Se Deus existisse
Diálogos
com um jovem ateu
Durante
o tempo em que eu vivi na Europa, de 2002 a 2006, por quase três anos seguidos,
todos os sábados eu pegava um trem que me levava pelas terras italianas, de Roma
em direção à Toscana, no Norte. O trem seguia, depois de eu ter descido em
Orbetello. Era um quase ritual sagrado, permanente. O encontro com pessoas
estranhas e de todo tipo, de todas as nações, era algo comum, uma vez que a
Itália, como muitos outros países da Europa, tornara-se uma verdadeira
encruzilhada de caracteres e estereótipos engraçados e diferentes no imenso e
vasto corredor do turismo local. Entre eles, eu jamais seria reconhecido como
latino americano, senão pelo sotaque que denunciava minha origem
latino-americana. Do contrário, mudo e quieto, eu era confundido com indiano,
marroquino ou qualquer outro modelo oriundo de terras mais distantes da Europa.
Quando por exemplo, em 2004, uma onda de atos terroristas na Inglaterra e na
Espanha também ameaçava chegar à Itália, era normal, indo e voltando da
Pontifícia Universidade Gregoriana, ouvir nas rádios italianas das estações do
metrô o seguinte comunicado: “Se você encontrar algum suspeito, por favor,
queira denunciá-lo”! Então, a gente se entreolhava e dava aquela risada, quase
indiscreta, porque todo mundo parecia suspeito no turbilhão de caricaturas
humanas, tão diversificadas e estranhas quanto carregadas de suspeitas meio
evidentes. Eu, então, com a cara de marroquino nem saberia o que dizer!
Em
muitas dessas idas e vindas, certa ocasião, deparei-me com um passageiro não
muito habitual, que, por iniciativa própria, apresentou-se dizendo que “odiava
os da minha [tua] raça” – os padres da Igreja Católica de Roma – mas que, por
acaso, tinha “ido com a minha cara”. A partir de então, eu, que geralmente
durmo em qualquer veículo ou transporte, se eu não estiver conduzindo-o, sempre
tive a desconfiada companhia daquele rapaz, cara de jovem rebelde, cabelos
longos, estendidos sobre os ombros ou amarrado qual “rabo de cavalo”, tentando
contrariar o “politicamente correto”, em diálogos às vezes cansativos para mim,
às vezes divertidos e curiosos, porque sua franca espontaneidade não se
intimidava em abordar os mais diversos assuntos para um sacerdote que acabara
de conhecer. Confesso que, mesmo meio temeroso, eu me divertia com ele. Na
verdade, não havia maldade em seu discurso, mas a prudência não me permitia
ficar à vontade com meu amigo, tão ilustre quanto desconhecido. Ele dizia falar
vários idiomas, afirmava ser escritor, que havia publicado um livro na
Inglaterra, por medo da repressão da Igreja de Roma, na Itália – devia ser um
livro não muito católico – e, claro, sendo um bom italiano, nunca deixou de
corrigir meu linguajar. Com ele, que falava da importância de conhecer bem os
vocábulos de uma língua estrangeira, aprendi a falar corretamente expressões
não muito fáceis para um estrangeiro, mesmo de língua neolatina, em que vários
termos assumem a mesma grafia e o mesmo significado, sem falar dos termos que
tentamos “inventar”, por aproximação com a nossa linguagem.
Nem
sempre as pessoas corrigem o estrangeiro, com medo de estarem ferindo a
sensibilidade do outro. É verdade que também não devemos exagerar, como fazia
uma freira em uma comunidade religiosa, aonde, vez por outra, eu ia substituir
um amigo sacerdote que rezava missa aos domingos para elas. A irmãzinha era tão
exigente que não me dava trégua, era uma correção atrás da outra. O fato é que
eu tinha acabado de chegar do Brasil, embora já conhecesse a língua, a ponto de
compreendê-la bem. Mas sempre tropeçava nas regras gramaticais que são mais
complexas do que as da língua portuguesa, sobretudo, em relação às infinitas
preposições que mapeiam o tecido linguístico daquele rebento latino. Basta
dizer que para um estrangeiro saber colocar bem determinadas preposições
italianas no justo e correto lugar do discurso ou da proposição, é preciso que
ele esteja vivendo lá, há, pelo menos, dois anos. De fato, depois desse tempo,
a verborreia parece fluir mais tranquilamente. Então, certa ocasião, eu já
estava muito aborrecido com a freirinha e, na espontaneidade provocativa de
nordestino, perguntei-lhe: “Por acaso, eu nasci na Itália? Sou italiano?”. E
ela parou de me amolar. Mas ela tinha razão. Se você, caro leitor, quiser saber
o quanto é incômodo ouvir alguém falando mal a sua língua, observe os
estrangeiros que passeiam entre nós, inclusive, alguns dos quais já moram no
Brasil há muito tempo, mas não conseguem dobrar a língua conforme o traquejo
exigido pela bela língua portuguesa, a “última flor do Lácio”. Quando, amiúde,
eu deveria fazer a homilia, em italiano, durante a missa, às vezes, dava-me
vontade de deitar e dormir – ou de chorar – no altar até passar o momento
espinhoso da exposição da prédica. Até hoje não sei bem para quem era pior: se
para eu falar ou se para o auditório me ouvir. Nunca descobri para quem era
mais difícil. O jovem ateu ajudou-me um pouco nesse sentido.
