Tecnologia
Desumanizante
A tecnologia deveria estar sempre a
serviço do homem, sobretudo, realizando um papel eficiente e de benefício para
a humanidade. Mas, não é isso o que parece estar acontecendo, quando, por
exemplo, as pessoas imaginam poder usar a tecnologia para todo tipo de desabafo
e até mesmo ofensas pessoais. Não frequento muito as rede sociais por meio do
que muitas pessoas estão tirando proveito, de modo especial, para angariar um
pouco de reconhecimento e prestígio, e conseguir seus 15 minutos de fama. No
meio artístico, há muitas personalidades que, passando por ali, tornaram-se
mundialmente nomeadas pelo seu talento e esforço de popularidade. Sorte delas!
Mas, nem todo mundo possui as características necessárias para sobressair-se em
meio ao caos invasivo e estonteante da exposição cibernética de baixo talento e
pouca qualidade das baboseiras que, às vezes, somos quase constrangidos a ver.
O fato é que, por trás dos aparelhos
modernos e refinados da tecnologia de que nos servimos para múltiplos modos de
comunicação, podemos evidenciar a periculosidade impessoal das telas, dos
aplicativos, dos dispositivos de alcance cronológico espacial das
possibilidades efetivas de transmissão das mensagens, por cuja utilização,
tentamos livrar-nos de certos incômodos da convivência pluricultural ditada
pela distância física ou geográfica das pessoas. Já tive uma conta no face book, depois de alguns meses,
aborreci-me e fechei. Uma enxurrada de comentários e manifestações de gente
desconte com os outros, expunha seus desafetos sem piedade nem senso de
respeito, considerando somente a tela fria que recebia suas mensagens, como se
do outro lado não houvesse uma pessoa viva, sentimental, cheia de sensações e
motivos para defender sua dignidade diante da covardia das injúrias alheias, depositadas
no canteiro das redes sociais, que deveriam fazer tanto bem, que deveriam unir
e, não, dividir, separar as pessoas. Quem não presenciou ou tomou conhecimentos
de situações desse tipo? Assim, a dignidade humana desce pelo ralo do sistema
nervoso das telecomunicações modernas. Sem falar de outros aplicativos por meio
dos quais nos negamos a ouvir a voz do outro – ninguém fala mais com ninguém –
de modo que o desinteresse pelo semelhante virou uma chaga viva, da qual
borbulha a putrefação da indiferença. Portanto, no raio da circunferência
dialogal, a brutalidade dos recados destrói até amizades que foram construídas
ao longo dos anos. Amizades vividas no aconchego da suposta “familiaridade”, da
qual, às vezes, somos precipitados sem motivos aparentes. E, para isso, um
segundo – isto mesmo, “um segundo” – pode ser suficiente para jogarmos fora os
amigos que enjoamos tanto quanto o lixo que descartamos no monturo da
invalidez. E o mais grave é que, nem sequer, damos-lhes a oportunidade ou o
direito para que se expliquem ou, talvez, peçam desculpas ou perdão mesmo,
pois, nos relacionamentos humanos, ninguém fere sem se ferir.
Oh humanidade cruel! Humanitas crudelis! Ó humanidade cruel,
teu caminho não é o da reconciliação. Teu kronos
não é alvissareiro da esperança, nem tua plenitude favorece a realização
concreta do sonho desejoso da paz e da tranquilidade de espírito. Quantas
feridas não se abriram no sulco de teu terreno infrutífero, mas úmido pela
fertilidade do mal? A âncora de teu desprezo desumaniza o homem criado para a
humanização!
“Um segundo” é muito tempo! Enganam-se
aqueles que pensam que “um segundo” pode ser desconsiderado na textura
cronológica da existência. Com efeito, é na corrente dos segundos que nossa
vida é constituída. Nela, a vida se desenvolve, atinge sua plenitude nos anos
e, depois, desaparece, cortada pela cisão temporal entre o aqui e o lá do
desconhecimento humano. No caso das despedidas, o segundo se perpetua na
decorrência de seu instante efêmero que se projeta no futuro das vicissitudes
incongruentes dos desejos transcendentais do homem. Como diria Suzana Vieira,
atriz de novela, “o amor não é para sempre! Para sempre é o adeus [a
despedida!]” O mesmo pode ser dito das amizades que não são para sempre, como
gostaríamos. Algumas não duram no tempo nem subsistem aos vendavais
circunstanciais dos desafetos. Mais ou menos como na afirmação de La
Rochefoucauld: “Por mais raro que possa ser o amor, ainda mais rara é a
verdadeira amizade”. É como se o fio condutor da preciosidade pelo outro se
desgastasse pelo enjoo da proximidade. Isso dito da convivência que nos
acoberta pelos laços da amizade quando estamos juntos. Se é que estamos juntos,
unidos. Na verdade, tão frágil e tênue é a vibra dos relacionamentos que temos
dificuldade para sentir-nos seguros dentro dela.
