Carlo Acutis:
Quando Deus irrompe por
dentro (I)
Nem
sei se poderíamos falar de conversão
quanto à vida de uma pessoa que, morrendo com fama de santidade, sempre teve o
privilégio de experimentar, durante toda a sua existência, Deus mesmo
irrompendo por dentro. De fato, a palavra conversão
traz no bojo de seu significado a possibilidade constante, contínua do homem,
por muito tempo e por toda a vida, em projetar o olhar na direção de Deus. No
entanto, não é isso o que acontece quando nossos olhos se sentem tão atraídos e
fascinados pelos ídolos desse mundo. Para lutar contra os imperativos profanos
e mundanos que tentam afastar-nos de Deus e de sua graça santificante, é
preciso muito discernimento interior, espiritual, acompanhado por firme e
decisiva determinação da vontade. Talvez, tenha sido isso o que aconteceu ao
“nosso amigo” Carlo Acutis, um jovem inglês, descendente de italianos, e criado
na Itália, que morreu vitimado por uma leucemia, aos 15 anos de idade. Seu
testemunho também serve como inspiração para nossa espiritualidade, sobretudo,
reconhecendo que viver a santidade não é estar fora do mundo, mas é também não
permitir que a essência da vivência cristã se torne prisioneira de suas
armadilhas.
Seu
nome, Carlo Acutis, com certeza, pode não querer dizer nada ao meu leitor, pelo
menos, por enquanto. A verdade é que comecei a admirar a vida desse jovem
quando recebi um email que falava de sua vida de santidade e de sua morte
prematura. Na ocasião, escrevi outro texto intitulado “Santidade não tem
idade”, que pode ser encontrado nas malhas da internet, protegido pelo “tio
Google”, como alguns costumam chamar o “motor
ou o mecanismo de buscas” onde instalei meu blog. Carlo Acutis faleceu em
2006, na cidade de Milão onde sua família morava e onde ele frequentava a vida
da comunidade paroquial e realizava seus estudos acadêmicos. Esse ano marcou
profundamente a vida do Papa Bento XVI, que subiu mais alguns degraus no
roteiro de sua via-sacra. Foi um tempo em que ele percorreu outras estações do
caminho da cruz de seu pontificado. De fato, ele se viu acuado por todos os
lados, tanto fora quanto dentro da própria Igreja. O escritor alemão, Andreas
Englisch, tentou resumir aquele ano por meio de um discurso denso e pontual,
pleno de vicissitudes e consequências amargas que, sem sombra de dúvidas,
fizeram sangrar as feridas da alma e do coração de Bento XVI, especialmente, ao
“interpelar os mais devotos” a posições mais coerentes com a própria fé
abraçada, não somente como cristãos, mas, de igual modo, na coerência pastoral
de movimentos dentro da Igreja e que pareciam destoar do conjunto sacro da Liturgia.
Lendo seu livro, sinto-me quase como um dos personagens que integram a
história, pois, 2006 foi o último ano de meus estudos na Itália, e a maioria
dos protagonistas envolvidos é muito conhecida pela presença constante na
imprensa e nos trabalhos e atividades do Vaticano. Aquele foi o ano do discurso
em Regensburgo, que causou reação incendiária, de modo provocante, no meio
muçulmano; de sua primeira encíclica, Deus
Caritas est, que surpreendeu, inclusive, por tratar de um tema que não
parecia de muito interesse para os que aguardavam suas palavras com tanto
entusiasmo dentro do próprio Vaticano. O tema do “amor físico”, carnal, era de
insuspeita possibilidade de argumentação pelo “sabichão” teólogo da Congregação
para a Doutrina da Fé, que se tornara Papa, mesmo que ele tivesse recorrido a
um segundo autor, o Cardeal Paulo Cordes, que o ajudou na elaboração do
documento, o que também foi outra grande surpresa; tudo isso sem falar de
outros problemas como os relacionados à Radio Vaticana, que passava por
dificuldades financeiras, com 400 empregados de mais de sessenta países,
produzindo programas em 38 idiomas diferentes; as dificuldades encontradas na
