terça-feira, 5 de julho de 2022

 

       Escritos outonais na pena de Ana Medina


 

Escritos outonais é mais uma pérola de literatura com que a Acadêmica Ana Medina brinda seus leitores. Trata-se, na verdade, de uma obra bifurcada em duas vertentes de páginas translúcidas de poesia e paisagens do espírito, emolduradas pela fina estampa da sensibilidade do brio intelectivo da autora. Portanto, assim segue a distribuição escorreita e cadenciada de sua exposição: Escritos sobre escritos e Escritos inventivos. De uma lauda à outra, é o fascínio das letras que sorvemos avidamente como de ânforas plenas do saber erudito que transborda e se derrama no chão estilístico da inspiração.

Escritos sobre escritos é um afresco de mosaicos imbricados, que mapeiam inúmeras obras prefaciadas ou apreciadas pela autora em múltiplas cosmovisões, à mercê do conteúdo e da abordagem da obra em si. São janelas da alma contemplativa que se abrem sobre os telhados poéticos da singularidade de muitos autores. Mas é o fio conducente de sua percepção que nos garante a riqueza das inflexões pessoais, que brotam cristalinas na “seara da cultura”, sobretudo, sergipana. A coletânea da primeira parte jaz jus ao talento literário e à competência apurada da bela arte das letras. A vivacidade dos textos é perene, atravessa décadas da produção grafológica e rebenta solene – com o mesmo frescor do orvalho matutino de sua aurora – nas ondas do espírito do leitor. Metáforas resplandecem no tecido dos vocábulos como em “véus diáfanos”, que enxergam “o belo através da dor humana”; a autora enfrenta, tranquila, “as armadilhas do português”, o desafio do conhecimento erudito dos autores que prefacia, e as disposições da cultura clássica, com a maestria da ponderação lógica e racional do que lhe é proposto fazer; elabora, com finesse et bon goût, a viagem emocional de seus textos, com leveza, sem o veio acrimonioso dos incautos; sua literatura é plástica, sonora, e acende no vislumbre da perlustração a sede do desejo de ir sempre mais adiante nas plagas da geografia do texto.

Cada panorama da obra exige o conhecimento de uma lexicografia diferenciada, o que dá à autora o privilégio da idiossincrasia epistemológica para atingir seu objetivo; ela pendula entre o erudito e prosaico, entre o burlesco e o cotidiano, entre o religioso e o profano, entre o lírico e o bucólico, entre a história e a geologia da alma, como em instantes áureos e tempos de decadência. Tudo isso sem cair na mesmice simplória do pensador, “afinal o que é literatura senão o fruto da imaginação ou a recriação da vida, sem veleidades de cientificismo?”, pergunta-se. De fato, a literatura tem a prerrogativa de depositar na intuição dos intelectuais um universo cosmológico tão amplo quanto as gavetas que se abrem aos ventos da imaginação, e isso se agiganta ainda mais quando pensamos que “cada cabeça é um mundo”. Na literatura, os personagens assomam no horizonte de seus escritos como figuras vivas de um passado recente, que cintilam em suas páginas como estrelas nostálgicas da verdade que os constituem. Dramas pessoais, experiências da longevidade, buscas interiores, sofrimentos da alma, fulgores da prosa, deleites sentimentais, etc. De tudo isso, a autora se reveste para descrever – “como sacerdotisa de tempos imemoriais” – as “oferendas” que lhe foram apresentadas para refeição e análise cognoscitiva, conforme a índole peculiar a cada geração de autores.

Cotejando a investigação dos autores com personagens clássicos das artes universais como a pintura, a música, a escritura, a gramática poética, a história dos mitos helênicos – num estilo que abraça tantas épocas – o pano de fundo revela a riqueza de seu ambiento cultural. Desse modo, ela nos faz imergir no tempo antes do tempo, na origem mesma da arte que atravessa os séculos, porque in principium erat verbum... (Jo, 1,1).

Quanto aos Escritos inventivos – segunda parte da obra – uma ligeira apreciação faz deter-nos no conjunto sincrônico da compilação argumentativa. Absorta na ciranda de outras especulações, as folhas outonais da palavra caem da pena de quem parece dialogar consigo mesma. Na verdade, sua prosa transborda em temas pertinentes à religiosidade popular, relembrando tradições culturais da fé do povo de Deus; evoca conjunturas políticas de sua amada Boquim, com as “futricas” próprias das efervescências eleitoreiras; seu interlóquio segue rememorando celebrações juninas, do mês de Santo Antônio, quando a cidade se acendia de luzes, cores e sons, rompendo o silêncio mudo da normalidade dos dias, ao sabor das comidas típicas dos alusivos festejos; sem cair no irrisório, conta “causos” hilariantes como das modas “bufantes”, etc.

Ainda: temas abordados na segunda parte avança fronteiras, vão a Portugal, “enquanto os sinos plangentes lembram uma fé perdida, as ruas de pedras polidas [que] vão apertando a nossa alma de um tristeza que não se sabe por que e nem de quem, elas falam de lutas, de amores escondidos, de sonhos abafados”. De modo especial, “a mala do prelado” leva consigo um mundo de inquietações da alma religiosa, que também repousa na buliçosa dimensão antropológica da visão cosmopolita dos contrastes humanos; talvez uma “maleta” mais do que, de maneira justa, comparada à “caixa de pandora”, que, depois de Lilith – da mitologia sumeriana, a Eva dos hebreus – tornou-se responsável palas desgraças do mundo. Na verdade, aqui, a metáfora revela apenas uma comparação que açambarca a fertilidade criativa do conhecimento cultural da autora.

E vamos mais adiante! De prosa em prosa, chegamos ao “réquiem para o presidente!” Suicidara-se o Presidente do Brasil Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954). Não gosto desse verto pronominal! “Suicidar-se” parece querer dizer que a pessoa se matou duas vezes, no começo e no fim da frase, ou no início e no pôr do sol da vida! Porém, isso é impossível. Mas o presidente se matou, e a notícia caiu com o estrondo de um tropo, inicialmente, incompreensível: “[...] uma tragédia se abateu sobre a nossa Pátria amada, idolatrada. O luto veste o grande Gigante adormecido”. A narrativa segue, emocionante, não somente aos ouvidos da plateia de então, mas também à oitiva do leitor, que ainda se inquieta com o suspense: Praesidem siepsum occidit! Enquanto isso, os sentimentos se sobrepõem à curiosidade reinante. Nada mais coerente para a sequência lexicográfica do que um ensaio sobre “Ritos da morte”, cobrindo o “imaginário infantil” da autora com lembranças fúnebres de nostalgia e saudade de rostos que ainda vivem nos “álbuns visitados” de sua memória.

No mais, para concluir sobre os personagens de ontem e de hoje, do passado e do presente, a linda lembrança de “Uma catequista memorável” une-me temporalmente àquela que também esteve marcando o itinerário de meu histórico vocacional, ao lado de Dom Luciano Duarte (1925-2018). Seu nome: Conceição Luduvice! Encantada com os novos tempos na Aracaju, vista com os olhos de menina, recém chegada de Boquim, o conjunto arquitetônico de templos e igrejas, ponte e palácios, a beleza do Rio Sergipe, entre tantas outras novidades, enchem de brilho os neurônios inteligentes da autora. Todavia, no meio da “selva de pedra”, também havia espaço para a colheita de fruto espirituais oferecidos na catequese, nas missas, nas peças religiosas de teatro, tudo sob a magistral regência da evangelizadora Conceição Luduvice, ícone ainda vibrante da Igreja São Salvador. (Dr. PGRS).