Escritos outonais na pena de Ana Medina
Escritos outonais é mais uma pérola de literatura com que a Acadêmica Ana
Medina brinda seus leitores. Trata-se, na verdade, de uma obra bifurcada em
duas vertentes de páginas translúcidas de poesia e paisagens do espírito,
emolduradas pela fina estampa da sensibilidade do brio intelectivo da autora.
Portanto, assim segue a distribuição escorreita e cadenciada de sua exposição: Escritos sobre escritos e Escritos inventivos. De uma lauda à
outra, é o fascínio das letras que sorvemos avidamente como de ânforas plenas
do saber erudito que transborda e se derrama no chão estilístico da inspiração.
Escritos sobre escritos é um afresco de mosaicos imbricados, que mapeiam
inúmeras obras prefaciadas ou apreciadas pela autora em múltiplas cosmovisões,
à mercê do conteúdo e da abordagem da obra em si. São janelas da alma
contemplativa que se abrem sobre os telhados poéticos da singularidade de
muitos autores. Mas é o fio conducente de sua percepção que nos garante a
riqueza das inflexões pessoais, que brotam cristalinas na “seara da cultura”,
sobretudo, sergipana. A coletânea da primeira parte jaz jus ao talento
literário e à competência apurada da bela arte das letras. A vivacidade dos
textos é perene, atravessa décadas da produção grafológica e rebenta solene – com
o mesmo frescor do orvalho matutino de sua aurora – nas ondas do espírito do
leitor. Metáforas resplandecem no tecido dos vocábulos como em “véus diáfanos”,
que enxergam “o belo através da dor humana”; a autora enfrenta, tranquila, “as
armadilhas do português”, o desafio do conhecimento erudito dos autores que
prefacia, e as disposições da cultura clássica, com a maestria da ponderação
lógica e racional do que lhe é proposto fazer; elabora, com finesse et bon goût, a viagem emocional
de seus textos, com leveza, sem o veio acrimonioso dos incautos; sua literatura
é plástica, sonora, e acende no vislumbre da perlustração a sede do desejo de
ir sempre mais adiante nas plagas da geografia do texto.
Cada panorama
da obra exige o conhecimento de uma lexicografia diferenciada, o que dá à autora
o privilégio da idiossincrasia epistemológica para atingir seu objetivo; ela
pendula entre o erudito e prosaico, entre o burlesco e o cotidiano, entre o
religioso e o profano, entre o lírico e o bucólico, entre a história e a
geologia da alma, como em instantes áureos e tempos de decadência. Tudo isso
sem cair na mesmice simplória do pensador, “afinal o que é literatura senão o
fruto da imaginação ou a recriação da vida, sem veleidades de cientificismo?”,
pergunta-se. De fato, a literatura tem a prerrogativa de depositar na intuição
dos intelectuais um universo cosmológico tão amplo quanto as gavetas que se
abrem aos ventos da imaginação, e isso se agiganta ainda mais quando pensamos
que “cada cabeça é um mundo”. Na literatura, os personagens assomam no
horizonte de seus escritos como figuras vivas de um passado recente, que
cintilam em suas páginas como estrelas nostálgicas da verdade que os
constituem. Dramas pessoais, experiências da longevidade, buscas interiores, sofrimentos da alma, fulgores
da prosa, deleites sentimentais, etc. De tudo isso, a autora se reveste para
descrever – “como sacerdotisa de tempos imemoriais” – as “oferendas” que lhe
foram apresentadas para refeição e análise cognoscitiva, conforme a índole
peculiar a cada geração de autores.
Cotejando a
investigação dos autores com personagens clássicos das artes universais como a
pintura, a música, a escritura, a gramática poética, a história dos mitos
helênicos – num estilo que abraça tantas épocas – o pano de fundo revela a
riqueza de seu ambiento cultural. Desse modo, ela nos faz imergir no tempo
antes do tempo, na origem mesma da arte que atravessa os séculos, porque in principium erat verbum... (Jo, 1,1).