Sim!
Logo de cara, aquele jovem se apresentou dizendo que era “ateu” por convicção,
uma atitude da qual ele não parecia muito consciente nem convicto. E afirmava,
categoricamente, que se Deus existisse, ele teria de se explicar para Ele. Não
sabia o porquê de ter vindo ao mundo sem ser consultado, o porquê dos problemas
da vida, das incongruências do destino não desejado nem sonhado. Se dependesse
de sua vontade, não teria vindo parar no planeta terra. Para tudo isso e para
tantos outros conflitos pessoais e relacionais, de interrogações e buscas para
consolar seu espírito, Deus teria de se ver com ele. Pura ousadia de
adolescente desencaminhado pelas razões da descrença. Vivia problemas
familiares, tinha brigado com o pai, distanciou-se da irmã por conta disso, e
acabou indo morar sozinho. Havia se tornado um adolescente frio e indiferente,
tendo de enfrentar a vida com as convicções de quem pensava não ter encontrado
o rumo certo. Demonstrava-se perturbado, revoltado, inquieto, como é próprio da
juventude moderna. Tempos depois, descobri a motivação de sua viagem semanal em
direção à Toscana, a uma pequena cidade daquele interior, cujo nome não lembro
mais. Ali, ele se dirigia para encontrar a sua namorada. Estava apaixonado e
vivia um romance que, a cada sete dias, fazia-o despertar cedo para ir ao
encontro de sua amada. Ele nunca entrou em detalhes sobre o seu namoro, mas o
todo de seu comportamento denunciava o jeito dos flertes não muito inocentes
dos “namoridos” modernos. Eu, simplesmente, reservava-me à discrição própria
das intuições sacerdotais. A verdade é que eu não sei que tipo de confidência
ele encontrou em mim, um daqueles a quem dizia, francamente, “odiar”, de modo a
poder revelar “segredos” de sua vida que nem todo mundo tem consciência de
fazê-los, sem escrúpulos, quanto mais de revelá-los a um desconhecido.
Das
muitas reações que eu já presenciei das pessoas por se depararem com um
sacerdote – de quem muitos correm como o diabo foge da cruz – confesso que a
dele foi uma das mais desconcertantes e surpreendentes, pela franqueza da
abertura e sinceridade com que ele despejava a sua vida diante de mim. De todos
os pecados do Decálogo aos quais fazia referências, de modo inteligente e
brilhante – ele tinha consciência das leis divinas, ou pelo menos tinha ouvido
falar delas – ele sabia, claramente, de, pelo menos, nunca ter matado. Todos os
outros pecados, ele os cometia qual fora da lei, sem remorso nem compunção
interior, o que mo dizia abertamente. E disparava, com franqueza assustadora:
“Assim como vocês ficam indignados quanto encontram alguém que contraria todas
as regras, todas as leis, eu, do mesmo modo, fico indignado quando encontro
alguém que se comporta corretamente”. De fato, seu bilhete no trem era sempre o
de meia passagem, quando não, de criança, depois dizia ao cobrador – diante de
mim, tendo confessado a suposta esperteza de seus delitos – que na hora em que
tentou solicitar o bilhete normal, a máquina lhe dera outro. Se, por exemplo,
ele subia ao trem sem o ingresso, dizia que não teve onde comprá-lo, que a
máquina estava quebrada. No geral, ele tentava safar-se, assim, com desculpas
pouco convincentes, e parecia sair-se “bem”. Se comprava um pacote de biscoito
para o lanche, o refrigerante era roubado. Ou seja, ele nunca estava em crédito
com as coisas que usava e das quais usufruía. Era um contraventor ousado e
teimoso. Um reincidente obstinado na arte de contrariar os bons costumes. Certa
feita, assentado à minha frente, ele teve a ousadia de preparar um cigarro de
“marijuana”, uma droga que fez questão de apresentar-me, perguntando: “Sabe o
que é isso aqui? Marijuana! Se a polícia me pegar, no mínimo, levarei um ano ‘di galera’
[de cadeia!]”. Eu não pudera acreditar! Imaginem se ele fosse flagrado, falando
comigo! Aliás, entre as muitas perguntas que ele me fazia, tanto quanto à vida
pessoal quanto à vida eclesial, uma era sobre se nós, da Igreja, usávamos
droga. Não era que fosse uma curiosidade apenas em relação à droga em si mesma,
mas à sua qualidade. Como ele dizia ter uma admiração imensa pela Igreja
Católica, enquanto instituição poderosa e influente em todo o mundo, se nós
usássemos droga, seria o máximo, porque, certamente, tinha de ser “uma droga de
primeiríssima qualidade!”.
