São João Maria Vianney
São
João Maria Vianney (1786-1859) foi canonizado pelo Papa Pio XI, em 1925, quando
também foi declarado o padroeiro de todos os párocos. Sua memória é celebrada
no dia de sua morte, 4 de agosto, mês considerado vocacional pela Igreja, que
se serve desse dia para comemorar o Dia do Padre. Por ironia de seu destino de
santidade, quase impedido de ser ordenado sacerdote pelas limitações
intelectuais, tornou-se um dos maiores luminares da França na primeira metade
do século XIX. Ainda bem que a santidade não está diretamente relacionada aos
dotes privilegiados da inteligência humana! Ninguém precisa ser muito
inteligente para ser santo e aproximar-se de Deus pela amizade espiritual. De
fato, a vida de santidade começa a estabelecer-se dentro do espírito do homem
quando ele, ciente da graça já recebida pelo santo batismo, abre-se,
progressivamente, cada vez mais, às inspirações divinas. Sua semente foi
semeada em nós pelo germe do projeto do Criador quando nos quis “à sua imagem e
semelhança” (Gn 1,26).
O
Cura d’Ars-en-Dombes encontrou muitas dificuldades no trilho do anelo dos
sonhos vocacionais. Dardilly, sua terra natal, viveu momentos obscuros,
envolvida na cerração temporal da política, de modo que até a sua paróquia fora
fechada, interrompendo, assim, os serviços litúrgicos e a catequese. Segundo
Enrico Peppe, “o futuro cura d’Ars recebeu a primeira comunhão escondido em uma
casa de campo durante a missa clandestina, e o contato com aquele padre lhe fez
nascer no coração o primeiro desejo de se tornar sacerdote. Uma ideia que
parecia utópica para a situação política do país pela impossibilidade de
frequentar escola”. Talvez possamos encontrar, aí, um obstáculo futuro quanto
ao desempenho de sua escolaridade. Conheci um sacerdote, que, morando no
interior do Ceará, somente pôde ter acesso aos estudos depois dos dezessete
anos de idade, com todos os vícios linguísticos e “culturais” da educação que
não recebeu. Ainda hoje, ele possui alguns “obstáculos musculares”, sei lá (?),
que repercutem na sua tatibitate. Todos nós sabemos, e isso está provado
cientificamente, que delongando certo tempo na aprendizagem dos esforços
guturais, determinados sons da língua não são mais possíveis de serem
pronunciados. Quem já tiver ultrapassado os vinte anos, tente, por exemplo,
pronunciar alguns vocábulos em língua árabe ou até mesmo em hebraico ou de
qualquer outra língua maluca do antigo Oriente Médio. Eles podem ser
aproximados, mas, nunca, igualados ao som de quem nasceu, viveu, foi educado e
cresceu lá. Por certo, as ranhuras da música linguística do indivíduo serão
notadas no sotaque indiscreto da fala, quando não pronunciar um vocábulo
diferente.
Na
Itália, tive a oportunidade de conviver com um jovem sacerdote libanês, ao qual
pedi que me dissesse uma palavra em árabe, e assim que eu a repeti, ele ficou
visivelmente ruborizado. Quis saber a razão, e ele me respondeu: “O que você
disse é um palavrão na minha língua, e eu não falei isso!” Nem o significado
ele quis dizer-me. Imaginem o constrangimento! Todavia, o Cura d’Ars teve
outros problemas de compreensão, sobretudo, da língua latina, mediante a qual
eram feitos os estudos e os exames para a superação dos estágios acadêmicos.
Dizem que ele não entendia nem sequer o conteúdo das perguntas que lhe eram
feitas. Mas ninguém precisa de latim para ir para o céu. Os espanhóis dizem que
os anjos falam a sua língua, na ferrenha disputa para depreciar a “última flor
do Lácio” (Olavo Bilac), o português. E nós, em contrapartida, afirmamos que
Deus fala português. Pilhérias, à parte, falaremos diretamente com Deus, sem
necessidade da tradução dos anjos.
