sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Pe. Gilson Garcia de Melo


Pe. Gilson Garcia e Jean Guitton


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Comentando o poema de que me entregou uma cópia, “o meu enterro”, Pe. Gilson Garcia (1936-2020) escreveu: “A Ressurreição tem dessas coisas lindas: a gente morre, e não-morre. Como Talita!”. Descrever a própria morte ou o próprio enterro é uma dádiva da criatividade humana. Jean Guitton (1901-1999), filósofo cristão, muito amigo de São Paulo VI, convidado para participar das sessões do Concílio Vaticano II, escreveu sobre o assunto num livro muito significativo: O meu testamento filosófico. Ali ele derrama suas ideias sobre a sua “morte” e o seu “enterro”. Na verdade, a obra é constituída de somente dois capítulos com aqueles temas. Numa intuição luminosa, eu diria, ele brinca de morrer, enquanto em seu leito – ou em sua cadeira de morte – recebe três visitantes ilustres, com os quais dialoga antes do derradeiro suspiro. Eis um trecho se sua narrativa intrigante: “Na noite em que morri, aconteceram coisas estranhas em meu apartamento parisiense. Tudo começou quando eu agonizava tranquilamente. [Poderia alguém agonizar “tranquilamente”?]. Eu estava com cem anos, ou quase isso. Não sofria, não me angustiava mais e, ao extinguir-me, eu pensava. Mas eu também aguardava”. Portanto, é nesse contexto de final de cena no pôr do sol de sua existência, que ele nos abre o espírito reflexivo. E, então, os personagens ilustres, que o antecederam no caminho da morte, voltam para o “café filosófico” com Jean Guitton.
Certamente, a ideia do autor é deixar transparecer o que ele gostaria que acontecesse nos momentos derradeiros de sua existência, como testemunho de que ninguém pode fugir daquela hora tremenda, embora vivamos tentando escapar minuto após minuto. Portanto, acompanhemos o jovem seminarista, brilhante estudioso, nos supostos algozes ou brumas psicológicas de seu enterro.
O meu enterro

Num ligeiro surto...
eu desabei gelado,
sentindo na alma,
uma dor que me partiu o ser!

Grossas mãos pegaram-me, tremendo, e,
lentamente levaram-me ao caixão.

Por muito tempo, deitado...
flores e jasmins iam chegando...
velas queimando... num ritmo de tristeza,
momentos de silencio e oração, luzes...
envolviam o ambiente cinzento
– a sala dos soluços –
enquanto eu, sereno e inerte...
mergulhado no abismo do ser,
coberto com um crepe transparente,
ia me decompondo.

As moscas inocentes
faziam a sua sentinela, tocando suave melodia,
com suas asas crespas e pernas que se articulavam,
qual uma marcha fúnebre executada do além.

Fiquei ali umas 15 horas!
O sol desmaiava no horizonte,
quando um carro negro,
trazendo ao lado uma cruz branca, parou à porta.

Gritos desairosos,
como se fossem cornetas estridentes

romperam a monotonia daquele entardecer:
“morreu..., para sempre vai partir!”

Suspiros e soluços que deslizavam
naquelas faces crispadas pelas luzes inquietas,
enfeitavam, entre acordes e perfumes,
a sala onde as moscas da orquestra
dançavam, revoltas, a valsa do adeus! ...

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Alguns homens sisudos
aproximaram-se do esquife envidraçado
e, tomando-o entre as mãos,
levaram-me entre o pranto,
formando o cortejo das grinaldas, cor-de-rosa,
indo, calmamente, para a minha eterna morada...
àquela catacumba fria que me esperava aberta.

Cheguei ao cemitério!
Mais silencio, como se aquele portão enferrujado
indicasse a fronteira estrangeira
do mistério da vida.

As grinaldas à frente, rosas e crisântemos...
serviram de passaporte para todos os amigos e parentes
que, a passos lentos, sustentavam lenços embebidos.

Um anjo, inerte,
pousava sobre a tumba,
contemplando a solidão e os jasmins já murchos...

Ali, todos pararam.
Um padre magro e pequeno,
tendo as barbas quase encanecidas na luta do viver,
com uma expressão de indiferença,
benzeu-me com a mão, ao som do salmo “De profundis”.

Um pedreiro malvado, martelava minha lousa;
a minha mãe, nos seus delírios,
dizia em suspiros compassivos:
“adeus, meu filho: tu passaste no meu ser
e, sem que eu fosse tu, é como se a tua partida
arrebentasse a minha alma.
Ah, meu filho, serei sempre a tua mãe!” ...

Selado por um mármore embranquecido,
trazendo um epitáfio,
fiquei ali, sozinho, com os irmãos vermes famintos...
e, pouco a pouco, fui me desfazendo em putrefação.

A vida terminou?! – Não.
Viajei para o cemitério,
mudei de residência.

Parece que uma mosca azul,
trazendo nas asas pedaços de céus,
zumbiu e me assustou!

Esperem um pouco:
no amanhecer desta solidão...
com os olhos famintos de ilusão, – Amém –
foi o sonho que sonhei!

Maio de 1958 (aos 20 anos de idade),

[E escreveu à mão:] Hoje, 14.03.2000,

Pe. Gilson Garcia de Melo 

Descanse na Paz do Senhor, Pe. Gilson Garcia de Melo