Nelson
Mandela, E as luzes ainda acesas
Quando um homem se apaga na consumação
de sua própria existência, deixa pelo tempo afora as luzes acesas que
iluminarão as esperanças de outros homens, porquanto suas luzes não se apagam,
definitivamente. Talvez, seja esse o reflexo presente no mundo contemporâneo da
grandeza e da estatura de um homem como foi Nelson Mandela (1918-2013). A vida
inteira dedicada a conquistas de sonhos – sobretudo, da liberdade na luta
contra o preconceito e tantas outras formas de diminuição da dignidade humana –
fala da envergadura de sua incansável teimosia. Nem mesmo a prisão pode deter
os passos do homem interiormente livre, a ponto de saber quando, como e por
onde alçar o voo desimpedido nas asas dos ideais e da esperança.
No caso específico de Nelson Mandela, o
líder sul-africano – ou de Madiba,
para melhor falar de sua etnia e de sua história pessoal – as luzes projetadas
pelas janelas de sua existência continuam acesas e ainda brilharão por muito
tempo, sobretudo, no continente Sul Africano pelo qual lutou e sofreu,
defendendo os direitos da igualdade entre todos os homens e sua gente. Despedindo-se
do mestre que se tornou, não apenas a referência de um povo, mas também, de uma
legião de cidadãos espalhados pelo mundo inteiro, a humanidade inteira sente-se
obrigada a levar adiante a luta pelas conquistas e os sacrifícios de sua vida. Portanto,
Nelson Mandela é o protótipo evidente de que a prisão, aceita com a serenidade
de suas convicções, mesmo se arbitrária e realizada pelas ciladas políticas e
ditatoriais de alguns gênios da maldade, pode fazer permanecerem inabaláveis as
certezas que conduzem a lucidez de um gigante. De um gigante que conseguiu
vencer o ódio e o preconceito, a mais brutal das intolerâncias sem motivos nem
razão de ser, pela placidez, bem administrada, da fortaleza de seu caráter e de
sua personalidade. Embora ele tenha se tornado tão brilhante quanto uma estrela
de grande porte e intensidade, não se trata de um caso isolado de quem foi
subjugado pela tirania covarde da prepotência de grupos caudilhistas, que
tentam degradar a decência e a dignidade humanas com requintes de crueldade,
cinismo e humilhações, perpetrados pela criatividade maligna de impostores vorazes
e implacáveis. A história da humanidade está cheia deles. A ladeira histórica
dos séculos sempre foi pontuada por litores nefastos da agonia alheia. A lista
de pessoas trucidadas pela capacidade testemunhal da bestialidade humana seria
interminável. Pensemos, por exemplo, nos algozes do século XX, durante o qual,
muitos foram dizimados pela estupidez sanguinária de cães assassinos, sedentos
de poder e domínio, cujo azedume estrangulou massas inteiras do convívio social,
mas também pessoas singulares. Fiz o levantamento de uma relação de nomes que poderiam
despertar a curiosidade o leitor. Alguns mais influentes do que outros. No
entanto, todos foram vítimas da prepotência da opressão de seus iguais. Não me
detenho em detalhes conjunturais de seu fatídico fim existencial, para não me
distanciar muito do intento de minha argumentação. São eles: John F. Kennedy
(22 de novembro de 1963, em Dallas, nos Estados Unidos); Yitzhak Rabin (4 de
novembro de 1995, em Tel Aviv, Israel); Mahatma Gandhi, o “pai da desobediência
civil não violenta” (30 de janeiro de 1948, Nova Deli,
Índia); Charles de Foucauld (1 de dezembro de 1916,
Tamanrasset, Argélia); Martin Luter King (4 de abril
de 1968, Memphis, Tennessee, Estados Unidos); Francisco Fernando da
Áustria-Hungria (28 de junho de 1914, Sarajevo, Bósnia e
Herzegovina); Edith Cavell (12 de outubro de 1915), seu nome inspirou o
onomástico de Edith Piaf; William Mckinley (14 de setembro de 1901, Buffalo,
Nova Iorque, Estados Unidos); Martha Hari (15 de
outubro de 1917, dançarina holandesa, espiã); a família imperial russa de
Nicolau II e Alexandra, com seus cinco filhos (julho de 1918, na casa Ipatiev,
em Ekaterinburgo); Leon Trotsky (21
de agosto de 1940, em Coyoacán, no México); Hendrick Frensch Verwoerd (6 de
setembro de 1968, na Cidade do Cabo); Robert F. Kennedy (5 de junho de 1968, em
Los Angeles, na Califórnia, nos Estados Unidos); John Lennon, músico e “notável
