O homem das Dores espoliado
de tudo
Na
sexta-feira Santa, não se reza missa em lugar nenhum do mundo, exceto por
autorização do Santo Padre, O Papa, e numa circunstância bem particular, como aconteceu
em Áquila, na Itália, em 2009, quando um terremoto vitimou muitas pessoas, e
Bento XVI autorizou a missa de corpo presente pelas vítimas. Portanto, um caso
muito excepcional. Mas, no geral, nunca se celebra missa nesse dia, porque o
Filho de Deus Jesus, razão de ser da celebração eucarística, está morto. Tendo
sido espoliado de tudo, até de sua própria vida, que ele a entrega livremente
ao Pai, ele “desceu à mansão dos mortos”, segundo a expressão do Credo
Católico. Na verdade, com a morte de Cristo no madeiro sanguinolento, a Igreja
inteira permanece em estado de luto diante de seu Senhor e Salvador Jesus
Cristo.
Um
Missal antigo afirma o seguinte: “Em sinal de luto e para realçar mais a morte
de Nosso Senhor na Cruz, ela [a Igreja] congrega os fiéis em redor do Sumo
Sacerdote que se oferece como Vítima pelos pecados do mundo. É dia de luto
universal, em que os nossos corações compassivos se convertem ao seu Deus e
Salvador, e deste modo com Ele se preparam para a Ressurreição”. A sexta-feira
Santa é o dia da morte de Cristo, preanunciada pelos textos sagrados e evidente
dentro da própria consciência de Cristo que sabe que veio ao mundo para a sua
“hora”, o que se concretiza radicalmente no mistério de sua Cruz. Como indica a
leitura do Salmo 21 na celebração do Domingos de Ramos, encontramo-nos diante
do Homem das Dores, cujas vestes lhe são tomadas pelos inimigos que os cercam:
“Cães numerosos me rodeiam furiosos, e por um bando de malvados fui cercado.
[...] Eles repartem entre si as minhas vestes e sorteiam entre si a minha
túnica” (Sl 21,17.19). Desse modo, a belíssima metáfora dos textos salmícos
expressa muito bem a espoliação a que Cristo foi submetido de modo humano e
espiritual por causa de nossos pecados. O amigo Samuel Albuquerque, professor e
historiador, notou que no final da celebração da solenidade do Senhor dos
Passos os fiéis se despediam “das túnicas roxas, atirando-as sobre a cultuada
imagem do Senhor dos Passos”. E ele mesmo concluiu: “Na contramão das ações
narradas na Bíblia, os nossos romeiros oferecem suas vestes e demonstram seu
reconhecimento diante do sacrifício do Senhor”.
Segundo
a narrativa bíblica, no jardim do Éden, Adão e Eva estavam “nus” e não se
envergonhavam (Gn 2,25). Mais tarde, depois do ato de desobediência em relação
ao imperativo divino de não comerem do fruto da árvore que estava no meio do
jardim, sob “pena de morte” (Gn 3,3), “perceberam que estavam nus; entrelaçaram
folhas de figueiras e se cingiram” (Gn 3,7). Com a consciência do pecado, o que
causou profunda desordem na harmonia da criação divina, a necessidade de uma
veste indica também a inconveniência, a situação desconfortável do afastamento
de Deus, o Criador. São os estudiosos que afirmam: “Que o homem e a mulher
estão nus, sem sentir vergonha, é mais do que a mera observação de que não
estão vestidos. Como ficará óbvio mais tarde, a nudez simboliza seu
relacionamento com Deus. A essa altura da narrativa, esse relacionamento com
Deus ainda está intacto; assim, a nudez não provoca vergonha. Somente com a
ruptura desse relacionamento sua nudez se torna motivo de constrangimento”
(Comentário Bíblico). Em outras palavras, eles estavam “conscientes de sua
culpa e da impossibilidade de escondê-la de Deus” (DITAT=Dicionário
Internacional de Teologia do Antigo Testamento). Na concepção dos estudiosos, a
vergonha é um fruto natural do pecado, de modo que a nudez, enquanto exposição
da vergonha, “é uma característica distintiva do juízo sobre os malfeitores” (DITAT).
No
contexto cultural bíblico, sobretudo em tempos de guerra, mantos e vestes
faziam parte do butim de que se apoderavam os vencedores diante dos
adversários. Assim, o triunfo sobre os inimigos é selado também com a posse de
suas vestes. Tomar as vestes é apoderar-se da vida das pessoas, tornando-as
escravas, servas. De fato, Cristo é apresentado como o “Servo Sofredor!”.
Espoliar alguém de suas vestes também é sinal de invasão de privacidade. Do
ponto de vista da espiritualidade, sabemos que Cristo carregou sobre si as
nossas dores, os nossos pecados, a nossa própria nudez por causa do afastamento
de Deus. Ele foi espoliado de todo jeito: física, moral, material e
espiritualmente. Teve o seu corpo todo chagado, porque “aquele que não
conhecera pecado, Deus o fez pecado por causa de nós” (2Cor 5,21). Não por
acaso, diante do tribunal humano e das reações mais mesquinhas das pessoas que
se aproximavam dele com muitas zombarias, cusparadas, vergastas, enfim,
provocações irônicas diante do Inocente. Tudo aceito com resignação e silêncio,
profundo sofrimento e divina paciência. Ele que não possuía nada em si que lhe
merecesse a morte. Todavia, o amor verdadeiro “não para no meio do caminho,
mais aceita continuar e levar até o fim o sacrifício extremo da generosidade
que culmina na completa imolação (PGRS). Olhando para Cristo todo chagado, é
com se contemplássemos a nós mesmos, com tantas feridas abertas na nudez de
nossa carne por causa do pecado. Com efeito, “eram as nossas enfermidades que
ele levava sobre si, as nos dores que ele carregava” (Is 53,4). Portanto,
devolver as vestes é realmente um gesto de reconhecimento do Senhorio de Jesus,
despido de tudo. É, pois, o contrário da zombaria que os incrédulos desferem
diante do Homem das Dores.
Talvez,
esse intercâmbio queira expressar justamente o desejo que o homem tem de
revestir-se da santidade de Cristo, ao reconhecer seu Senhorio absoluto,
devolvendo-lhe, simbolicamente, a dignidade de vestir-se daquilo que nós mesmos
lhe tiramos por conta de nossos pecados todos.