Mamōnas Assassino
Inicialmente,
para evitar conclusões precipitadas por parte do leitor, gostaria de, tanto
quanto possível, familiarizá-lo com o provável significado da palavra grega
“mamōnas”, que no contexto dos evangelhos de Mateus (6,24) e Lucas (16,9.11.13)
vem traduzida por “dinheiro”. Ou seja, nada do que, talvez, de chofre, tenha
sido excogitado pela inspiração associativa do incipiente ledor.
Na verdade,
em todo o Novo Testamento, ela aparece com essa tradução grega apenas nessas
citações. Segundo F. Hauck, o termo grego “mamōnas” reproduz o estado enfático
“māmônâ” do substantivo aramaico de uso comum “māmôn”, embora seja um vocábulo
de etimologia incerta. Pode parecer estranho, mas sua derivação mais verossímil
tem a ver com ’mn, isto é, “aquilo em
que se pode depositar a própria confiança”. Somente a título de curiosidade,
esses três símbolos são a transliteração da palavra “amén” do hebraico, tão
inconscientemente repetida em nossas orações, no sentido de confirmação,
aceitação e verdade do conteúdo apresentado na alocução apenas referida. Com
muita frequência, Jesus a utiliza para introduzir muito de seus discursos: “amēn!, amēn!”,– “Em verdade, em verdade, eu vos digo” (Mt 5,18.26;
6,2.5.16; 8,10; 10,15,23.42). Cito apenas alguns exemplos, pois ela é citada
128 vezes no NT. No contexto da citação do evangelista Lucas, referindo-se a um
“administrador infiel” (16,1-13), Jesus fala do “dinheiro iníquo” ou “dinheiro
da iniquidade”. Mas aludindo aos fariseus como “amigos do dinheiro”, o
evangelista usa um termo diferente: “philargyros”,
um adjetivo que significa “ávido por dinheiro” e, como diz o ditado, “avarus
semper egit” – “o avarento sempre tem necessidade”. Desse modo, tal crítica é
fundamental para que se possa compreender o verdadeiro alcance que motiva a reflexão
sobre os caminhos desencontrados do exagerado apego ao dinheiro, porque, como
diria São Paulo, “a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro [“philargyria” – avareza por dinheiro],
por cujo desenfreado desejo alguns se afastaram da fé, e a si mesmos se afligem
com múltiplos tormentos” (1Tm 6,10). Como poderia o “mamōnas” afastar alguém da
fé? Não precisamos de muita intuição para descobrir o quanto o materialismo tem
levado as pessoas ao afastamento de Deus.
Comparando os
continentes ricos e pobres, escrevi no livro “As Letras e as Palavras na
Crônica dos Pensamentos” (p. 107) que “paulatinamente, o materialismo fechou o
coração do homem para a realidade do transcendente, do divino, do eterno;
obnubilou e escureceu a sua consciência para as verdades intrínsecas ao seu
próprio destino. Ninguém mais se pergunta quem somos, de onde viemos e para
onde vamos. O materialismo assumiu o lugar de Deus na roupagem provisória da
autossuficiência. Como sentir falta de Deus quem não sente falta material de
nada? Jesus tinha razão quando dizia: ‘Bem-aventurados os pobres de espírito
porque deles é o reino dos céus’. Somente quem se sente pobre pode estar aberto
à grandeza da transcendência de Deus. Só em Deus, o homem encontra a satisfação
plena de sua dignidade, pois, se nos deixarmos levar pela arrogância
intelectual do nosso racionalismo, acabamos por perder a fé no Deus de Jesus
Cristo, cuja revelação e ministério a nossa razão não consegue explicar
suficientemente”. Morando na Europa ou na África, o nível de convivência e de
manifestação de proximidade entre as pessoas é diferente. O mesmo, eu diria,
vale para a experiência de se habitar em um bairro rico ou pobre. A felicidade
espontânea dos menos afortunados salta aos olhos de qualquer pessoa, e o
estresse cansativo do quotidiano afeta menos o bom humor hilariante da pobreza.
Outra ponta aguda dessa “potência” em prover as próprias necessidades, pode ser
vista pelo ângulo da nossa incapacidade de, repentinamente, perceber que temos
muita dificuldade em aceitar que não nos bastamos a nós mesmos, ou em admitir
que Deus é a fonte cristalina de nossa existência. O dinheiro, a opulência, a
riqueza, nada disso garante a vida de um homem, pois, como diz Jesus, “mesmo na
abundância, a vida do homem não é assegurada por seus bens” (Lc 12,15).
No Antigo
Testamento, talvez seja em Gn 42,25 que, pela primeira vez, aparece o termo
“dinheiro”: “José deu ordem de encher de trigo suas sacas, de restituir o
dinheiro [“argyrion”] de cada um em
sua bolsa e lhe dar provisões para o caminho”. Todavia, perlustrando o texto
sagrado, gostaria de trazer a lume alguns textos de conotação, fortemente,
negativa, porquanto neles se revela o aspecto perverso e corruptor causado pelo
apego desmedido ao dinheiro, ao “mamōnas”: “Quem ama o dinheiro, nunca está
fardo de dinheiro, quem ama a abundância nunca tem vantagem” (Ecl 5,9). Em
outras palavras, o dinheiro “não é garantia de vida nem fonte de felicidade”
para ninguém. Daí que o ensinamento de Cristo se fundamenta no desapego, no
desprendimento, como em Mt 6,19-21.24.25-34. Cristo incita seus discípulos ao
abandono à Providencia divina que cuida, não somente dos pássaros do céu, mas,
sobretudo, da obra-prima de suas criaturas, o homem. É, pois, nesse contexto de
confiança e entrega que Jesus convida o jovem rico a vender os bens e dar aos
pobres, reservando para si um tesouro nos céus. O moço, porém, “possuidor de
muitos bens” (Mt 19,22) foi embora pesaroso e triste por não conseguir
desapegar-se de suas aparentes garantias materiais.