Querida Amazônia
Diferentemente dos aspectos polêmicos que muitas pessoas gostariam que o
Papa Francisco abordasse na Exortação Apostólica Pós-sinodal, Querida Amazônia, o texto é
profundamente substancioso e sereno quantos à riqueza e aos desafios que Igreja
sempre enfrentou na extensão geopolítica da região continental da Amazônia.
O Papa
Francisco demonstra, evidentemente, muitas preocupações pontuais em razão da
história dos povos que ali habitam – sua cultura indígena, suas festas e
danças, seus símbolos culturais, tradições propriamente indígenas etc. – sem
desconsiderar a presença da Igreja, da evangelização, da inculturacão do
Evangelho, das deficiências pastorais – mas também trazendo a lume, do ponto de
vista ecológico e humanitário, a importância física da Amazônia para a
sobrevivência dos povos de toda a Terra. Tudo isso dentro do contexto da
preocupação eclesial que está sempre presente no coração do Santo Padre,
inclusive reconhecendo alguns equívocos no exercício da missionariedade pelo
que, também, pede perdão e renova o compromisso da Igreja: “[...] a Igreja não
pode estar menos comprometida, chamada como está a ouvir os clamores dos povos
amazónicos, ‘para poder exercer com transparência o seu papel profético’.
Entretanto como não podemos negar que o joio se misturou com o trigo, pois os
missionários nem sempre estiveram do lado dos oprimidos, deploro-o e mais uma
vez ‘peço humildemente perdão, não só pelas ofensas da própria Igreja, mas também
pelos crimes contra os povos nativos durante a chamada conquista da América’ e
pelos crimes atrozes que se seguiram ao longo de toda a história da Amazônia.
Aos membros dos povos nativos, agradeço e digo novamente que, ‘com a vossa
vida, sois um grito lançado à consciência (…). Vós sois memória viva da missão
que Deus nos confiou a todos: cuidar da Casa Comum’” (n. 19).
Outra
inquietação do Papa está relacionada ao que ele chamou de “indigenismo
completamente fechado, a-histórico, estático, que se negue a toda e qualquer
forma de mestiçagem”. (n. 37). E ele continua no mesmo parágrafo, de modo que,
assim sendo, “Uma cultura pode tornar-se estéril, quando ‘se fecha em si
própria e procura perpetuar formas antiquadas de vida, recusando qualquer
mudança e confronto com a verdade do homem’. Isto poderia parecer pouco
realista, já que não é fácil proteger-se da invasão cultural. Por isso, cuidar
dos valores culturais dos grupos indígenas deveria ser interesse de todos,
porque a sua riqueza é também a nossa. Se não progredirmos nesta direção de
corresponsabilidade pela diversidade que embeleza a nossa humanidade, não se
pode pretender que os grupos do interior da floresta se abram ingenuamente à
‘civilização”. (n. 37). Desse modo, o Papa reconhece ainda que “mesmo entre os
distintos povos nativos, é possível desenvolver ‘relações interculturais onde a
diversidade não significa ameaça, não justifica hierarquias de um poder sobre
os outros, mas sim diálogo a partir de visões culturais diferentes, de
celebração, de inter-relacionamento e de reavivamento da esperança’”. (n. 38).
Ou seja, no geral, Romano Pontífice se detém muito em relação aos direitos dos
povos indígenas, à complexidade dos problemas relacionados ao desenvolvimento
dos grupos sociais, como, por exemplo, exigindo o “protagonismo dos atores
sociais locais a partir de sua própria cultura”. (n. 40).
Numa
visão mais ecológica e humana, constata-se que “Numa realidade cultural como a
Amazônia, onde existe uma relação tão estreita do ser humano com a natureza, a
vida diária é sempre cósmica. Libertar os outros das suas escravidões implica
certamente cuidar do seu meio ambiente e defendê-lo e – mais importante ainda –
ajudar o coração do homem a abrir-se confiadamente àquele Deus que não só criou
tudo o que existe, mas também Se nos deu a Si mesmo em Jesus Cristo. O Senhor,
que primeiro cuida de nós, ensina-nos a cuidar dos nossos irmãos e irmãs e do
ambiente que Ele nos dá de prenda cada dia. Esta é a primeira ecologia que
precisamos. Na Amazónia, compreendem-se melhor as palavras de Bento XVI, quando
dizia que, ‘ao lado da ecologia da natureza, existe uma ecologia que podemos
designar ‘humana’, a qual, por sua vez, requer uma ‘ecologia social’. E isto
requer que a humanidade (…) tome consciência cada vez mais das ligações
existentes entre a ecologia natural, ou seja, o respeito pela natureza, e a
ecologia humana’. Esta insistência em que ‘tudo está interligado’ vale
especialmente para um território como a Amazónia”. Aqui o Sumo Pontífice
reclama a urgência de considerarmos a interligação entre ecologia, humanidade e
anúncio da verdade de Cristo, que salva o homem e o mundo. Essa seria uma
“ecologia cristocêntrica”, com referência ao que nos ensina São Paulo: “a
criação foi submetida à vaidade [...] na esperança de ela também ser libertada
da escravidão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de
Deus – liberabitur a servitute
corruptionis in libertatem gloriae filiorum Dei. Pois sabemos que a criação
inteira geme e sofre as dores do parto até o presente”. (Rm 8,21-22). Daí o
fato de o Santo Padre destacar também a importância da água no ambiente
amazônico, o que encontramos, poeticamente, nos números 43 a 46. Vale a pena a
leitura desse texto.