Quanto aos Escritos inventivos – segunda parte da
obra – uma ligeira apreciação faz deter-nos no conjunto sincrônico da compilação
argumentativa. Absorta na ciranda de outras especulações, as folhas outonais da
palavra caem da pena de quem parece dialogar consigo mesma. Na verdade, sua
prosa transborda em temas pertinentes à religiosidade popular, relembrando
tradições culturais da fé do povo de Deus; evoca conjunturas políticas de sua
amada Boquim, com as “futricas” próprias das efervescências eleitoreiras; seu
interlóquio segue rememorando celebrações juninas, do mês de Santo Antônio,
quando a cidade se acendia de luzes, cores e sons, rompendo o silêncio mudo da
normalidade dos dias, ao sabor das comidas típicas dos alusivos festejos; sem
cair no irrisório, conta “causos” hilariantes como das modas “bufantes”, etc.
Ainda: temas abordados
na segunda parte avança fronteiras, vão a Portugal, “enquanto os sinos
plangentes lembram uma fé perdida, as ruas de pedras polidas [que] vão
apertando a nossa alma de um tristeza que não se sabe por que e nem de quem,
elas falam de lutas, de amores escondidos, de sonhos abafados”. De modo
especial, “a mala do prelado” leva consigo um mundo de inquietações da alma
religiosa, que também repousa na buliçosa dimensão antropológica da visão
cosmopolita dos contrastes humanos; talvez uma “maleta” mais do que, de maneira
justa, comparada à “caixa de pandora”, que, depois de Lilith – da mitologia sumeriana, a Eva dos hebreus – tornou-se
responsável palas desgraças do mundo. Na verdade, aqui, a metáfora revela
apenas uma comparação que açambarca a fertilidade criativa do conhecimento
cultural da autora.
E vamos mais
adiante! De prosa em prosa, chegamos ao “réquiem para o presidente!” Suicidara-se
o Presidente do Brasil Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954). Não gosto desse
verto pronominal! “Suicidar-se” parece querer dizer que a pessoa se matou duas
vezes, no começo e no fim da frase, ou no início e no pôr do sol da vida! Porém,
isso é impossível. Mas o presidente se matou, e a notícia caiu com o estrondo
de um tropo, inicialmente, incompreensível: “[...]
uma tragédia se abateu sobre a nossa Pátria amada, idolatrada. O luto veste o
grande Gigante adormecido”. A narrativa segue, emocionante, não somente aos
ouvidos da plateia de então, mas também à oitiva do leitor, que ainda se
inquieta com o suspense: Praesidem
siepsum occidit! Enquanto isso, os sentimentos se sobrepõem à curiosidade
reinante. Nada mais coerente para a sequência lexicográfica do que um ensaio
sobre “Ritos da morte”, cobrindo o “imaginário infantil” da autora com
lembranças fúnebres de nostalgia e saudade de rostos que ainda vivem nos
“álbuns visitados” de sua memória.
No mais, para concluir sobre
os personagens de ontem e de hoje, do passado e do presente, a linda lembrança
de “Uma catequista memorável” une-me temporalmente àquela que também esteve
marcando o itinerário de meu histórico vocacional, ao lado de Dom Luciano
Duarte (1925-2018). Seu nome: Conceição Luduvice! Encantada com os novos tempos
na Aracaju, vista com os olhos de menina, recém chegada de Boquim, o conjunto
arquitetônico de templos e igrejas, ponte e palácios, a beleza do Rio Sergipe,
entre tantas outras novidades, enchem de brilho os neurônios inteligentes da
autora. Todavia, no meio da “selva de pedra”, também havia espaço para a
colheita de fruto espirituais oferecidos na catequese, nas missas, nas peças religiosas
de teatro, tudo sob a magistral regência da evangelizadora Conceição Luduvice, ícone
ainda vibrante da Igreja São Salvador. (Dr. PGRS).