terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Nelson Mandela e as luzes ainda acesas

Nelson Mandela, E as luzes ainda acesas

 

Quando um homem se apaga na consumação de sua própria existência, deixa pelo tempo afora as luzes acesas que iluminarão as esperanças de outros homens, porquanto suas luzes não se apagam, definitivamente. Talvez, seja esse o reflexo presente no mundo contemporâneo da grandeza e da estatura de um homem como foi Nelson Mandela (1918-2013). A vida inteira dedicada a conquistas de sonhos – sobretudo, da liberdade na luta contra o preconceito e tantas outras formas de diminuição da dignidade humana – fala da envergadura de sua incansável teimosia. Nem mesmo a prisão pode deter os passos do homem interiormente livre, a ponto de saber quando, como e por onde alçar o voo desimpedido nas asas dos ideais e da esperança. 


No caso específico de Nelson Mandela, o líder sul-africano – ou de Madiba, para melhor falar de sua etnia e de sua história pessoal – as luzes projetadas pelas janelas de sua existência continuam acesas e ainda brilharão por muito tempo, sobretudo, no continente Sul Africano pelo qual lutou e sofreu, defendendo os direitos da igualdade entre todos os homens e sua gente. Despedindo-se do mestre que se tornou, não apenas a referência de um povo, mas também, de uma legião de cidadãos espalhados pelo mundo inteiro, a humanidade inteira sente-se obrigada a levar adiante a luta pelas conquistas e os sacrifícios de sua vida. Portanto, Nelson Mandela é o protótipo evidente de que a prisão, aceita com a serenidade de suas convicções, mesmo se arbitrária e realizada pelas ciladas políticas e ditatoriais de alguns gênios da maldade, pode fazer permanecerem inabaláveis as certezas que conduzem a lucidez de um gigante. De um gigante que conseguiu vencer o ódio e o preconceito, a mais brutal das intolerâncias sem motivos nem razão de ser, pela placidez, bem administrada, da fortaleza de seu caráter e de sua personalidade. Embora ele tenha se tornado tão brilhante quanto uma estrela de grande porte e intensidade, não se trata de um caso isolado de quem foi subjugado pela tirania covarde da prepotência de grupos caudilhistas, que tentam degradar a decência e a dignidade humanas com requintes de crueldade, cinismo e humilhações, perpetrados pela criatividade maligna de impostores vorazes e implacáveis. A história da humanidade está cheia deles. A ladeira histórica dos séculos sempre foi pontuada por litores nefastos da agonia alheia. A lista de pessoas trucidadas pela capacidade testemunhal da bestialidade humana seria interminável. Pensemos, por exemplo, nos algozes do século XX, durante o qual, muitos foram dizimados pela estupidez sanguinária de cães assassinos, sedentos de poder e domínio, cujo azedume estrangulou massas inteiras do convívio social, mas também pessoas singulares. Fiz o levantamento de uma relação de nomes que poderiam despertar a curiosidade o leitor. Alguns mais influentes do que outros. No entanto, todos foram vítimas da prepotência da opressão de seus iguais. Não me detenho em detalhes conjunturais de seu fatídico fim existencial, para não me distanciar muito do intento de minha argumentação. São eles: John F. Kennedy (22 de novembro de 1963, em Dallas, nos Estados Unidos); Yitzhak Rabin (4 de novembro de 1995, em Tel Aviv, Israel); Mahatma Gandhi, o “pai da desobediência civil não violenta” (30 de janeiro de 1948, Nova Deli, Índia); Charles de Foucauld (1 de dezembro de 1916, Tamanrasset, Argélia); Martin Luter King (4 de abril de 1968, Memphis, Tennessee, Estados Unidos); Francisco Fernando da Áustria-Hungria (28 de junho de 1914, Sarajevo, Bósnia e Herzegovina); Edith Cavell (12 de outubro de 1915), seu nome inspirou o onomástico de Edith Piaf; William Mckinley (14 de setembro de 1901, Buffalo, Nova Iorque, Estados Unidos); Martha Hari (15 de outubro de 1917, dançarina holandesa, espiã); a família imperial russa de Nicolau II e Alexandra, com seus cinco filhos (julho de 1918, na casa Ipatiev, em Ekaterinburgo); Leon Trotsky (21 de agosto de 1940, em Coyoacán, no México); Hendrick Frensch Verwoerd (6 de setembro de 1968, na Cidade do Cabo); Robert F. Kennedy (5 de junho de 1968, em Los Angeles, na Califórnia, nos Estados Unidos); John Lennon, músico e “notável ativista pela paz mundial” (8 de dezembro de 1980, em Nova York); Indira Gandhi (31 de outubro de 1984, em Nova Deli, na Índia); Olof Palme, Primeiro-ministro da Suécia (1 de maio de 1986, em Estocolmo); Juvenal Habyarimana, presidente de Ruanda (6 de abril de 1994), seu assassinato desencadeou um verdadeiro genocídio entre hútus (dois milhões deles fugiram) e tútsis; Lady Diana Frances Spencer, também conhecida mundialmente por Lady Di, (31 de agosto de 1997, em Paris, na França); o irmão Roger Louis Schütz-Marsauche (16 de agosto de 2005, Taizé, França), Fundador da Comunidade de Taizé, já no início do século XXI; João Paulo II (13 de maio de 1981, na Praça do Vaticano), quase foi vitimado também, e muitos outros que adormeceram no anonimato da história dos homens. Na verdade, foram homens e mulheres que não derramaram o sangue em vão, embora tenham vivido tempos obscuros da história recente, que nossos olhos não conseguem vislumbrar com muita claridade. Mas eles estiveram lá, compondo o mosaico da tirania obtusa e covarde, fazendo verter o sangue que tinge a bandeira, vagarosamente, flamejante dos séculos. Morreram lutando e defendendo alguma causa em favor do bem da humanidade, pois como afirmara Martin Luter King, “o homem que não sabe pelo que está disposto a morrer, não está preparado para viver”. 

