Carlo Acutis:
Quando Deus irrompe por
dentro (II)
São
Pedro usa um termo muito oportuno em relação ao processo de mudança interior
proposto quanto ao pensar e agir dos cristãos dos primeiros séculos do
Cristianismo, que eram orientados a considerar a “longanimidade” de nosso
Senhor Jesus Cristo também como “soteria”, isto é, como salvação. Mas o que
isso significaria, não apenas naquele momento histórico, mas ainda hoje na
considerada pós-modernidade? Que espaço os cristãos de hoje ainda encontram
para viver sua exortação e parênese no seguimento de Jesus? Que sentido e que
peso de responsabilidade a expressão comporta, a ponto de motivar os cristãos à
“perseverança tenaz” diante dos próprios desafios da fé e da esperança cristã?
Eis o texto de São Pedro, a fim de que melhor possamos contextualizar a
profundidade da argumentação: “O que nós esperamos, conforme sua promessa, são
novos céus e nova terra, onde habitará a justiça. Assim, visto que tendes essa
esperança, esforçai-vos ardorosamente para que ele vos encontre em paz, vivendo
vida sem mácula e irrepreensível. Considerai a longanimidade de nosso Senhor
como a nossa salvação [...]” (2Pd 3,13-15). Circunstancialmente, nosso interesse
está na compreensão lata e teológico-espiritual do vocábulo já enfatizado
acima, qual seja, “a longanimidade de nosso Senhor”, porquanto a paciência de
Cristo encerra o Kairós de Deus para
nossa conversão. Trata-se do “tempo da graça”, que é um tempo diferente da
cronologia que pode fechar-se a qualquer momento no horizonte da existência. Ou
seja, o kairós interpela o espírito
do homem independentemente do estágio de sua temporalidade existencial. Por
isso que, conhecedor de suas fraquezas e vacilos no âmbito da fé, ele deve
“esforçar-se” para ser encontrado, achado por Cristo na pureza de sua vida
santa. Assim, a longanimidade de Cristo, quer dizer, sua atitude de paciência e
espera pelo nosso retorno à intimidade com ele, favorece o alcance pleno da salvação
que ele nos oferece. De fato, somente dentro do dinamismo da “espera” é
possível que a virtude possa crescer, pois como afirma um Autor do século
segundo, “suportamos as lutas do Deus vivo e somos provados nessa vida para
recebermos a coroa na futura. Nenhum justo recolhe um fruto imediato, mas
aguarda-o. Porque, se Deus desse logo a recompensa, nos entregaríamos então a
um negócio e não à virtude; pareceríamos querer ser justos por causa do lucro,
não do serviço de Deus. Por isso, o juiz divino perturba o espírito que não é
justo e torna mais pesadas as cadeias”. Portanto, com esse intuito, e à mercê
da perspectiva em “suportar as lutas do Deus vivo”, imaginamos aprofundar o
pensamento de São Pedro, a partir da palavra “longanimidade”, que, no português
corrente, pode significar também “firmeza de ânimo”, “magnanimidade”,
“generosidade”.
