O homem moderno e a vida espiritual
Em tempos de mudanças pessoais, eu
estava encaixotando alguns livros quando me deparei com um título curioso: “L’homme moderne et la vie spirituelle.”
Então, atraído pela escritura, sempre fascinado pelas letras e a transmissão de
seu conteúdo, elaborei esse texto inspirado em seu conteúdo e com a mesma epígrafe.
Na verdade, um tema tão atual e urgente quanto no momento em que o autor
francês, Max Thurian (1921-1996), irmão de Taizé, resolveu externar algumas de
suas preocupações ou inquietações sobre a vida interior, diante da opressora
onda de modernidade que tenta distrair o homem de todo jeito quanto às
necessidades mais profundas de seu espírito, de sua relação com o
Transcendental. Seu livro fora publicado na França, em 1961, há mais de cinco
décadas.
Pelo visto, a relatividade temporal, que
enche o coração humano de coisas e mais coisas, tem deixado o mesmo espaço da
interioridade vazio pela dimensão superficial com que buscamos nossas
realizações ou satisfações distantes de quaisquer resquícios de
espiritualidade. Mas não adianta o homem querer libertar-se ou desvencilhar-se
da origem vital de todos os seus dramas mais íntimos, como é o caso de sua prerrogativa
espiritual. Diferente de todos os outros animais, o homo sapiens esforça-se, em vão, para negar a si mesmo que ele não
é somente matéria, corpo, imanência, finitude. Que pobreza seria se nossa vida
fosse somente isso!
Max Thurian era evangélico, e Dom
Luciano Duarte, Arcebispo Emérito de Aracaju, teve a oportunidade de
encontrá-lo durante as sessões do Concílio Vaticano II. Um homem de reflexões
penetrantes e pontuais, que mais tarde se converteu ao catolicismo romano e foi
ordenado sacerdote em maio de 1988. Evidentemente, ele escreveu para os
cristãos que, mergulhados no ativismo pressuroso de suas buscas incessantes,
quase intermináveis, também são arrastados pela avalanche materialista das
ocupações quotidianas, barrando as fontes do espírito para o exercício da
ascese. Já na introdução de seu opúsculo, ele fala que a primeira “arrancada”
da ascese cristã é acolher na vida de todos os dias a cruz de Jesus Cristo,
pois, na pessoa do Crucificado, nossa existência, no que ela possui de difícil
ou doloroso, encontra um sentido e uma eficácia.
Na amplitude de sua visão, o cristão não
é convidado somente a assumir seu sofrimento ou a participar do de Cristo, pela
fé, mas a exercitar-se nos combates que todos os dias ele deve conduzir contra
o demônio, o mal, a usura e contra si mesmo. Segundo ele, essa ascese ativa no cristão,
muitas vezes, foi considerada como uma luta mórbida contra si próprio, contra
os poderes naturais do ser humano, contra o que Deus criou e que é bom. Mas não
se trata da questão pela qual o cristão deva construir uma antropologia
dualista, em que o espírito e a carne, compreendidos como alma e corpo,
estariam em luta. Desse modo, a vida espiritual do cristão deve fazer-se uma
com sua existência, porquanto não existe uma vida interior e outra exterior. O
fato é que, assim, tocamos o problema do drama da vida espiritual do homem
moderno que sofre por não encontrar espaço em sua existência para a oração e a
meditação. Quanto às armas de que devemos estar munidos para o combate
espiritual, ele cita o orientação de São Paulo aos Efésios: “Fortalecei-vos no
Senhor e na força de seu poder. Revesti a armadura de Deus, para poderdes
resistir às insídias do diabo. Pois nosso combate não é contra o sangue nem
contra a carne, mas contra os Principados, contra as Autoridades, contra os
Dominadores deste mundo de trevas, contra os Espíritos do mal, que povoam as
regiões celestiais. Por isso deveis vestir a armadura de Deus, para poderdes
resistir no dia mau e sair firmes de todo o combate” (Ef 6,10-13).