Graças
à criativa generosidade do Pe. Charles Balley, que, em Écully, não muito longe
de Dardilly, abriu uma escola para orientar os candidatos ao sacerdócio, no
caso, antes de ingressarem no seminário, João Maria Vianney “também se
apresentou: um caso humanamente quase desesperador, porque tinha 20 anos e
conhecia mal e mal os primeiros rudimentos da leitura e da escrita. O padre
Balley ouviu-o, apreciou-lhe o candor da alma e a persistência de camponês e o
admitiu em sua escola. Não foi fácil para o jovem acompanhar as lições do
mestre, sobretudo em se tratando da língua latina, que não entrava na cabeça,
enquanto se saía muito bem na aprendizagem das verdades da fé e na prática das
virtudes cristãs”. (Enrico Peppe). Sua humildade e perseverança, mas também sua
abertura às moções do Espírito divino, conduziram-no à “elevação espiritual” de
que precisava para demonstrar-se capaz de, convertidamente, santo, orientar
suas ovelhas. Durante três anos, foi designado para a cidadezinha de Ars, um
lugarejo com 40 casas e pouco mais de 270 habitantes. Tendo sido colocado à
prova pelo seu bispo, esperou três anos, a fim de que sua comunidade pudesse
ser elevada à dignidade de paróquia. Seu zelo espiritual pela vila – antes
interessada mais pelo trabalho do campo, de manhã, e à tarde, pela taverna
atrás da igrejinha, inclusive, por conta do sistema da pobreza e da
necessidade, do que pelo apostolado do jovem padre – despertou a fé escondida
sob as cinzas do tempo, mudando, de modo radical, a vida religiosa de sua
gente. Com efeito, o ambiente social da época estava tomado pelos lupanares
espalhados por muitos lugares, e, também, em Ars. É por isso qu, “nos dias mais
solenes, o ponto de encontro não era a celebração litúrgica, mas as festas e
bailes, que se prolongavam até altas horas da noite, à luz de vela e – segundo
o parecer do jovem padre – sempre terminavam em lugares onde não havia nem
mesmo essa luz fraca, permitindo ao demônio a destruição da moral familiar, até
mesmo levando à prostituição alguma pobre moça”. (Enrico Peppe). Atraídos pela
vida simples e austera do Cura d’Ars, que fazia penitência, jejuns prolongados
e orações pelos pecadores, homens notáveis, como o primoroso orador de
Notre-Dame de Paris, igualmente, sacerdote, o Pe. Lacordaire, fizeram questão
de conferir de perto a fama do pároco daquela minúscula aldeia. E quando alguém
quis saber da apreciação de Lacordaire sobre a pregação do padre tido por ignorante,
sua resposta não poderia ter sido mais ferina e contundente: “Seria bom
desejar-se que todos os párocos dos campos [e, hoje, das cidades] pregassem tão
bem como ele”. (Enrico Peppe). Por sua vez, depois de convidar o Pe. Lacordaire
a pregar em sua igreja, o Cura d’Ars também desferiu seu comentário no dia
seguinte: “Costuma-se dizer que às vezes os extremos se tocam. Isso, sem
dúvida, verificou-se ontem no púlpito de Ars. Viu-se a extrema ciência e a
elevada ignorância”. (Enrico Peppe).
O
santo Cura d’Ars é um testemunho que, ainda hoje, serve de modelo e inspiração
para a vida de todos os sacerdotes da Igreja de Cristo. Despretensioso,
humilde, santo, ciente de seu papel de pastor e das responsabilidades graves do
dever de seu apostolado. Na expressão de Dom Luciano Duarte (1925-2018), “no
dia 9 de fevereiro de 1818, num fim de tarde de inverno, ele se aproximava, a
pé, de sua paróquia, para tomar posse. Uma bruma friorenta escondia o povoado
humilde dos olhos de seu novo pastor. Foi, ali, onde hoje se ergue o ‘Monument de la Rencontre’, que o Cura
d’Ars encontrou o seu primeiro paroquiano: um menino, um pastorzinho de
ovelhas, Antoine Givre. Ele indicou ao Pe. Vianney o caminho de sua paróquia,
lá adiante, coberta de névoa. O Pe. Vianney o olhou longamente, com amor. Era o
primeiro de seus filhos que ele encontrava: – ‘Tu me mostraste o caminho de
Ars; eu te mostrarei o caminho do céu”. E o mesmo autor segue pelas linhas
translúcidas de sua argumentação: “Foi nesta igreja que o Cura d’Ars trabalhou
quarenta anos. Ele a encontrou vazia. Despovoada de homens, embora cheia de
Deus. Mas entre a presença divina e a ausência humana, um vazio. Um fosso. Uma
rotura. O Cura d’Ars estendeu sobre as bordas seu corpo de Padre, sua vida de
santo. E os homens de Ars passaram por cima da estranha ponte, ao encontro do
Senhor”.
Foi,
pois, indicando a direção do céu, que São João Maria Vianney converteu a muitos
de seu tempo, especialmente, pela sua vida provada de todo tipo, com
frequência, atormentado por uma presença diabólica, experimentando o próprio
peso de sua cruz. Nesse sentido, sua “união com Deus e a caridade pastoral”
fizeram dele um protótipo permanente da santidade que, por nossa vez, também
devemos buscar. De fato, até mesmo em meio aos conturbados tempos pós-modernos,
a santidade é uma provocação que Deus faz a cada um de nós todos os dias.
Aquela santidade silenciosa, cultivada no coração, propícia às benevolências do
céu. Trata-se de um esforço que exige empenho e mortificação pessoais. Com
efeito, foi um santo quem disse que é melhor andar no caminho de Deus,
claudicando, do que percorrer outras estradas longe dele. Ou como diria o
salmista (Sl 84,11), um só dia em sua casa vale mais do que milhares fora dele,
isto é, vivendo ao meu modo, à minha maneira, segundo os moldes viciados de
minha pretensa liberdade.
Que
São João Maria Vianney, Patrono dos Padres, ajude-nos a encontrar, no garimpo
das coisas desta terra, o verdadeiro endereço do Céu!