Tanto no grego clássico quanto do Antigo Testamento, e igualmente no grego comum, a koiné, a língua em que fora escrito o Novo Testamento, a compreensão do termo “makrothymia” dá-nos a oportunidade de ir além do sentido, aparentemente simples, do que seja a “longanimidade”, em relação direta com aquilo que São Pedro nos presenteia no contexto da literatura cristológica. É, pois, na corrente da literatura extrabíblica e bíblica, que mergulhamos nas águas lexicais, a fim de buscar o alcance pleno da significação da terminologia em questão. Mas, para isso, contamos com o auxílio eloquente do estudioso J. Horst, cujo conteúdo, denso e profundo, leva-nos a perceber a grandeza de uma única palavra no contexto teológico do saber bíblico, embora também se situe no conhecimento técnico que avança do aparentemente profano ao sacro. No intento de que possamos chegar diretamente ao essencial quanto ao que nos interessa no momento, gostaria de acenar, de modo rápido, mas considerável, ao significado de makrothymia no helenismo extrabíblico: “paciência” (Menandro), no sentido de que a pessoa deve resignar-se em relação aos embates da vida; “paciência tenaz” (Estrabão): “procrastinar, esperar” (Artemidoro), enquanto é possível adiar o efeito de uma ação; no bom sentido, também está relacionado à perseverança e à paciência com que um médico empenha-se em curar as feridas graves e crônicas do doente; ainda tem a ver com a capacidade de “suportar as fadigas, sofrendo com perseverança” (Plutarco), até atingir o objetivo desejado, como faz o soldado obedecendo às ordens. No contexto antigo testamentário, baseando numa expressão hebraica, quer dizer “retardar a própria ira”, isto é, sua explosão, e, portando, ser longânime. Por sua vez, na Torah, a tradução das palavras que exprimem a conduta de Deus para com o seu povo, faz com que a glória do Deus que se revela, sem dúvida, dê ao uso linguístico o significado fundamental: “Senhor! Senhor Deus de ternura e de piedade, lento para a cólera [“makróthymos”, isto é, paciente], rico em graça e em fidelidade...” (Ex 34,6ss). Por conseguinte, segundo nosso autor, não é possível acolher o termo makróthymos em si mesmo, como se fosse fruto de um comportamento puramente humano, sem nenhuma relação a Deus, visto que sua ação para com o homem é intrínseca à sua “longanimidade”, a makrothymia, a sua “paciência”, por meio da qual, contendo a sua ira, ele pode dar curso à sua graça e bondade. Desse modo, os dois polos que abraçam o arco da longanimidade divina são a “ira” e a “graça”. Na verdade, ele é o Deus bom e verdadeiro, lento para a ira (makróthymos) que governa o universo com misericórdia (Cf. Sb 15,1). No judaísmo pós-exílico, a concepção da makrothymia divina é levada em consideração, sobretudo, por conta da fraqueza humana e da brevidade da vida, em face da eternidade de Deus, pois o tempo da vida do homem é uma pequenina gota no mar da eternidade divina. Daí a necessidade da consciência humana reconhecer que o tempo urge-nos, impele-nos à conversão, invocando a misericórdia de Deus, enquanto ainda se pode dizer “hoje” (Cf. Hb 3,13). E o “hoje” de Deus é o “agora” instantâneo da nossa pobre vida humana, tão bruxuleante e efêmera sobre a face da terra. Nos evangelhos sinóticos, Cristo teve a oportunidade de aprofundar a “longanimidade” de Deus, de modo enfático, demonstrando que, à semelhança do Pai misericordioso, o homem também deve concorrer para que o exercício de sua paciência e bondade encontre eco concreto na relação com o próximo (Mt 8,23-35). Nesse ponto, Cristo é muito radical, pois a longanimidade de Deus empenha o homem diante do irmão. Do contrário, se ele não estiver disposto a isso, Deus pode manter, com soberana decisão, seu juízo punitivo. Pela sua bondade, Deus também exige a longanimidade do cristão, especialmente, na vida comunitária. E como estamos falando de conversão, por meio dela, podemos encontrar medidas eficazes e producentes no processo de mudança interior. De fato, a bondade em relação ao próximo não é uma forma eloquente e digna da santidade que Deus pede de nós? São Paulo aborda o assunto, permitindo que o olhar ultrapasse a visão humana e passe à visão da fé: “Sede pacientes [makrothymeĩte] para com todos” (1Ts 5,14).
