Dies Iræ
(21.08.2013)
Há
dias que não deveriam ter existido na estampa de nossa vida. Dia de ira – Dies Iræ – ou de fúria, se preferirem, quando
todos os deuses do panteão parecem conspirar contra o nosso destino; dias em
que somos obrigados a mudar de direção, a tomar novos caminhos, buscando novas
claridades, novas motivações para seguirmos adiante, contornando as curvas
sinuosas da arbitrariedade do porvir... Dias que não são tão belos como a música
clássica de Wolfgang Amadeus Mozart, sua última música
– o Requiem – de 1791. Quem, de fato, nunca
teve um dia, assim, daqueles que marcam um ponto zero no meio da estrada da
vida, demarcando um antes e um depois? Dias que nos precipitam em queda livre
no abismo existencial, sem que saibamos aonde iremos esborrachar-nos... Dias
como o que Jó desejou que não tivesse existido, por não querer tocar a
realidade com o dedo crucial de sua agonia vivencial. As palavras são suas:
“Pereça
o dia que me viu nascer, a noite que disse: ‘Um menino foi concebido!’ Esse dia
que se torne trevas, que Deus do alto não se ocupe dele, que sobre ele não
brilhe a luz! Que o reclamem as trevas e sombras espessas, que uma nuvem pouse
sobre ele, que um eclipse o aterrorize! Sim, que dele se apodere a escuridão,
que não se some aos dias do ano, que não entre na conta dos meses! Que essa
noite fique estéril, que não penetrem ali os gritos de júbilo! Que amaldiçoem
os que amaldiçoam o dia, os entendidos em conjurar Leviatã! Que se escureçam as
estrelas da sua aurora, que espere pela luz que não vem, que não veja a
pálpebra da alvorada. Porque não fechou as portas do ventre para esconder à
minha vida tanta miséria. Por que não morri ao deixar o ventre materno, ou
pereci ao deixar as entranhas? Por que me recebeu um regaço e seios me deram de
mamar? Agora dormiria tranquilo, descansaria em paz, com os reis e os ministros
da terra que construíram mausoléus para si; ou com os nobres que amontoaram
ouro e prata em seus mausoléus. Que eu fosse como um aborto escondido, que não
existisse agora, como crianças que não viram a luz. Ali acaba o tumulto dos
ímpios, ali repousam os que estão esgotados. Com eles descansam os
prisioneiros, sem ouvir a voz do capataz. Lá pequenos e grandes se avizinham, e
o escravo livra-se de seu amo. Por que foi dada a luz a quem o trabalho oprime,
e a vida a quem a amargura aflige, a quem anseia pela morte que não vem, a quem
a procura com afinco como um tesouro, a quem se alegraria em frente ao túmulo,
e exultaria ao encontrar a sepultura. Por que esse dom ao homem cujo caminho é
escondido e que Deus cerca com uma sebe? Por alimento tenho soluços, e os
gemidos veem-me como água. Sucede-me o que mais temia, o que mais me aterrava
acontece-me. Para mim, nem tranquilidade, nem paz, nem repouso; nada além de
tormentos” (Jó 3,3-26).
Jó,
como sabemos pelo relato bíblico, encontrava-se no meio de um terrível dilema,
por contra da dura prova a que Deus permitiu que ele fosse submetido pela
tentação de Satanás. Ele perdeu tudo o que possuía, desde sua família até seus
animais, e todos os bens. Sua vida arrasada, seu coração dilacerado, sem
encontrar as verdadeiras razões para tanto sofrimento, isto é, tudo o levou a
amaldiçoar todas as consequências de seu nascimento, embora não tivesse ousado
blasfemar contra Deus pelo reconhecimento de sua incondicional fidelidade. O
capítulo 3 de seu livro manifesta um desabafo tremendo diante de sua agonia, de
sua luta interior. É o espelho vivo de quem experimentou circunstâncias
terríveis para o seu existir. Segundo Ludger Schwienhorst-Schönberger, “a
lamentação de Jó pode ser articulada em três partes: na primeira parte (vv.
3-10), Jó amaldiçoa o dia de seu nascimento e a noite de sua concepção, um
desejo que não é único na tradição veterotestamentária (cf. Jr 20,14), mas é
insólito. Em imagens convulsivas, profundamente enraizada na alma humana, aqui
fala um ser humano apavorado até a morte. Luz e trevas, morte e nascimento são
as comoventes imagens. [...] As portas do ventre materno abrem-se, mas Jó vê
miséria e sofrimento (v. 10). Ele gostaria de voltar para as trevas. Ele
deseja, na verdade ele suplica não ter jamais de experimentar o que ora lhe
acontece”. Profundamente prostrado, arrancado de todos os seus apoios mais
viscerais, mais essenciais, Jó se debate no fundo de seu espírito amargurado,
desconsolado. Por todos os lados, somente a miséria faz-lhe companhia. E o
mesmo autor, continua: “No entanto, já na escuridão dos começos, cintila a
faísca de um final redentor. Mesmo no absurdo, nas imagens que da escuridão que
a alma, confusa até a morte, projeta a partir de si mesma, delineiam-se os
contornos de uma saída. Jó não nega que ele tenha visto a luz, que tenha
experimentado o sentido. Concebido durante a noite e nascido durante o dia (v.
3) – nesta imagem maravilhosa, depreendida da experiência humana, mostra-se o
caminho da vida de um ser humano: das trevas para a luz. Contudo, agora Jó
outra coisa não almeja senão que este fato aconteça em sentido inverso [...]