ativista pela paz mundial” (8 de dezembro de 1980, em Nova York); Indira Gandhi
(31 de outubro de 1984, em Nova Deli, na Índia); Olof Palme, Primeiro-ministro
da Suécia (1 de maio de 1986, em Estocolmo); Juvenal Habyarimana, presidente de
Ruanda (6 de abril de 1994), seu assassinato desencadeou um verdadeiro
genocídio entre hútus (dois milhões deles fugiram) e tútsis; Lady
Diana Frances Spencer, também conhecida mundialmente por Lady Di, (31 de agosto de 1997, em Paris, na França); o irmão Roger
Louis Schütz-Marsauche (16 de agosto de 2005, Taizé, França),
Fundador da Comunidade de Taizé, já no início do século XXI; João Paulo II (13
de maio de 1981, na Praça do Vaticano), quase foi vitimado também, e muitos outros que
adormeceram no anonimato da história dos homens. Na verdade, foram homens e
mulheres que não derramaram o sangue em vão, embora tenham vivido tempos
obscuros da história recente, que nossos olhos não conseguem vislumbrar com
muita claridade. Mas eles estiveram lá, compondo o mosaico da tirania obtusa e covarde,
fazendo verter o sangue que tinge a bandeira, vagarosamente, flamejante dos
séculos. Morreram lutando e defendendo alguma causa em favor do bem da
humanidade, pois como afirmara Martin Luter King, “o homem que não sabe pelo
que está disposto a morrer, não está preparado para viver”.
"I Have a dream" (Martin L. King)
Diante de tantos horrores que
assombraram o mundo, especialmente, durante a Segunda Grande Guerra Mundial,
surgiu a necessidade de criar a fundação da ONU (Organização das Nações
Unidas), no pós-guerra, em 1945, como um esforço de resposta favorável ao
controle de futuros desmandos políticos contra os seres humanos e sua
dignidade, mesmo se devamos reconhecer que, ainda hoje, muitos países que ainda
vivem sob a ditadura da “cortina de ferro”, isto é, que são isolados e dos
quais se tem poucas notícias ou informações, estão pouco se lixando para os
direitos humanos, cuja Declaração Universal foi proclamada pela própria ONU, em
1948. Nem sempre “a pressão moral sobre governos transgressores” carrega
consigo a eficiência de suas verdadeiras intenções, nem tampouco refreia a sede
do poder tirânico que sobrepõe a selvageria diabólica de comportamentos humanos
abjetos à lisura dos direitos iguais para todos. Todavia, trazendo o pêndulo do
propósito inicial da discussão sobre Nelson Mandela, o fato é que 27 anos de
prisão podem muito bem destruir os sonhos e os ideais de qualquer pessoa
arrestada no direito de ir e vir como o sagrado “dever” de sua liberdade. Com
efeito, alguém já disse que a liberdade não é um “direito”, mas um “dever”. No
entanto, ele não se deixou levar pela mediocridade que corrói e diminui a
dignidade humana, tornando podres as convicções mais profundas de quem não sabe
pelo que está lutando. Pelo contrário, ele “manteve uma digna atitude de
desafio durante o julgamento, alegando que a resistência à opressão seria
inevitável. Na prisão, tornou-se o símbolo das aspirações de todos os
sul-africanos negros, crescendo em estatura ao longo dos 27 anos que lá passou por
recusar qualquer concessão que comprometesse as suas crenças. De sua sela,
tornou-se um líder internacional dos oprimidos. O nome de Mandela esteve no
centro da campanha mundial contra o apartheid,
que derrubaria o regime sul-africano e sua política racista”. Dentro desse
contexto, ele é fruto de uma geração de homens que não sucumbiram por milagre
do destino, ou melhor, por milagre da intervenção divina. Com efeito, Deus
sempre suscitou faróis que pudessem indicar luminosidade para os caminhos da
humanidade.
Cardeal Van Thuan
Outro caso que ficou conhecido, de
maneira comovente, sobretudo, na Igreja, foi o da prisão do Cardeal François-Xavier Nguyên Van Thuân (1928-2002),
hoje, Servo de Deus, em processo de Beatificação. Ele permaneceu no cárcere do
Vietnã durante 13 anos, nove dos quais ele viveu no mais completo isolamento. Tendo
sido nomeado pelo Papa Paulo VI Arcebispo Coadjutor de Saigon, no Norte do
país, experimentou o terror da perseguição do Comunismo, que não permitiu que
ele realizasse o labor pastoral, o apostolado próprio de um arcebispo, em sua Arquidiocese.
