quarta-feira, 16 de outubro de 2013

A gratidão de um herético...



A gratidão de um herético 

 



O sentimento de gratidão que invade a alma de um samaritano que fora curado por Cristo enche de esperança o coração de quem procura fazer o bem sem desejar receber algo em troca. Por isso que a gratuidade não se expressa pela ideia mercantilista de quem vive em busca de recompensa. Mesmo assim, o gesto de atenção e interesse pelas necessidades alheias, inclusive, pela extensão da caridade que extrapola o sentido da mera filantropia, não nos dispensa da atitude da gratidão. É, pois, o que nos mostra o texto do Evangelho de São Lucas, falando da cura de dez leprosos, que “pararam à distância” quando avistaram Jesus (Lc 17,11-19). 

 


Apesar da brevidade do texto, os estudiosos apontam, pelo menos, quatro momentos importantes por meio dos quais se desenvolve o enredo do acontecimento. Inicialmente, aparece a súplica dos leprosos, clamando a Jesus: “Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!” (v. 13). A lepra, como sabemos pela história, era uma doença incurável que havia se difundido desde o século XV antes de Cristo, sobretudo, pelo Oriente. As pessoas acometidas por tal enfermidade eram excluídas do convívio social e deviam pendurar no franja de sua veste uma espécie de sino o chocalho, a fim de notificar sua presença, de modo que as pessoas pudessem afastar-se para não serem contaminadas. Era uma doença discriminatória, que separava, segregava as pessoas umas das outras. Era uma maldição para a vida em comunidade. Na Sagrada Escritura, há vários contextos em que as pessoas aparecem com essa grave perturbação da saúde, sendo banidas da vista de todos (o poder dos sinais dado a Moisés: Ex 4,6-7; Maria, a irmã de Moisés: Nm 12,10-15; a cura de Naamã: 2Rs 5; outros leprosos: 2Rs 7,8; o rei Osias: 2Cr 26,16-23), e alguns filmes bíblicos retratam isso de maneira evidente. No caso do Evangelho, certamente, os leprosos já haviam ouvido falar de Cristo, pois sua fama se espalhara pela redondeza, e reconheceram sua autoridade pelos sinais e milagres que realizava no meio de sua gente ou em terras estrangeiras, fazendo chegar a todos a novidade salvífica de seu reino universal e da salvação redentora. Na verdade, seu gesto condensa o grito da humanidade que descobre suas necessidades e batem à porta do mistério em busca de socorro. 

 


Atendendo ao pedido de “piedade”, Cristo realiza o milagre da cura. É o segundo momento. É quando Jesus pede que eles vão apresentar-se ao sacerdote, e, de repente, “enquanto iam, ficaram purificados” (v. 14). Com efeito, o sacerdote tinha autoridade e competência para dar o diagnóstico daquela terrível doença ou para declarar a sua cura (Lv 13,2; 14,34; Dt 24,8-9). Ele era o representante legal da sociedade e, portanto, poderia atestar oficialmente a certeza da cura, de modo que eles estariam prontos para retornar à vida normal do povo de Israel, herdeiro das promessas divinas. A partir de então, eles teriam dado novo rumo à existência pela inserção no meio dos seus. No caso dos judeus, que eram nove, eles não viram nada de extraordinário no episódio da cura. Era como se fosse um direito deles, por pertencerem ao povo eleito. Talvez, tenham pensado no seu coração: “Jesus não fez nada mais do que a sua obrigação”, como às vezes, costumamos dizer às pessoas que nos ajudam. Assim, nenhum sentimento de gratidão despontou no interior daqueles homens. Nada de novo parece ter sido acrescentado à sua vida. Para eles, o encontro com Cristo foi tão somente um evento “passageiro e superficial”. Isso também pode acontecer conosco. Às vezes, sentimo-nos tão amigos de Jesus, pela intimidade de nossa vida de piedade e oração, que nos julgamos no direito de vermos em nós mesmos os sinais de sua cura ou de seu poder curador, especialmente, quando nos imaginamos atingidos por uma doença grave. É verdade que durante sua vida pública, de pregação da boa nova do Reino e da manifestação evidente de sua chegada entre os homens, Cristo provou por meio de sinais e milagres ter vindo da parte de Deus. Com efeito, suas curas, seus milagres, sua autoridade sobre eventos da natureza física e da vida interior dos homens, como o poder de perdoar pecados, tudo isso fez parte de sua presença operante no meio da sua gente. Identificado como o Filho de Deus, isto é, participante da própria substância da vida divina, e, portanto, “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”, como declaramos na profissão de fé, ele passou no meio de todos nós, “fazendo o bem”. Mas, diferentemente dos nove judeus, alguém voltou para agradecer a Jesus, “glorificando a Deus em alta voz, e lançou-se aos pés de Jesus com o rosto por terra, agradecendo-lhe. Pois bem, era samaritano” (v. 16). 


