Cartas d’além mar
O
gosto pela arte literária arrebenta as bordas do cálice e transborda na ânfora da
sede dos intelectuais. Desse modo, mais uma vez, somos brindados pela grandeza
magistral da literatura cabralduartiana, isto é, relativa à exposição
linguística de Dom Luciano Duarte (1925-2018), que, ao contrário de ser um
“franco-atirador da palavra”, como disseram de Friedrich Nietsche (1844-1900),
sempre disparava em alvos certeiros, atingidos pela competência ligeira e eloquência
franca quando construía suas rápidas elucubrações e desferia as flechas do
saber. Trata-se, portanto, de mais um trabalho organizado por aquela a quem
considero, carinhosamente, minha “madrinha intelectual”: Ana Maria Fonseca
Medina, da Academia Sergipana de Letras.
O
estilo cabralduartiano é envolventemente solene em todos os estágios e aspectos
de sua leveza e contundência. Com a palavra, ele quase conseguia materializar
na fantasia do leitor – ou do ouvinte – desde as emoções mais profundas da
existência humana aos lugares físicos da história descritos pelo pincel da
argumentação genuína, calemburista e metafórica. No entanto, é preciso mais do
que veio artístico para podermos apreciar, na justa medida, o rio caudaloso, travolgente, impetuoso, da artimanha da
elasticidade conteudística de suas proposições. Com efeito, a própria
experiência antropológica dos mortais sobrevive no tecido dos vocábulos para o
deleite dos que não foram esquecidos pelo curriculum
de suas façanhas existenciais, porque ressuscitados na memória dos vivos. Sua
palavra não é um corte vazio no rasgo dos sentimentos ou na sensibilidade das
feridas abertas da alma. Na verdade, carregada de emoções, com vibrações de
êxtase interior, flanando vicejante pelas frestas do espírito, a dinâmica da
sua grafologia invade a essência da vontade no comando das letras. E elas lho obedecem!
No entanto, tudo isso poderia permanecer escondido no segredo do tempo, sem
manifestar sua tempestiva novidade, se não fossem a munificência e o interesse
de alguém em querer expor, de maneira ponderada e contextualizada na moldura da
cronologia experiencial, os textos sincronizados e harmonizados na constituição
de um livro. Com efeito, história que não é contada pode também permanecer
desconhecida.
Nesse
sentido, o mérito da obra poderia ser tripartido entre o autor: Dom Luciano
Duarte, que o escreveu; Carminha Duarte, que disponibilizou os textos para
publicação; e, evidentemente, Ana Maria Medina, que soube, como em tantas obras
suas, garimpar no celeiro da cultura das letras o brilho e a essência das
pérolas grafológicas do autor. O próprio título – Cartas d’além mar – já penetra a intuição dos ledores numa
atmosfera de saudade e nostalgia que enchem de luz e encanto o horizonte
inolvidável de plagas distantes, geográfica e sentimentalmente intensas,
enquanto mergulha o saudosismo benéfico da nossa percepção nas profundidades
desconhecidas do próprio ser.
Nas
palavras da Organizadora, que nos apresenta a Obra, “As cartas são dos anos 1954,
1955, 1956, 1957, período em que buscou na Europa o doutoramento em Filosofia,
na Sorbonne. O papel é fino, mas estão muito bem conservadas. Algumas
manuscritas e a maior parte escrita à máquina. A atitude preservacionista da
genitora do Padre Luciano Duarte, colecionando-as, foi continuada por Carminha,
a irmã, o que nos possibilitou fazer esta publicação”. Portanto, dentro desse
contexto de erudição literária, continua a Organizadora: “O jovem sacerdote, de
apenas 30 anos, despe-se da metáfora da sotaina preta, soturna, sisuda, para
revelar a alma delicada do filho e irmão amoroso, saudoso dos seus, do seu país
e sensível àquele Velho Mundo, tão novo para ele e pleno de possibilidades
culturais. Sem dúvidas, a experiência na Europa protagonizou problemas comuns a
qualquer estudante estrangeiro, inicialmente, a barreia da língua, que
rapidamente ultrapassou com eficiência, recebendo elogio dos professores; o
problema do clima, do ritmo pesado das aulas, enfim, tudo foi superado pela
obstinação de o desejo tantas vezes expresso desse sonho do doutoramento na
‘velha e inesquecível’ Sorbonne’”.
Nessa
linha de raciocínio, gostaria de registrar também o pensamento do prefaciador,
Carlos Pina, igualmente, da Academia Sergipana de Letras: “Surpreende, então, que
mais de seis décadas passadas da redação das Cartas, o Autor tenha tanto a nos
ensinar quanto à qualificação do comportamento humano, diante da crise dos
padrões éticos desta nossa já antiga civilização ocidental”. De fato, a incisão
literária da pena cabralduartiana não abandona os ditames axiológicos da
perenidade do que sempre foi o correto agir humano, mesmo quando, infelizmente,
vez por outra, devamos reconhecer que o dramático panorama civilizacional do
ocidente está à beira do abismo ou do descalabro moral, quase sem solução
reversível. Mais ou menos, quando a ligeireza da esferografia do autor, precisa
sobre os trilhos das letras, segue, com inopinada observação, conjunturas que
são praticamente como aquelas que “Não têm solução” (p. 80), ao se referir ao
Brasil político, acolhendo, desse modo, a compreensão da poesia de Dorival
Caymi.
A obra de 498 páginas foi patrocinada pelo Governo do Estado de Sergipe e entregue à Arquidiocese de Aracaju, a fim de que administre as vendas e os beneméritos pecuniários em atividades pastorais ou educacionais, máxime, na formação dos candidatos ao sacerdócio, por quem Dom Luciano demonstrou tanto apreço e dedicação pessoal, motivando neles a conquista do saber erudito. Ou seja, mesmo ausente, Dom Luciano Duarte permanece colaborando, mediante os frutos de sua atividade intelectual e literária, com a Arquidiocese de Aracaju à qual tanto serviu, com competência, palavra e, sobretudo, verdade. (PGRS).