Paradoxalmente, se a tecnologia tenta
aproximar-nos pela invisibilidade da globalização, o fato é que nos sentimos
cada vez mais sozinhos. Vivemos conectados com o mundo inteiro, mas separados
uns dos outros pela incapacidade de construir a verdadeira fraternidade
enquanto princípio da autêntica humanização. Foi o Papa Bento XVI quem
escreveu: “A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não
nos faz irmãos. A razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os homens
e estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a
fraternidade”. Um pensamento certeiro no alvo da modernidade tecnológica em que
nos imaginamos envolvidos quotidianamente. Porém, não podemos ser ingênuos a
ponto de não nos questionar sobre os verdadeiros benefícios que ela nos tem
proporcionado. Seria bom que pudéssemos, então, fazer uma análise crítica de
nosso comportamento frente a ela. Do quanto já fomos visceralmente atingidos
pelo vício cibernético que nos tem roubado coisas muito preciosas de nossa
humanidade. De fato, já nos envolvemos tanto com o fascínio da máquina ao
alcance da mão, que corremos o risco de assumir em nossas atitudes a frieza
desumana de sua insensibilidade. Dela poderemos herdar a indelicadeza pela qual
nos afastamos ainda mais dos entes queridos. Dela já quase perdemos o
privilégio do diálogo sonoro pelo qual poderíamos ouvir a voz do outro,
perceber suas emoções, captar sua tristeza, deixar-nos contagiar pela sua
alegria ou participar, de maneira mais interativa, pela cadeia dos sentimentos
de suas esperanças e de seus sonhos. Todavia, em outro tipo de raciocínio, o
Papa Francisco tem um pensamento luminoso, que poderia ajudar-nos na superação
do indiferentismo de que fomos infectados até a alma pelos espectros
tecnológicos da modernidade: “Neste tempo em que as redes e demais instrumentos
da comunicação humana alçaram progressos inauditos, sentimos o desafio de
descobrir e transmitir a ‘mística’ de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos,
dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um pouco caótica que pode
transformar-se numa verdadeira experiência de fraternidade, numa caravana
solidária, numa peregrinação sagrada. Assim, as maiores possibilidades de
comunicação traduzir-se-ão em novas oportunidades de encontro e solidariedade
entre todos. [...] Fechar-se em si mesmo é provar o veneno amargo da imanência,
a humanidade perderá com cada opção egoísta que fizermos”.
Diferentemente da ideia do Papa,
acabamos por tornar-nos “escravos tecnológicos”, segundo a expressão do
colunista André Gustavo de Araújo Barbosa, em cujo artigo, assim intitulado,
podemos ler: “O Pensador francês Jean Baudrillard, em 1990, muito antes da internet e
dessa dependência tecnológica ganhar a proporção que é hoje, criou o termo
‘sujeito fractal’ para designar esse sujeito ansioso em representar ou
performar sua intimidade para os outros. Para o ‘sujeito fractal’ é necessário,
quase vital, expor sua vida, mostrar o que tem, o que vive, o que faz, o que
pensa de uma forma intensa e dependente. Essa aparência narcísica de um ego
gigante e fora do normal esconde o vazio da própria subjetividade, sendo apenas
um fragmento, infinitamente reproduzido, do padrão do todo”. E o mesmo autor
acrescenta: “Os escravos tecnológicos vivem presos aos seus aparelhos como
extensões dos seus corpos, muitos não os abandonam nem quando vão ao banheiro,
ou quando dirigem ou quando dormem. Alguns destes escravos vivem presos às suas
senhas, pois precisam esconder dos outros a pobreza da sua vida, das fugazes
relações ou mesmos suas mentiras sinceras. Suas vidas e histórias estão dentro
de uma caixa de fios, metais e chips. O impacto da falsa privacidade e da
escravidão consentida faz até [com] que estes dependentes tecnológicos precisem
mudar seus comportamentos e atitudes, um exemplo é a necessidade de esconder a
tela do seu aparelho, colocando-os de face virada para baixo sobre as mesas
para outros não vejam suas mensagens”. Em outras palavras, somos tão
“verdadeiros” com nós mesmos que precisamos esconder nossas “mentiras” da
curiosidade alheia. Portanto, também concordo com André
Gustavo quando ele afirma no mesmo texto: “Não há dúvida que o mundo é muito
melhor e que houve avanços na qualidade da vida, mas também é uma certeza que
distorções têm acontecido e a mesma tecnologia que pode salvar, e fazer o bem, pode fazer o mal e destruir vida, relações e
saúde [itálico meu]. Nas mesas dos bares e restaurantes, nas salas das
casas, nos pátios das escolas, nas camas dos casais, em quase todos os lugares,
vemos pessoas abdicando da presença física da sua companhia e ficam ligadas aos
seus aparelhos. Colocando as boas normas e as boas práticas da educação de
lado, o digitador compulsivo vive um mundo que descarta as relações,
tornando-as superficiais, frouxas e cada vez mais, vazias de sentido”.
No fim de tudo, o homem, que criou a
máquina, corre o risco de ser dominado por ela. O homo sapiens perderá o comando de si mesmo pelo domínio mecânico
que lhe usurpou sua autonomia e liberdade para agir sem os
condicionamentos impostos pela sua ambígua criatividade ou pelo fruto insapiens de sua própria criação.