São Vicente de Paulo
e as Exigências da Caridade
e as Exigências da Caridade
Ao
longo da história do Cristianismo, muitos homens e mulheres apresentaram-se
para oferecer aos seus semelhantes o “serviço da caridade”, uma atitude
concreta que brota do mesmo serviço que Cristo prestou a todos os homens,
quando, encarnando-se, assumiu todas as fragilidades de nossa humanidade. De
fato, um dos grandes mistérios da Encarnação de Jesus é que ele faz-se presente
em cada pessoa humana, em quem ele espera que O encontremos, sobretudo, nos
mais pobres, sofridos e marginalizados da sociedade. Não por acaso, a Beata
Madre Tereza de Calcutá já afirmava que é Cristo quem se esconde sob o
semblante dos pobres.
Na
Mensagem Final de seu livro “Cartas para Francisco”, o Pe. Raul
Bomfim Borges destaca: “Escolhendo nossa pobreza humana, quer dizer, colocando-se
dentro de nossa fragilidade pecadora, eis o grande mistério da Encarnação de
Jesus, o Filho de Deus: fazer-se presente em todas as pessoas, de modo
indistinto, mas, especialmente, nos humilhados pela sua própria condição de
vida e, muitas vezes, provocados pela exclusão do sistema social que considera
mais importante o ter do que o ser, mais a superficialidade do que a essência”.
A evidência de sua argumentação é reflexo das próprias palavras de Cristo, que,
no contexto do que será o último julgamento, disse: “Tive fome e me destes de
comer. Tive sede e me destes de beber. Estive nu e me vestistes, doente e me
visitastes, preso e viestes ver-me. [...] Em verdade eu vos digo: cada vez que
o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes’” (Mt
25,31-46). Tão lúcido radicalismo evangélico é o que ainda motiva e inspira
muitos cristãos à prática despretensiosa do amor ao próximo. Do “próximo” que
está no centro da própria síntese dos mandamentos da lei divina: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu
coração, de toda a tua alma, com toda a tua força, e de todo o teu
entendimento; e a teu próximo como a ti
mesmo” (Lc 10,). Segundo o texto bíblico hebraico, a expressão que fala do
amor ao próximo “como a ti mesmo” significa que “ele é como tu, isto é, igual,
igualzinho a ti”.
Na
França dos séculos XVI e XVII, Deus suscitou São Vicente de Paulo (1581-1660),
sacerdote e fundador dos lazaristas, para realizar extraordinária obra de
caridade em relação aos necessitados. Filho de camponeses pobres, durante seus
primeiros quinze anos de vida, outra coisa não fez senão ajudar os pais,
cuidando das poucas ovelhas e dos poucos porcos que possuíam para o sustento
familiar. Inteligente e arguto, ele encontrou na pessoa de um advogado da
região de Dax o auxílio necessário para as despesas com os estudos. Naquele
tempo, era culturalmente favorável a possibilidade de fazer carreira
eclesiástica, inclusive, com a finalidade de conseguir dinheiro e fortuna à
sombra do prestígio religioso. Estudou com os padres franciscanos de Dax,
fez-se clérigo e inscreveu-se na Universidade de Toulouse. De espírito
aventureiro e depois de muitas peripécias, sendo até aprisionado por piratas
turcos e vendido como escravo “em Tunis, tornou-se servo de um frade que por dinheiro
se fez muçulmano. Vicente o convenceu a voltar atrás e juntos fugiram em uma
embarcação leve para a França” (Enrico Pepe). Sua conversão, aconteceu mais
tarde, em Paris, quando “contava já com 31 anos de idade e, impressionado com a
vida de oração de seus paroquianos, deixou de lado as preocupações materiais e
de carreira, e começou a ensinar o catecismo, a visitar os doentes e a ajudar
os pobres. O contato com a vida real reabriu-lhe o coração à oração e à
meditação da palavra de Deus. Se os paroquianos foram os seus primeiro mestres
com sua vida, o instrumento de que a providência se serviu para operar nele uma
profunda transformação foi Pedro de Bérulle que, o acolhendo em seu Oratório o
formou em uma profunda espiritualidade” (Enrico Pepe). Foi, pois, vivendo em
castelos de senhores ricos e abastados que São Vicente constatou o abismo que
separava o mundo dos ricos do mundo dos pobres. Para socorro dos pobres, ele
contou com a colaboração de muitas pessoas influentes pela vida de piedade e
que se sentiam atraídas pelo seu carisma e empenho pessoal para combater a
miséria que campeava nas cidades e em pontos mais distantes delas. Tudo por
amor aos pobres. “As damas” e as “filhas da caridade” foram suas companheiras
mais fiéis. Uma das Cartas de São Vicente expressa a essência de sua
espiritualidade: “O serviço dos pobres deve ser preferido a tudo. Não deve
haver atrasos. Se a na hora da oração tiverdes de levar um remédio ou um
socorro a um pobre, ide tranquilamente. Oferecei a Deus a vossa ação, unindo a
ela a intenção da oração. Não vos deveis preocupar e acreditar que haveis
falhado, se pelo serviço dos pobres haveis deixado a oração. Não é deixar Deus,
quando se deixa Deus por Deus, ou seja, deixar uma obra de Deus para fazer
outra. [...] A caridade é superior a todas as regras, e tudo deve referir-se a
ela. [...] Todos aqueles que amarem os pobres em vida, não terão temor algum da
morte. Sirvamos, portanto, aos pobres com renovado amor e procuremos os mais
abandonados. Eles são os nossos patrões” (Enrico Pepe).