(v. 4). Por quê? A única resposta encontra-se no v. 10: porque na luz, que lhe
veio ao encontro com o nascimento, torna-se visível também o sofrimento de sua
vida. Agora aconteceu, agora o sofrimento atingiu-o com ímpeto elementar”.
Dos
versículos 11 a 19, Jó manifesta profundo anseio pela morte. O desejo da morte
assalta-lhe, talvez, como possibilidade de solução para todos os seus
problemas. Não raramente isso acontece também a todos os pobres mortais, alguns
dos quais destroem sua vida, precipitando-a pela porta forçada do desespero,
cujo abismo abre-se e alarga-se pelos bordos do suicídio! No caso específico de
Jó, “tal desejo abre o caminho em três lances. Eles correspondem a três pontos
nodais da vida humana, nos quais os indicadores são colocados na direção da
morte ou da vida. Em Jó, por três vezes os indicadores foram colocados ruma à
vida, por três vezes, agora, ele deseja fazer retroceder esta decisão do
destino: uma vez, em sua concepção (vv. 3-10); a segunda vez, em seu nascimento
(vv. 11-19); a terceira vez, em sua vida impregnada de sofrimento (vv. 20-16)”.
No segundo “lance” da expectativa dos lamentos de Jó, “o desejo de morrer é
amiúde advertido com medo e pavor e não raro rejeitado e sufocado. A partir de
um ‘amor à vida’ compreendido, às vezes, de maneira superficial e não raro
cristãmente motivado, toda forma de anseio pela morte é voluntariamente banida.
No entanto, se soubermos sondar bem, perceberemos aí um anseio que vai mais
fundo. Interessante notar que as concepções que Jó tem da morte são
características de uma vida plena: liberdade, independência, igualdade e
apreciação entre grandes e pequenos, uma vida tranquila, sem receios”. Não é
verdade que há pessoas que dizem em determinadas conjunturas de sua vida que
gostariam de “morrer” ou de “sumir”? De distanciar-se de tudo e de todos,
escondendo-se nos escombros de sua própria infelicidade? Porém, quem conseguiria
fugir de si mesmo, de suas desventuras, dos solavancos tempestuosos de suas
lutas? Não seria o anseio de morte manifestado por Jó um grito de dor pela vontade
de uma vida em plenitude?
No
terceiro “lance” da lamentação (vv. 20-16), “Jó começa, como a segunda (v. 11),
com uma pergunta ‘Por quê?’ (v. 20). Jó lamenta uma vida que conhece apenas sofrimento
e medos. As pessoas que não experimentam outro coisa a não ser o sofrimento com
frequência desejam a morte como solução (vv. 21-22). Na equilibrada, sóbria
opinião de um mestre da sabedoria, encontra-se o pensamento semelhante em Eclo
41,1-2: ‘Ó morte, quão amarga é a tua lembrança para o homem que vive feliz e
no meio de seus bens, para o homem sereno a quem tudo é bem-sucedido e ainda
com forças para gozar o prazer. Ó morte, tua sentença é bem-vinda para o
miserável e privado de suas forças, para quem chegou a velhice avançada,
agitado por preocupações, descrente e sem paciência’. Semelhantemente à sentença
de Eclo 30,17 – ‘É melhor a morte do que uma vida cruel, o repouso eterno do
que a doença constante’ – Jó anseia pelo repouso da morte que não aparece”. Não
levando em conta outras considerações do autor, ele conclui sua apreciação
sobre o capítulo terceiro, afirmando que “nos vv. 20-26 Jó indaga pelo sentido
de uma vida humana atingida pelo sofrimento. Ainda parece pressupor que exista
uma vida sem sofrimento. Mais tarde ele abandonará tal pressuposição (7,1-2).
Em Jó 3, Deus ainda não é interpelado diretamente. Contudo, ele ainda será
denominado aquele que concede luz ao miserável (v. 20) e que ‘embarga o caminho
do ser humano’ (v. 23)”. De fato, a sabedoria bíblica – através de seus relatos
mais trágicos e vivamente cruciais, como o da vida de Jó – ensina-nos que toda
a vida do homem é marcada pelo sofrimento, inclusive, como condição de
sobrevivência.
Portanto,
o aspecto abordado pela presente reflexão é tão somente uma ponta acesa da
luminosidade escura que perpassa toda a existência do sofrido Jó – do início ao
fim do livro – cuja dimensão se aprofunda no revés das vicissitudes de sua
perseverança. Ele triunfará sobre as cinzas das investidas de Satanás, pois é a
força interior do crente que refaz o homem em todas as suas esperanças. Jó não
apenas sabe disso, mas tem consciência da lucidez de sua fé, exposta a toda
prova. Seu testemunho é um sinal claro e evidente de que também nós, por nossa
vez, e com a ajuda de Deus, poderemos superar nossos dias de fúria, dias de implacável
ira. Realmente, vez por outra, Deus também nos manda um espírito de satanás, personificado, feito pessoa, para provar nossa paciência, nossa humildade, nossa docilidade, nossa capacidade de autocontrole. Ainda bem que os dias não são iguais, como diria a minha amada mãe, dona Helena Barbosa, percebendo um raio luminoso de alegria no meio de uma densa nuvem de tristeza. Do contrário, um deles já teria nos matado no vendaval incontrolável da existência, da realidade que nos escapa das mãos qual folhas secas carregadas pelo vento e atiradas na imensidão do destempero emocional do eu profundo.