia se
abate sobre a família, levando o chefe para o insondável mistério da morte”. Diante
da perda irremediável, “João, o primogênito, de apenas 17 anos, investiu-se da
couraça que só os bravos têm sobre os ombros para sustentar e afiançou à mãe e
ao avô que iria tocar a Fazenda Campo da Onça, e que nada iria faltar à
família, mesmo que abdicasse de seus planos pessoais”.
Por
certo, da leitura do livro, da simetria de suas palavras e da extensão de seu
conteúdo, muitas vertentes de reflexão e entretenimentos intelectuais podem
brotar da semeadura das páginas. Todavia, diferentemente da colheita das
plantações, que fazem germinar o que ali fora depositado, no caso da
literatura, seus frutos dependem também da ótica do leitor e do ponto de vista
da realidade que açambarca seus conhecimentos. De fato, a sinfonia das letras
tem o tom da sensibilidade dos músicos. Sobrevoando os campos da filografia
espontânea e envolvente, a escritora, como em tantos outros livros seus, permite-nos
vislumbrar horizontes mais profundos e longínquos, que nos mergulham além da
superfície do texto, lá, onde o sabor das palavras revela a riqueza da
elaboração e o segredo dos argumentos da escritura. Discorrendo sobre o passado
de uma vida, tudo parece tão rápido e efêmero sob a esferografia da pena. No entanto,
entre o acontecido e o dito em segundos, a extensão do tempo traz consigo a
glória dos imortais e o brilho de suas façanhas.
Na
verdade, a obra trata da cronoradiografia
de um médico, isto é, uma espécie de raio “X” existencial do eminente
galardoado. Antes, porém, de concluir minhas apreciações sobre a constituição
sincrônica da obra, não poderia deixar de externar a grata surpresa e o gáudio
que me permearam a alma por me encontrar na história do livro quando se fala de
“Benjamim e Bebé [Elizabeth]”. No sobressalto da curiosidade, procurei saber se
se tratava de uma senhora que, antes de falecer, eu lhe dera o sacramento da
Unção dos Enfermos, no Instituto do Coração, na Capital, pois ela era muito
religiosa e bastante conhecida em Aracaju. Eu também a conhecia! Felizmente,
mesmo em contextos de vidas diferentes, em conjunturas temporais de aproximação
de uns com os outros, ainda é possível o milagre do encontro e do reencontro.
Então, parabéns à Ana Maria Medina, a autora, pela magnanimidade da obra, e ao
homenageado, o Dr. Valmir Fernandes Fontes, “pela figura de homem representativo
da dignidade humana”, por ser “competente, altruísta, desprovido das vaidades
egoicas”, como afirmou em depoimento a Dra. Diana Maria e, sobretudo, pelo
testemunho humano e profissional no mister de sua vida.