Certamente, com ele, muitos outros cristãos foram perseguidos, terrivelmente,
pela ditadura política da nação. Todavia, num âmbito mais discreto e até
escondido do mundo, que não o conheceu como deveria, se cotejado à notoriedade
de Nelson Mandela, seu testemunho também é muito eloquente. Pena que,
estranhamente, o heroísmo cristão não interesse a ninguém, porque não dá ibope
à mídia internacional. Tal heroísmo é vivido no anonimato, no silêncio oferente
dos seguidores de Cristo, o que o fazem sem alardes, como o grão de trigo caído
na terra, pisado e mortificado, esperando a oportunidade favorável para ostentar
a beleza e a fecundidade de seus frutos. Mas, nem mesmo na masmorra sombria,
ele se deixou abater, conservando a clarividência do amor a Deus e a oportunidade
de continuar servindo à Igreja. Depois de libertado, em 1988, ele percorreu o
mundo, fazendo conferências e demonstrando, à viva voz, que o amor vence o ódio
somente nos corações radicalmente abnegados, desprendidos de si mesmos e
abertos às aventuras da inspiração divina. Foi ele quem escreveu o seguinte
pensamento: “Quando o amor abandona o coração humano, quando nele se levanta o
mar do egoísmo e da vingança, é que está próximo o momento da exterminação”. No
Vietnã, e certamente em muitas outras nações, o olho do Estado é tão
onipresente no meio do povo que, há alguns anos, um amigo vietanita me contava
que, lá, ainda hoje, onde houver três pessoas, duas são espiãs, isto é, duas
vigiam uma, e assim sucessivamente, de modo que qualquer traidor aos princípios
do estado pode ser delatado sem dificuldades. O governo chama para um passeio,
e o indivíduo pode desaparecer sem deixar rastros. Por fatos desse tipo, e
tantos outros de semelhante degradação humana, é que o século XX foi um tempo
difícil, de modo enfático, para os países do Leste Europeu. Nessa região houve o
massacre polonês pela invasão russa, numa operação militar, logo no início da
Segunda Guerra Mundial, que oprimiu sua gente, e do meio da qual Deus fez
despontar o Beato João Paulo II, que lutou com unhas e dentes contra a opressão
de seu povo. No Vietnã, foram milhões e milhões de pessoas que desapareceram
sob o horror do comunismo. Na Rússia, quantos não foram vítimas de processos delinquentes
de desumanização e de ódio, mormente, em relação aos cristãos. Milhares e
milhares de igrejas foram destruídas como esforço de liberação do “ópio do
povo” – a Santa Religião de Cristo – que se espalhara por toda parte, graças à
coragem de São Cirilo e Metódio, que, no século IX, fizeram chegar ali o
cristianismo em favor de cuja pregação eles, por intervenção do Imperador
Bizantino Miguel III, estruturaram, inclusive, um alfabeto totalmente novo para
a língua eslava, a fim de favorecer a propagação da fé.
Beato João Paulo II
Já a sombra do nazismo, por sua vez,
varreu de sua “proteção” milhares e milhares de judeus, ciganos, deficiente,
homossexuais, negros, enfim, uma intolerância sem precedentes que oprimiu
homens, mulheres e crianças, vítimas da antropofagia selvagem, que os trucidou
em nome civilizatório, estupidamente, cognominado de “raça pura”. O mundo se
viu prostrado pela brilhante e genial demência de um líder impiedoso, desumano
e crudelíssimo, numa batalha fratricida. Por essa razão, não podemos deixar de
considerar, também, que muitos homens ilustres que, de alguma maneira positiva,
influenciaram a história da humanidade não resistiram às trápolas dos inimigos
que os espreitavam à beira da estrada. O século passado foi um tempo
terrivelmente obscuro, de duras provas para a humanidade como um todo, mas
também para os indivíduos em sua singularidade. Hodiernamente, poderíamos dizer
que os vencedores de páginas tão nefastas e negras para a história da
humanidade, já foram derrotados pelas artimanhas insubornáveis do tempo, que os
precipitou no descalabro circunstancial dos fatos. Plantada sobre os seus
escombros, até hoje a humanidade tenta superar os traumas paralisantes e os
fantasmas viscerais que a assombrou terrificantemente.
Aos heróis de nosso tempo e de todos os
tempos – como tantos acima citados, e entre os quais figura Nelson Mandela – o
elogio histórico dos que ainda percorrem terras sem fim em defesa da dignidade
humana e de seus direitos invioláveis de justiça, de cidadania, de educação, de
saúde, de moradia, de respeito aos direitos iguais para todos, enfim, de lisura
meritória e sagrada de qualquer vida humana que pise o solo firme de todas as
nossas esperanças de sobrevivência, decência e brio. Tudo isso pelo que, de
fato e de verdade, deveríamos ser, isto é, autenticamente humanos.