Na
verdade, muitas de suas indagações eram marcadas pelo cinismo franco e
debochado, estampado no rosto de sua aparente ingenuidade. Mas eu me divertia
com sua desfaçatez provocante e incisiva. Com efeito, essa foi a ponte que ele
encontrou para dar vazão à dialética das inquietações emergenciais de seu
espírito. Aprendemos muito com o entretenimento aberto pela disposição de sua
iniciativa. Um dia, ele perdeu o horário do trem e foi pela estrada pedindo
carona, o que estava habituado a fazer. Então, enviou-me uma mensagem pelo
celular, informando-me e pedindo ajuda ao “meu” Deus: “Eu perdi o trem! Cadê o
seu Deus para me ajudar, agora? Reze por você e por mim, quem sabe se ele não o
escuta?!”. Ele, que afirmava ser satanista,
com a condição de que nunca matara ninguém, não levando a sério a prática de
alguns rituais dessa “religião”, não perdia nenhuma oportunidade para
ridicularizar a minha fé. Também, reconhecia que estávamos em lados opostos:
“Você escolheu o Super, o Máximo, o Todo-poderoso, enquanto eu escolhi ficar do
outro lado”. Poderia um ateu expressar-se, assim, convicto de que existe um ser
Superior a tudo e a todos, fonte e razão de ser de todas as criaturas? Não
seria um discurso contraditório, ambivalente, de uma mesma origem, bifurcado
pelos caminhos do cérebro? Meu amigo ateu não era ateu. Talvez fosse alguém
perdido dentro de suas próprias hesitações cognoscitivas, intelectuais. Sua
afirmação de ateísmo parecia acender na consciência o vislumbre da fé na
penumbra de suas convicções. Com efeito, o ateísmo teórico nem sempre coincide
com o ateísmo prático, pois a definição não categórica de suas linhas de pensamento
e vivência concreta pode contrariar a certeza aparentemente consciente de quem
imagina saber que direção tomar. E é aí onde se instala a confusão dialética do
suposto ateu. Por isso que, na afirmação do Concílio Vaticano II, “pela palavra
ateísmo designam-se fenômenos bastante diversos entre si. Enquanto Deus é
expressamente negado por uns, outros pensam que o homem não pode afirmar
absolutamente nada sobre Ele. Alguns, porém, submetem a exame o problema de
Deus por tal método, que parece carecer de sentido. Muitos, ultrapassando
indebitamente os limites das ciências positivas, ou sustentam que só por este
processo científico se explicam todas as coisas, ou, ao contrário, já não
admitem de modo algum nenhuma verdade absoluta. Alguns exaltam o homem a tal
ponto que a fé em Deus se torna como enervada e dão a impressão de estar mais
preocupados com a afirmação do homem do que com a negação de Deus. Outros se
representam um Deus de tal modo que aquela fantasia, que eles repudiam, de modo
algum é o Deus do Evangelho. Alguns não abordam sequer o problema de Deus:
parece não sentirem nenhuma inquietação religiosa e nem atinarem por que
deveriam preocupar-se com religião. Além disso, o ateísmo se origina não
raramente ou de um protesto violento contra o mal no mundo, ou de caráter do
próprio absoluto que se atribui indevidamente a alguns bens humanos, de tal
modo que sejam tomados por Deus. A própria civilização moderna, não por si
mesma, mas porque demasiadamente comprometida com as realidades terrestres, pode
muitas vezes dificultar o acesso a Deus” (Gaudium
et Spes, n. 19). Crendo ou não crendo, o fato é que o homem sempre busca a
plenitude de sua realização pessoal. Por isso que, mesmo se de modo misterioso,
conforme nos abramos ou não aos imperativos divinos, a mensagem da Igreja
“concorda com as aspirações mais íntimas do coração humano, quando reivindica a
dignidade da vocação humana, restituindo a esperança àqueles que já desesperam
de seu destino mais alto” (Gaudium et
Spes, n. 21). E é, sobretudo, diante de nossos próprios limites, que
deveríamos tornar-nos mais sensíveis à dimensão transcendental que nos invade,
também, pelas inquietações dos questionamentos existenciais que fazemos.
Tendo
terminado o namoro com a “ragazza”, a sua “moça” – o que fiquei sabendo
enquanto voltava a Roma e o encontrei pela última vez no carrilhão de
passageiros – nunca mais tive notícias do meu jovem amigo, de cujos diálogos eu
sentia saudade, mas de quem eu não tive coragem de aproximar-me mais do que o
necessário para escutar os lamentos e “devaneios de um caminhante solitário” –
como Jean Jacques Rousseau intitulou uma obra sua – que encontrou em um
sacerdote brasileiro a oportunidade de poder abrir sua alma e conversar com
ele, “reservadamente”, no vagão do trem, sobre as razões misteriosas de sua
existência aflita, aparentemente falida, mas desejosa de alçar o voo sonhado
pela esperança na direção da plena realização. Espero que meu jovem amigo ateu
tenha melhorado o humor de sua vida, com a subsequente adequação de seu
comportamento aos direitos e deveres de justiça, exigidos pela formação de uma
sociedade onde todos se responsabilizem pela lisura do cuidado com o patrimônio
público e privado, dentro dos limites sadios da reciprocidade e do compromisso
de respeito com tudo e com todos.