O samaritano era tido como herético em relação à raça pura do povo eleito, porquanto não fazia parte da herança espiritual de Israel. Era já, por sua própria natureza e condição étnica, marginal, excluído, estranho, quase um fora da lei. E, no entanto, é o único que volta para agradecer o dom recebido de Jesus, que se maravilha com a gratidão de um leproso. Eis o terceiro ato da cena evangélica, e o próprio Cristo se interroga: “[...] Onde estão os outros nove? Não houve, acaso, quem voltasse para dar glória a Deus senão este estrangeiro?” (v. 17-18). É que ele “viu” algo de extraordinário em seu encontro com Jesus, como se a luz do olhar permeasse além do aparentemente perceptível, para reconhecer nele o verdadeiro Salvador, isto é, alguém que poderia conceder-lhe segurança, algo que talvez ele não encontrasse mais no meio dos seus. Assim, ele quis demonstrar que, na verdade, o crente é aquele que recebe o dom de Deus, como o receberam os leprosos, e permite que ele se traduza pela possibilidade de uma existência nova, transformada pela sua misericórdia. E é aí que entra o quarto instante narrativo da perícope do texto de São Lucas: o plano da salvação total, o que decorre da consideração de que o milagre externo da cura da lepra já antecipava certa “salvação”. Ou seja, que a salvação definitiva exigia uma resposta aberta, reconhecida e transformadora. Então, os estudiosos afirmam que, embora os nove judeus tenham recebido a cura externa, internamente, eles permaneceram ligados aos ideais antigos do próprio judaísmo. Todavia, o samaritano colocou-se, de modo voluntário, dentro dom de Deus que Cristo ofereceu-lhe. E a confirmação disso acontece quando Cristo lhe diz, peremptoriamente: “Levanta-te e vai; a tua fé te salvou” (v. 19). O que começou por uma cura física acabou tornando-se uma “salvação” definitiva. Segundo a exegese de Angélico Poppi, apenas o samaritano entendeu bem o significado salvífico do milagre realizado por Jesus, de modo que os eu comportamento exemplar representa uma acusação contra a ingratidão dos hebreus, pois, no judaísmo corrente da época, sua mentalidade levava-os a crer que estavam no direito da cura, como se lhes fosse um direito, enquanto membros do povo eleito, depositário das promessas messiânicas. Quanto ao samaritano, em razão de sua fé, não somente conseguiu a cura física, mas também a salvação espiritual, que constituía o dom mais importante no encontro com Cristo, o enviado do Pai, que veio para anunciar a chegada de seu Reino do meio dos homens. Numa afirmação de Stöger, citado por Angélico Poppi, no samaritano é retratado o caminho do evangelho na direção dos pagãos, que se abrem à graça de Jesus. 



O testemunho do leproso continua mais atual do que nunca na sociedade, científica e tecnologicamente, autossuficiente em que vivemos, mormente, pela dificuldade que temos para reconhecer os dons divinos da nossa salvação eterna. Continuamos leprosos, afastados, indiferentes aos dons de sua benemerência sobrenatural. Ele depõe contra o desejo hodierno da radical independência divina, arriscando todos os limites na impotência dos próprios recursos humanos que a ciência nos presenteou. Aos olhos da fé, somente quando a ciência não puder mais nada pela exigência extrema de suas impossibilidades, ainda restará Deus como última alternativa para consolo e esperança quanto ao aparentemente falimento da brutalidade existencial. Certa ocasião, um sacerdote alemão contou que, no país de Johann Sebastian Bach, Martinho Lutero, Ludwig van Bethoveen e de tantas outras personalidades tedescas, o único sinal de Deus encontrava-se nos hospitais locupletados de pessoas doentes, sem esperança de cura, porque a ciência, que poderia dar tantas respostas às soluções para as inquietações humanas, não conseguia atender aos ditames do super-homem que gostaria de controlar, também, o imperativo constrangedor da morte. É, pois, aí que a inaptidão humana abre as portas da covardia. Da covardia por não crer que a vida ultrapassa os umbrais da agonia letal, atingido horizontes inimagináveis, transcendentais. Logo, considerei que fosse uma afirmação, não apenas estranha, mas igualmente paradoxal e contraditória. Mas depois, percorrendo os caminhos inelutáveis da reflexão, encontrei o fio de luz que emanava de seu raciocínio atravessado de coerência. De fato, não é justamente nos limites da impotência humana onde Deus também se manifesta no absurdo que parece frear todas as esperanças? Quando médicos se demonstram incapazes de curar os pacientes consumidos pela necrose de suas vísceras, abre-se a perspectiva da inoperosidade de suas presunções. É, pois, aí que deveria encontrar espaço o consolo da existência divina, superando o fracasso de todas as ambições humanas. Semelhante a nós em tudo, Cristo também experimentou a profundidade da dor humana no limite de suas forças. E também pôde sentir-se abandonado pelo próprio Pai, gritando: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,46). 


Voltando ao caso do samaritano, que reconheceu Jesus como Filho de Deus, o Salvador, das muitas lições que aprendemos dos ensinamentos do Mestre de Nazaré, mas, de modo especial, de seu comportamento – tanto em reações dialéticas quanto nas inflexões da sua alma – está o seu deferimento quanto ao fato de que a ingratidão também é odiosa aos olhos de Deus. Igual a todos os seres mortais, exceto no pecado, ele protestou por não encontrar o sentimento da gratidão em quem deveria, no mínimo, reconhecer o gesto milagroso de sua bondade e condescendência. É o que percebemos do episódio em que Jesus cura dez leprosos, dos quais apenas um voltou atrás para demonstrar-se grato, agradecido pela benção recebida do Senhor.