Estão,
pois, aí, colocadas, às claras, as verdadeiras exigências da caridade com que
devemos amar, especialmente, os pobres, amando neles o próprio Cristo. Com
efeito, o gesto cristão da “esmola”, como de tantas outras expressões da
autêntica caridade, ultrapassa todos os limites da filantropia pela
coincidência cristocêntrica da pessoa ajudada. E essa percepção fraterna
somente pode ser vislumbrada com serenidade interior à luz da fé. Mas, que
tarefa difícil! Por isso que a fisionomia dos santos se confunde com a de
Cristo no rosto perdido de tantos irmãos que passam dificuldades. É ainda São
Vicente quem o afirma: “Não temos de avaliar os pobres por suas roupas e
aspecto, nem pelos dotes de espírito que pareçam ter. Com frequência são
ignorantes e curtos de inteligência. Mas muito pelo contrário, se considerardes
os pobres à luz da fé, então percebereis que estão no lugar do Filho de Deus
que escolheu ser pobre. De fato, em seu sofrimento, embora quase perdesse a
aparência humana – loucura para os gentios, escândalo para os judeus –
apresentou-se, no entanto, como o evangelizador dos pobres: Enviou-me para evangelizar os pobres (Lc
4,18). Devemos ter os mesmos sentimentos de Cristo e imitar aquilo que ele fez:
ter cuidado pelos indigentes, consolá-los, dar-lhes valor”. É verdade que não
devemos ter a presunção dos santos, claro. Oxalá, nossas disposições interiores
de apreço pelos excluídos de sua própria dignidade humana, pudessem
conduzir-nos a tamanha ousadia pelo fascínio da caridade incondicional, sem
reservas nem condicionamentos impostos pelo bom ou mau humor de nossas desculpas
ou acomodações. Certa vez, Dom Luciano Mendes de Almeida – in memoriam – contou para o Clero da Arquidiocese de Aracaju, que,
quando era Bispo Auxiliar de São Paulo, ao lado de Dom Paulo Evaristo Ars, e de
outros dez bispos auxiliares, todo dia recebia uma senhora que chegava dizendo
que precisava de ajuda para enterrar o filho que falecera. Aparentemente de modo
mecânico e irrefletido, ele, todos os dias, atendia à solicitação daquela
senhora. Um dia, alguém quis fazê-lo notar que aquela senhora, que todo dia
matava o filho e queria enterrá-lo, estava mentindo e, assim,
enganava-o, deslavadamente, sem escrúpulos. E, com toda a franqueza de sua
alma liberta e desejosa de libertação, ele comentou: “Eu não estou preocupado
se o filho dela morreu. Eu quero apenas que ela faça uma experiência de Deus”.
Talvez,
seja esse o otimismo dos santos que também deveria fazer-nos ver além da
aparência do gesto da bondade em si mesma. Trata-se, pois, de um desafio
constante para todos os dias de nossa vida, amando as pessoas, de verdade, sem
atropelá-las pela indiferença de nosso egoísmo doentio e covarde.