Indo mais
além, não obstante a colocações sob a ótica das reflexões propriamente
ecológicas, o pensamento do Papa se estende, e não poderia ser diferente, sobre
o que é mais primordial ainda quanto ao papel evangelizador da Igreja na região:
“Eles têm direito ao anúncio do Evangelho, sobretudo àquele primeiro anúncio
que se chama querigma e ‘é o anúncio principal, aquele que sempre se tem de
voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a
anunciar duma forma ou doutra’. É o anúncio de um Deus que ama infinitamente
cada ser humano, que manifestou plenamente este amor em Cristo crucificado por
nós e ressuscitado na nossa vida. Proponho voltar a ler um breve resumo deste
conteúdo no capítulo IV da Exortação Christus
vivit. Este anúncio deve ressoar constantemente na Amazónia, expresso em
muitas modalidades distintas. Sem este anúncio apaixonado, cada estrutura
eclesial transformar-se-á em mais uma ONG e, assim, não responderemos ao pedido
de Jesus Cristo: ‘Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a
criatura’” (Mc 16, 15). (n. 64). Sabiamente, o Papa não deixa escapar a
oportunidade de desqualificar o papel que algumas ONG’S que se colocam
pretensamente a serviço dos povos indígenas, mas, na verdade, terminam por
aproveitar da situação para escravizar ainda mais os índios sem a devida tutela
de seus reais direitos de sobrevivência. De qualquer modo, em relação à
pregação do Evangelho de Cristo, o Papa é incisivo: “Qualquer proposta de
amadurecimento na vida cristã precisa de ter este anúncio como eixo permanente,
porque ‘toda a formação cristã é, primariamente, o aprofundamento do querigma
que se vai, cada vez mais e melhor, fazendo carne’. A reação fundamental a este
anúncio, quando o mesmo consegue provocar um encontro pessoal com o Senhor, é a
caridade fraterna, aquele ‘mandamento novo que é o primeiro, o maior, o que
melhor nos identifica como discípulos’. Deste modo, o querigma e o amor
fraterno constituem a grande síntese de todo o conteúdo do Evangelho, que não
se pode deixar de propor na Amazónia. É o que viveram grandes evangelizadores
da América Latina como São Toríbio de Mogrovejo ou São José de Anchieta”. (n.
65).
Outrossim,
como não seria de apreciar aqui texto tão fecundo e profético no contexto de
sua abrangência eclesial, especialmente, devotado às populações da Amazônia, o
Santo Padre, em nenhum momento, talvez para frustração de quem desejaria o
contrário, nem de longe, mencionou a possibilidade de ir buscar os viri probati – homens provados, de fé íntegra
e de incólume testemunho cristão, dentro do Sacramento do Matrimônio – para
ordená-los padres, mesmo depois de escorreita e devida preparação teológica. Todavia
destacou a importância dos sacerdotes para a celebração da Eucaristia (números
91 a 93); a presença fidedigna de leigos bem preparados e engajados no labor
pastoral (números 94 a 96); e enfaticamente da presença dos mulheres, que não
deixam morrer o serviço da evangelização e a conservação da herança cristã da
fé recebida (números 99-103). E, como não poderia ser diferente, o Papa insiste
na atitude eclesial da oração pelas vocações sacerdotais, religiosas e leigas:
“Esta premente necessidade leva-me a exortar todos os bispos, especialmente os
da América Latina, a promover a oração pelas vocações sacerdotais e também a
ser mais generosos, levando aqueles que demonstram vocação missionária a
optarem pela Amazônia. Ao mesmo tempo, é oportuno rever a fundo a estrutura e o
conteúdo tanto da formação inicial como da formação permanente dos presbíteros,
de modo que adquiram as atitudes e capacidades necessárias para dialogar com as
culturas amazônicas. Esta formação deve ser eminentemente pastoral e favorecer
o crescimento da misericórdia sacerdotal”. (n. 90).
Enfim, o
texto apresenta um diagnóstico eclesial de profunda realidade vivida pelos
povos da Amazônia, mas também que diz respeito ao ambiente mais amplo da Igreja
de Cristo, com seus desafios, suas propostas de evangelização, com a
necessidade de protagonistas mais fiéis e pontuais, sobretudo diante das
exigência evangélicas. Mesmo sabendo que a doutrina nem a catequese sejam
aceitos por todos, a preocupação do Santo Padre incentiva a necessidade de, pelo
menos, ao que estiver ao alcance de todos não descuidar do fato de que “Ao
mesmo tempo que acreditamos firmemente em Jesus como único Redentor do mundo,
cultivamos uma profunda devoção à sua Mãe. Embora saibamos que isto não se
verifica em todas as confissões cristãs, sentimos o dever de comunicar à Amazônia
a riqueza deste ardente amor materno, do qual nos sentimos depositários”. Assim
seja! (PGRS).