Pe. Gilson
Garcia e Jean Guitton
Comentando o poema de que me entregou uma cópia, “o meu enterro”, Pe. Gilson Garcia (1936-2020)
escreveu: “A Ressurreição tem dessas coisas lindas: a gente morre, e não-morre.
Como Talita!”. Descrever a própria morte ou o próprio enterro é uma dádiva da
criatividade humana. Jean Guitton (1901-1999), filósofo cristão, muito amigo de
São Paulo VI, convidado para participar das sessões do Concílio Vaticano II, escreveu
sobre o assunto num livro muito significativo: O
meu testamento filosófico. Ali ele derrama suas ideias sobre a sua
“morte” e o seu “enterro”. Na verdade, a obra é constituída de somente dois
capítulos com aqueles temas. Numa intuição luminosa, eu diria, ele brinca de
morrer, enquanto em seu leito – ou em sua cadeira de morte – recebe três
visitantes ilustres, com os quais dialoga antes do derradeiro suspiro. Eis um
trecho se sua narrativa intrigante: “Na noite em que morri, aconteceram coisas
estranhas em meu apartamento parisiense. Tudo começou quando eu agonizava
tranquilamente. [Poderia alguém agonizar “tranquilamente”?]. Eu estava com cem
anos, ou quase isso. Não sofria, não me angustiava mais e, ao extinguir-me, eu
pensava. Mas eu também aguardava”. Portanto, é nesse contexto de final de cena
no pôr do sol de sua existência, que ele nos abre o espírito reflexivo. E,
então, os personagens ilustres, que o antecederam no caminho da morte, voltam
para o “café filosófico” com Jean Guitton.
Certamente, a ideia do autor é deixar transparecer
o que ele gostaria que acontecesse nos momentos derradeiros de sua existência,
como testemunho de que ninguém pode fugir daquela hora tremenda, embora vivamos
tentando escapar minuto após minuto. Portanto, acompanhemos o jovem
seminarista, brilhante estudioso, nos supostos algozes ou brumas psicológicas
de seu enterro.
O meu enterro
Num ligeiro
surto...
eu desabei
gelado,
sentindo na
alma,
uma dor que
me partiu o ser!
Grossas mãos
pegaram-me, tremendo, e,
lentamente
levaram-me ao caixão.
Por muito
tempo, deitado...
flores e
jasmins iam chegando...
velas
queimando... num ritmo de tristeza,
momentos de
silencio e oração, luzes...
envolviam o
ambiente cinzento
– a sala dos
soluços –
enquanto eu,
sereno e inerte...
mergulhado no
abismo do ser,
coberto com
um crepe transparente,
ia me
decompondo.
As moscas
inocentes
faziam a sua
sentinela, tocando suave melodia,
com suas asas
crespas e pernas que se articulavam,
qual uma
marcha fúnebre executada do além.
Fiquei ali
umas 15 horas!
O sol
desmaiava no horizonte,
quando um
carro negro,
trazendo ao
lado uma cruz branca, parou à porta.
Gritos
desairosos,
como se
fossem cornetas estridentes
romperam a
monotonia daquele entardecer:
“morreu...,
para sempre vai partir!”
Suspiros e
soluços que deslizavam
naquelas
faces crispadas pelas luzes inquietas,
enfeitavam,
entre acordes e perfumes,
a sala onde
as moscas da orquestra
dançavam,
revoltas, a valsa do adeus! ...
Alguns homens
sisudos
aproximaram-se
do esquife envidraçado
e, tomando-o
entre as mãos,
levaram-me
entre o pranto,
formando o
cortejo das grinaldas, cor-de-rosa,
indo,
calmamente, para a minha eterna morada...
àquela
catacumba fria que me esperava aberta.
Cheguei ao
cemitério!
Mais
silencio, como se aquele portão enferrujado
indicasse a
fronteira estrangeira
do mistério
da vida.
As grinaldas
à frente, rosas e crisântemos...
serviram de
passaporte para todos os amigos e parentes
que, a passos
lentos, sustentavam lenços embebidos.
Um anjo,
inerte,
pousava sobre
a tumba,
contemplando
a solidão e os jasmins já murchos...
Ali, todos
pararam.
Um padre
magro e pequeno,
tendo as
barbas quase encanecidas na luta do viver,
com uma
expressão de indiferença,
benzeu-me com
a mão, ao som do salmo “De profundis”.
Um pedreiro
malvado, martelava minha lousa;
a minha mãe,
nos seus delírios,
dizia em
suspiros compassivos:
“adeus, meu
filho: tu passaste no meu ser
e, sem que eu
fosse tu, é como se a tua partida
arrebentasse
a minha alma.
Ah, meu
filho, serei sempre a tua mãe!” ...
Selado por um
mármore embranquecido,
trazendo um
epitáfio,
fiquei ali,
sozinho, com os irmãos vermes famintos...
e, pouco a
pouco, fui me desfazendo em putrefação.
A vida
terminou?! – Não.
Viajei para o
cemitério,
mudei de
residência.
Parece que
uma mosca azul,
trazendo nas
asas pedaços de céus,
zumbiu e me
assustou!
Esperem um
pouco:
no amanhecer
desta solidão...
com os olhos
famintos de ilusão, – Amém –
foi o sonho
que sonhei!
Maio de 1958
(aos 20 anos de idade),
[E escreveu à
mão:] Hoje, 14.03.2000,
Pe. Gilson Garcia de Melo
Pe. Gilson Garcia de Melo
Descanse
na Paz do Senhor, Pe. Gilson Garcia de Melo