Polônia, a terra do Grande Papa João Paulo II, em sua segunda visita
internacional, tendo de apresentar-se para um discurso tão histórico quanto
penoso às portas de Auschwitz, sobretudo, por ele ter sido acusado pelos
inimigos de ter servido nas bases aéreas de artilharia do Nazismo, algo de que,
quiçá, ele não poderia escapar como qualquer outro jovem alemão da época; as
intrigas dentro do Vaticano, ainda reforçadas pela nomeação de um Cardeal que
nunca fora Diplomata, “nem sequer falava inglês, imperdoável para um chefe do
ministério do Exterior nos tempos atuais”, o Cardeal Chefe de Estado, Tarcísio Bertrone;
a demissão do Porta-voz do Vaticano Joaquim Navarro Vaz; o caso Emmanuel
Milingo, o Arcebispo “Louco da África”, que, sem culpa direta de Bento XVI,
causou muitos males e danos à Igreja no mundo inteiro [conheço um sacerdote que
deixou o ministério, que foi casado por ele, aqui no Brasil!]; e tantos outros
fatos doloridos que poderiam ser citados. Pois bem, antes de morrer, o jovem
Carlo Acutis ofereceu sua “passagem” pela Igreja e pelo Papa. Na verdade, um
gesto de apoio e sustento espiritual em favor da Igreja inteira. Impressionante
é saber da coragem dos santos que motivam também a vida dos chefes da Igreja de
Cristo em momentos tão cruciais de sua história. Certamente, para um jovem
arguto e inteligente, com sua vida espelhada no Evangelho e nos ensinamentos de
Cristo, sintonizado com seus problemas mais prementes, enfrentando com
serenidade os embates e a agonia da doença que cobrou o preço de sua
existência, seu depoimento permanece oferecendo frutos à vida de quem o conhece
mesmo se apenas pela sua simples, mas envolvente, biografia. Seu corpo repousa
num túmulo em Assis, a cidade de São Francisco, um santo de quem ele era devoto
e de quem aprendeu a simplicidade de vida na obediência aos ensinamentos de
Cristo e de seu Evangelho. Nesse topônimo, ele esteve várias vezes, passando
férias em uma casa da família. É um lugar agradabilíssimo, onde eu já estive
três vezes. Cercado de montanhas na região da Úmbria, a sensação de paz que
acompanha o turista parece revelar a presença do santo caminhando entre nós,
como se não tivesse morrido.
É,
pois, assim, contemplando a vida desse jovem, que eu gostaria de refletir sobre
a necessidade de conversão de todos os discípulos de Cristo. Escrever sobre
conversão não é difícil. Difícil é converter-se, de fato. Cada um coloque o
dedo nas feridas de sua própria consciência, sem intencionar querer julgar os
outros. A grande graça todos nós já recebemos pelo santo Batismo, que nos
mergulhou na própria morte e ressurreição de Jesus de Nazaré. Por ele,
recebemos a chamada “graça santificante”, que nos identifica com ele. É São
Paulo quem o afirma em sua teologia: “Pelo batismo nós fomos sepultados com ele
na morte, para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória
do Pai, assim também nós vivamos vida nova” (Rm 8,4). Daí por que “se nos
tornamos uma só coisa com ele por morte semelhante à sua, seremos uma coisa só
com ele também por ressurreição semelhante à sua, sabendo que nosso velho homem
foi crucificado com ele para que fosse destruído esse corpo de pecado, e assim
não sirvamos mais ao pecado” (Rm 6,5-6). E “não servir ao pecado” significa
fazer de tudo para que sejamos agradáveis a Deus, à maneira de Jesus, que foi
obediente até a morte e morte de Cruz (Fl 2,6-11). Portanto, não podemos esquecer-nos
de que é a graça de Cristo que trabalha em nós, e que todo esforço na direção
da vida de santidade é fruto de sua graça operante. Como afirma a reflexão da
Igreja, ela “é um dom, mas simultaneamente uma conquista”. É, pois, dentro da
dinâmica da “conquista” que assume valor e significado o processo de conversão
do homem. Deus indica o caminho e oferece o tempo da conversão, mas é preciso
que ele se decida. No entanto, qual é, então, “o tempo da conversão”?