 
 "I Have a dream" (Martin L. King)
Diante de tantos horrores que assombraram o mundo, especialmente, durante a Segunda Grande Guerra Mundial, surgiu a necessidade de criar a fundação da ONU (Organização das Nações Unidas), no pós-guerra, em 1945, como um esforço de resposta favorável ao controle de futuros desmandos políticos contra os seres humanos e sua dignidade, mesmo se devamos reconhecer que, ainda hoje, muitos países que ainda vivem sob a ditadura da “cortina de ferro”, isto é, que são isolados e dos quais se tem poucas notícias ou informações, estão pouco se lixando para os direitos humanos, cuja Declaração Universal foi proclamada pela própria ONU, em 1948. Nem sempre “a pressão moral sobre governos transgressores” carrega consigo a eficiência de suas verdadeiras intenções, nem tampouco refreia a sede do poder tirânico que sobrepõe a selvageria diabólica de comportamentos humanos abjetos à lisura dos direitos iguais para todos. Todavia, trazendo o pêndulo do propósito inicial da discussão sobre Nelson Mandela, o fato é que 27 anos de prisão podem muito bem destruir os sonhos e os ideais de qualquer pessoa arrestada no direito de ir e vir como o sagrado “dever” de sua liberdade. Com efeito, alguém já disse que a liberdade não é um “direito”, mas um “dever”. No entanto, ele não se deixou levar pela mediocridade que corrói e diminui a dignidade humana, tornando podres as convicções mais profundas de quem não sabe pelo que está lutando. Pelo contrário, ele “manteve uma digna atitude de desafio durante o julgamento, alegando que a resistência à opressão seria inevitável. Na prisão, tornou-se o símbolo das aspirações de todos os sul-africanos negros, crescendo em estatura ao longo dos 27 anos que lá passou por recusar qualquer concessão que comprometesse as suas crenças. De sua sela, tornou-se um líder internacional dos oprimidos. O nome de Mandela esteve no centro da campanha mundial contra o apartheid, que derrubaria o regime sul-africano e sua política racista”. Dentro desse contexto, ele é fruto de uma geração de homens que não sucumbiram por milagre do destino, ou melhor, por milagre da intervenção divina. Com efeito, Deus sempre suscitou faróis que pudessem indicar luminosidade para os caminhos da humanidade. 