Retornando
ao texto de São Pedro, e recorrendo ao sentido mais imediato do que refletimos,
o fato é que Deus espera, pacientemente, a nossa conversão. Para isso,
deveríamos inspirar-nos, sobretudo, na parábola do “Pai misericordioso”, de são
Lucas (cf. 15,11-32). Foi no contexto dessa perícope da Sagrada Escritura, que
o Beato João Paulo II afirmou que “o homem é a esperança de Deus”. Em hebraico
bíblico, é o verbo “shûv” [cujo
sentido básico é “voltar-se”] que traduz essa espera de Deus. O Senhor deseja
que seu povo “volte” aos caminhos de seus mandamentos, dentro dos quais é
possível progredir no caminho da santidade, inclusive, restabelecendo o pacto
da aliança com ele. De fato, “a Bíblia está repleta de expressões idiomáticas
que descrevem a responsabilidade humana no processo de arrependimento. Tais
expressões incluem: ‘inclinai o vosso coração ao Senhor Deus de Israel’ (Js 24,23); ‘circuncidai-vos para o Senhor’ (Jr 4,4); ‘lava o teu coração
da malícia’ (Jr 4,14); ‘arai o campo de pousio’ (Os 10,12); e assim por diante.
Entretanto, todas essas expressões que designam a atividade penitente do homem
resumem-se e sintetizam-se neste único verbo, shûv. Pois, melhor do que qualquer outro verbo ele combina em si
dois requisitos do arrependimento: desviar-se do mal e voltar-se para o bem” (Dicionário
Internacional de Teologia do Antigo Testamento). Embora tal verbo se desdobre
em muitas conotações, “o terceiro e importante uso no qal [pretérito perfeito das formas verbais em hebraico], e
teologicamente o mais crucial, se dá em passagens que tratam da volta da
comunidade da aliança para Deus (no sentido de arrependimento), ou de
desviar-se do mal (no sentido de renunciar ao pecado e rejeitá-lo) ou de
desviar-se de Deus (no sentido de apostatar)” (Dicionário Internacional de
Teologia do Antigo Testamento). Mas também se deve levar em conta que shûv está relacionado à “volta do
exílio”, porquanto deve ser “óbvia a associação das ideias de volta do exílio e
de volta para a aliança. A volta do exílio era a restauração e a recuperação
tanto quanto o era a volta de qualquer forma de pecado. Que Deus havia de
permitir ambas as voltas é algo que confirma a sua fidelidade à aliança” (Dicionário
Internacional de Teologia do Antigo Testamento). Por conseguinte, “o fato de
que as pessoas são chamadas a se voltar para Deus ou a se voltar de seus
pecados deixa implícito que o pecado não é uma mancha inapagável, mas que,
mediante conversão (que é uma graça concedida por Deus), o pecador pode
redirecionar o seu destino. Há dois lados na compreensão da conversão, o ato
livre e soberano da misericórdia divina e a decisão humana consciente de
voltar-se para Deus, o que vai além da contrição e tristeza. Essa decisão
inclui o repúdio de todo o pecado e a aceitação da vontade completa de Deus
para a própria vida” (Dicionário Internacional de Teologia do Antigo
Testamento). Tudo isso para falar da necessidade da conversão diária que o
Senhor exige de todos nós. Conversão que se aprofunda nas exigências da vida de
santidade. Trata-se dos constantes desafios que temos de enfrentar, sempre,
diante do mundo que despeja em cima de nós, e por todos os lados, tsunamis
intermináveis de chamados e apelos hedonistas que nos atiram cada vez mais
longe do querer divino, em bordos simetricamente afastados da santidade querida
por Deus.
O
Papa Bento XVI, refletindo, justamente sobra a “santidade”, indicou-nos, de
maneira simples e profunda, alguns passos que podem servir-nos de ajuda nessa
direção. Na verdade, ninguém deve sentir-se impotente ou isento de grimpar a
escada da santidade, cujos degraus se apresentam diante de todos os filhos de
Deus pela associação ao Cristo Ressuscitado. Nesse sentido, o pensamento do
Papa reveste-se de esperança e consolação para quem se imagina fora do alcance
da verdadeira vida divina, daquela pela qual fomos atravessados pela força do
próprio Espírito do Senhor. Eis, então, o que nos sugerira o Romano Pontífice:
“O que significa ser santo? Quem é chamado a ser santo? Com frequência, ainda
somos levados a pensar que a santidade é uma meta reservada a poucos eleitos.
