sexta-feira, 3 de abril de 2015

O Homem das Dores espoliado de tudo!

O homem das Dores espoliado de tudo

 

Na sexta-feira Santa, não se reza missa em lugar nenhum do mundo, exceto por autorização do Santo Padre, O Papa, e numa circunstância bem particular, como aconteceu em Áquila, na Itália, em 2009, quando um terremoto vitimou muitas pessoas, e Bento XVI autorizou a missa de corpo presente pelas vítimas. Portanto, um caso muito excepcional. Mas, no geral, nunca se celebra missa nesse dia, porque o Filho de Deus Jesus, razão de ser da celebração eucarística, está morto. Tendo sido espoliado de tudo, até de sua própria vida, que ele a entrega livremente ao Pai, ele “desceu à mansão dos mortos”, segundo a expressão do Credo Católico. Na verdade, com a morte de Cristo no madeiro sanguinolento, a Igreja inteira permanece em estado de luto diante de seu Senhor e Salvador Jesus Cristo. 

Um Missal antigo afirma o seguinte: “Em sinal de luto e para realçar mais a morte de Nosso Senhor na Cruz, ela [a Igreja] congrega os fiéis em redor do Sumo Sacerdote que se oferece como Vítima pelos pecados do mundo. É dia de luto universal, em que os nossos corações compassivos se convertem ao seu Deus e Salvador, e deste modo com Ele se preparam para a Ressurreição”. A sexta-feira Santa é o dia da morte de Cristo, preanunciada pelos textos sagrados e evidente dentro da própria consciência de Cristo que sabe que veio ao mundo para a sua “hora”, o que se concretiza radicalmente no mistério de sua Cruz. Como indica a leitura do Salmo 21 na celebração do Domingos de Ramos, encontramo-nos diante do Homem das Dores, cujas vestes lhe são tomadas pelos inimigos que os cercam: “Cães numerosos me rodeiam furiosos, e por um bando de malvados fui cercado. [...] Eles repartem entre si as minhas vestes e sorteiam entre si a minha túnica” (Sl 21,17.19). Desse modo, a belíssima metáfora dos textos salmícos expressa muito bem a espoliação a que Cristo foi submetido de modo humano e espiritual por causa de nossos pecados. O amigo Samuel Albuquerque, professor e historiador, notou que no final da celebração da solenidade do Senhor dos Passos os fiéis se despediam “das túnicas roxas, atirando-as sobre a cultuada imagem do Senhor dos Passos”. E ele mesmo concluiu: “Na contramão das ações narradas na Bíblia, os nossos romeiros oferecem suas vestes e demonstram seu reconhecimento diante do sacrifício do Senhor”. 

Segundo a narrativa bíblica, no jardim do Éden, Adão e Eva estavam “nus” e não se envergonhavam (Gn 2,25). Mais tarde, depois do ato de desobediência em relação ao imperativo divino de não comerem do fruto da árvore que estava no meio do jardim, sob “pena de morte” (Gn 3,3), “perceberam que estavam nus; entrelaçaram folhas de figueiras e se cingiram” (Gn 3,7). Com a consciência do pecado, o que causou profunda desordem na harmonia da criação divina, a necessidade de uma veste indica também a inconveniência, a situação desconfortável do afastamento de Deus, o Criador. São os estudiosos que afirmam: “Que o homem e a mulher estão nus, sem sentir vergonha, é mais do que a mera observação de que não estão vestidos. Como ficará óbvio mais tarde, a nudez simboliza seu relacionamento com Deus. A essa altura da narrativa, esse relacionamento com Deus ainda está intacto; assim, a nudez não provoca vergonha. Somente com a ruptura desse relacionamento sua nudez se torna motivo de constrangimento” (Comentário Bíblico). Em outras palavras, eles estavam “conscientes de sua culpa e da impossibilidade de escondê-la de Deus” (DITAT=Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento). Na concepção dos estudiosos, a vergonha é um fruto natural do pecado, de modo que a nudez, enquanto exposição da vergonha, “é uma característica distintiva do juízo sobre os malfeitores” (DITAT). 

No contexto cultural bíblico, sobretudo em tempos de guerra, mantos e vestes faziam parte do butim de que se apoderavam os vencedores diante dos adversários. Assim, o triunfo sobre os inimigos é selado também com a posse de suas vestes. Tomar as vestes é apoderar-se da vida das pessoas, tornando-as escravas, servas. De fato, Cristo é apresentado como o “Servo Sofredor!”. Espoliar alguém de suas vestes também é sinal de invasão de privacidade. Do ponto de vista da espiritualidade, sabemos que Cristo carregou sobre si as nossas dores, os nossos pecados, a nossa própria nudez por causa do afastamento de Deus. Ele foi espoliado de todo jeito: física, moral, material e espiritualmente. Teve o seu corpo todo chagado, porque “aquele que não conhecera pecado, Deus o fez pecado por causa de nós” (2Cor 5,21). Não por acaso, diante do tribunal humano e das reações mais mesquinhas das pessoas que se aproximavam dele com muitas zombarias, cusparadas, vergastas, enfim, provocações irônicas diante do Inocente. Tudo aceito com resignação e silêncio, profundo sofrimento e divina paciência. Ele que não possuía nada em si que lhe merecesse a morte. Todavia, o amor verdadeiro “não para no meio do caminho, mais aceita continuar e levar até o fim o sacrifício extremo da generosidade que culmina na completa imolação (PGRS). Olhando para Cristo todo chagado, é com se contemplássemos a nós mesmos, com tantas feridas abertas na nudez de nossa carne por causa do pecado. Com efeito, “eram as nossas enfermidades que ele levava sobre si, as nos dores que ele carregava” (Is 53,4). Portanto, devolver as vestes é realmente um gesto de reconhecimento do Senhorio de Jesus, despido de tudo. É, pois, o contrário da zombaria que os incrédulos desferem diante do Homem das Dores. 

Talvez, esse intercâmbio queira expressar justamente o desejo que o homem tem de revestir-se da santidade de Cristo, ao reconhecer seu Senhorio absoluto, devolvendo-lhe, simbolicamente, a dignidade de vestir-se daquilo que nós mesmos lhe tiramos por conta de nossos pecados todos.