 
 Cardeal Van Thuan
Outro caso que ficou conhecido, de maneira comovente, sobretudo, na Igreja, foi o da prisão do Cardeal François-Xavier Nguyên Van Thuân (1928-2002), hoje, Servo de Deus, em processo de Beatificação. Ele permaneceu no cárcere do Vietnã durante 13 anos, nove dos quais ele viveu no mais completo isolamento. Tendo sido nomeado pelo Papa Paulo VI Arcebispo Coadjutor de Saigon, no Norte do país, experimentou o terror da perseguição do Comunismo, que não permitiu que ele realizasse o labor pastoral, o apostolado próprio de um arcebispo, em sua Arquidiocese. Certamente, com ele, muitos outros cristãos foram perseguidos, terrivelmente, pela ditadura política da nação. Todavia, num âmbito mais discreto e até escondido do mundo, que não o conheceu como deveria, se cotejado à notoriedade de Nelson Mandela, seu testemunho também é muito eloquente. Pena que, estranhamente, o heroísmo cristão não interesse a ninguém, porque não dá ibope à mídia internacional. Tal heroísmo é vivido no anonimato, no silêncio oferente dos seguidores de Cristo, o que o fazem sem alardes, como o grão de trigo caído na terra, pisado e mortificado, esperando a oportunidade favorável para ostentar a beleza e a fecundidade de seus frutos. Mas, nem mesmo na masmorra sombria, ele se deixou abater, conservando a clarividência do amor a Deus e a oportunidade de continuar servindo à Igreja. Depois de libertado, em 1988, ele percorreu o mundo, fazendo conferências e demonstrando, à viva voz, que o amor vence o ódio somente nos corações radicalmente abnegados, desprendidos de si mesmos e abertos às aventuras da inspiração divina. Foi ele quem escreveu o seguinte pensamento: “Quando o amor abandona o coração humano, quando nele se levanta o mar do egoísmo e da vingança, é que está próximo o momento da exterminação”. No Vietnã, e certamente em muitas outras nações, o olho do Estado é tão onipresente no meio do povo que, há alguns anos, um amigo vietanita me contava que, lá, ainda hoje, onde houver três pessoas, duas são espiãs, isto é, duas vigiam uma, e assim sucessivamente, de modo que qualquer traidor aos princípios do estado pode ser delatado sem dificuldades. O governo chama para um passeio, e o indivíduo pode desaparecer sem deixar rastros. Por fatos desse tipo, e tantos outros de semelhante degradação humana, é que o século XX foi um tempo difícil, de modo enfático, para os países do Leste Europeu. Nessa região houve o massacre polonês pela invasão russa, numa operação militar, logo no início da Segunda Guerra Mundial, que oprimiu sua gente, e do meio da qual Deus fez despontar o Beato João Paulo II, que lutou com unhas e dentes contra a opressão de seu povo. No Vietnã, foram milhões e milhões de pessoas que desapareceram sob o horror do comunismo. Na Rússia, quantos não foram vítimas de processos delinquentes de desumanização e de ódio, mormente, em relação aos cristãos. Milhares e milhares de igrejas foram destruídas como esforço de liberação do “ópio do povo” – a Santa Religião de Cristo – que se espalhara por toda parte, graças à coragem de São Cirilo e Metódio, que, no século IX, fizeram chegar ali o cristianismo em favor de cuja pregação eles, por intervenção do Imperador Bizantino Miguel III, estruturaram, inclusive, um alfabeto totalmente novo para a língua eslava, a fim de favorecer a propagação da fé. 

 Beato João Paulo II
Já a sombra do nazismo, por sua vez, varreu de sua “proteção” milhares e milhares de judeus, ciganos, deficiente, homossexuais, negros, enfim, uma intolerância sem precedentes que oprimiu homens, mulheres e crianças, vítimas da antropofagia selvagem, que os trucidou em nome civilizatório, estupidamente, cognominado de “raça pura”. O mundo se viu prostrado pela brilhante e genial demência de um líder impiedoso, desumano e crudelíssimo, numa batalha fratricida. Por essa razão, não podemos deixar de considerar, também, que muitos homens ilustres que, de alguma maneira positiva, influenciaram a história da humanidade não resistiram às trápolas dos inimigos que os espreitavam à beira da estrada. O século passado foi um tempo terrivelmente obscuro, de duras provas para a humanidade como um todo, mas também para os indivíduos em sua singularidade. Hodiernamente, poderíamos dizer que os vencedores de páginas tão nefastas e negras para a história da humanidade, já foram derrotados pelas artimanhas insubornáveis do tempo, que os precipitou no descalabro circunstancial dos fatos. Plantada sobre os seus escombros, até hoje a humanidade tenta superar os traumas paralisantes e os fantasmas viscerais que a assombrou terrificantemente. 

 

Aos heróis de nosso tempo e de todos os tempos – como tantos acima citados, e entre os quais figura Nelson Mandela – o elogio histórico dos que ainda percorrem terras sem fim em defesa da dignidade humana e de seus direitos invioláveis de justiça, de cidadania, de educação, de saúde, de moradia, de respeito aos direitos iguais para todos, enfim, de lisura meritória e sagrada de qualquer vida humana que pise o solo firme de todas as nossas esperanças de sobrevivência, decência e brio. Tudo isso pelo que, de fato e de verdade, deveríamos ser, isto é, autenticamente humanos.