São Paulo, ao contrário, fala do grande desígnio de Deus e declara: ‘Nele – em
Cristo – [Deus] nos escolheu antes da fundação do mundo, para sermos santos e
imaculados diante dele na caridade’ (Ef 1,4). E se refere a todos nós. No
centro do plano divino está Cristo, em quem Deus mostra sua Face: o Mistério
escondido nos séculos revelou-se em plenitude no Verbo que se fez homem. E Paulo
prossegue: ‘De fato, aprouve a Deus que nele habitasse toda a plenitude’ (Cl
1,19). Em Cristo, o Deus vivo tornou-se próximo, visível, audível, palpável,
para que todos se possam beneficiar de sua plenitude de graça e de verdade (cf.
Jo 1,14-16). Por isso, toda a existência cristã conhece uma única lei suprema,
aquela que São Paulo expressa numa fórmula que se repete em todos os seus
escritos: em Cristo Jesus”. O Papa simplesmente repete o que ao longos os
séculos a Igreja sempre repetiu em seu processo de Evangelização: Cristo é a
razão e a motivação de conversão à santidade. Ele é a medida, enfim, a “lei
suprema”, como enfatizou Bento XVI, que prossegue em sua linha de raciocínio:
“A santidade, a plenitude de vida cristã, não consiste em realizar empreendimentos
extraordinários, mas em unir-se a Cristo, em viver os seus mistérios, em
assumir as suas atitudes, os seus pensamentos e comportamentos. A medida da
santidade é dada pela estatura que Cristo atinge em nós, até quanto, com a
força do Espírito Santo, moldamos toda a nossa vida na sua. É ser conforme a
Jesus, como afirma São Paulo: 'Aquele que ele conheceu desde sempre,
predestinou-os para serem conformes à imagem do seu Filho’ (Rm 8,29)”. Tudo aí,
colocado de modo transparente e direto. Esse é o objetivo do caminho que todos
devemos percorrer com Cristo, algo que os santos conseguiram fazer com toda a
liberdade interior de sua vida depositada nas mãos de Deus. Com efeito, afirma
Bento XVI, “em todas as épocas da história da Igreja, em qualquer canto na
geografia do mundo, os santos pertencem a todos as idades e a qualquer estado
de vida, são rostos concretos de todos os povos, línguas e nações. [...]
Acrescento que, para mim, não só alguns grandes santos, que amo e que conheço
bem, servem como ‘placas de sinalização’, mas principalmente os santos simples,
ou seja, as pessoas boas que vejo na minha vida e que nunca serão canonizadas.
São pessoas normais, por assim dizer, sem heroísmo visível, mas em quem, na sua
bondade de todos os dias, vejo a verdade da fé. Essa bondade, que amadureceram
na fé da Igreja, é para mim a mais garantida apologia do cristianismo, e o
sinal de onde está a verdade”.
A convicção do Papa Bento XVI é serena e plena
de confiança na verdade que emana do Evangelho e da Sagrada Escritura como um
todo. E sua reflexão termina com uma exortação a todos nós que estamos a
caminho das alturas celestes, enquanto filhos de Deus: “Gostaria de convidar a
todos a abrir-se à ação do Espírito Santo, que transforma a nossa vida, para
sermos também nós como peças no grande mosaico de santidade que Deus vai
criando na história, para que a face de Cristo resplandeça na plenitude do seu
esplendor. Não tenhamos medo de tender para o alto, para as alturas de Deus;
não tenhamos medo que Deus nos peça demais, mas deixemo-nos guiar em todas as
ações cotidianas pela sua Palavra, ainda que nos sintamos pobres, indignos,
pecadores: é ele que irá nos transformar segundo o seu amor”. Por isso que a
Igreja de Cristo não precisa competir com o mundo. Pior ainda, ela sempre
sairá perdendo com as altercações ideológicas do mundo indiferente aos apelos
divinos de conversão e santidade.
Que
a perseverança de Carlo Acutis nos ajude e sua proximidade ao Senhor nos motive
à elevação de nossos desejos à união perfeita com Cristo.