Em nada, o autor se distancia das
consequências de uma vida agitada como a que corre nos dias de hoje, de modo
que, pouco tempo ou mesmo nenhum instante reservamos para as necessidades da
alma, para o bem-estar do espírito. Corremos atrás de tudo que possa nos dar
prazer, satisfação pelos bens materiais, sensação de conforte e comodidade, realizações
no trabalho, e de tantas outras razões justas que favoreçam o valor de nossa
dignidade, mas nos esquecemos do essencial. A superficialidade toma conta do
que temos e do que somos. E assim, dispersos na correria pelas conquistas
vitais de nosso ser, perdemos a consciência de que nossa pessoa é uma unidade.
Não obstante essa percepção, a vida espiritual sempre foi dominada pela
concepção dualista da divisão entre corpo e alma, algo que herdamos da cultura
helênica e permanece entranhada na ambiguidade da existência do homem entre as
realidades de ordem interior e as realidades físicas, cujo binômio não
encontramos na Sagrada Escritura. Por sua vez, a divisão da pessoa, provocada
pela lei moral no homem não cristão, desejoso de obedecer a uma ordem
espiritual ou moral, nós a encontramos com outro sentido na antropologia de
inspiração filosófica grega.
Segundo essa visão, não é a Lei que
suscita uma tensão dominando o conhecimento do pecado, mas a alma, considerada
como originalmente boa e imortal, tende constantemente a escapar do corpo, sua
prisão, pela liberação filosófica, pela contemplação das ideias até que a morte
complete essa liberação. Desse modo, a espiritualidade e a ascese consistem na
procura do equilíbrio entre a alma e o corpo, na dominação do espírito sobre a
matéria. Tal dualismo helênico é totalmente estranho aos escritores sagrados,
porque, para eles, existe uma unidade fundamental da criação e do homem. E
mesmo que São Paulo faça eco de uma moral legalista, constituindo uma tensão
dualista da pessoa, sobretudo, relacionada ao período anterior à sua conversão,
ela não é original ou fundamental. É, portanto, essa filosofia que influenciará
a espiritualidade cristã, fazendo-a perder sua concepção antropológica
primitiva. Todavia, o fato é que, independentemente de toda a discussão concebida
dentro do dualismo grego, contraposto à visão cristã – que arrasta o autor
pelos caminhos de uma meditação mais profunda, o que não convém enfatizar aqui
– o homem moderno parece perdido na balbúrdia do quotidiano e desenraizado de
seu próprio espírito. Perdemos o sentido do silêncio, da meditação, da
reflexão, ou da solidão como proposta de encontro com nós mesmos. De fato, quem
hoje em dia reserva um pouco de tempo para estar, verdadeiramente, só com o
entretenimento da alma?
Conforme o sobredito autor, o problema
do tempo está entre os mais importantes de hoje. O homem moderno não consegue
mais organizar o seu tempo. Daí a necessidade de repensar o uso que lhe damos
em relação à vida espiritual, mas sem lamentar em vão uma época terminada em
que não se havia tempo para rezar. Assim, a nova organização do tempo deve
levar em consideração as exigências do trabalho moderno e situar a oração no
seio da atividade humana. Outro problema é o da disponibilidade psicológica, da
solidão e do silêncio. O homem de hoje, dificilmente só na vida de todos os
dias, invadido pelo barulho da cidade e das máquinas, não pode ter quando ele
quiser a disponibilidade psicológica e a paz interior que se julga necessária à
oração e à meditação. Por tudo isso e por tantas outras necessidades
fundamentais do espírito do homem, é que o cristão do nosso tempo, no mundo do
trabalho e da técnica, precisa de novas diretrizes para organizar os valores de
sua vida espiritual, para aprender – ou reaprender – a rezar, a contemplar seu
Senhor no combate da vida moderna. Pela revisão de vida, de suas atitudes e de
seus desejos em face da vida espiritual, o homem moderno deve abandonar mais
seu egocentrismo, seu orgulho, seu amor-próprio, suas ambições egoístas, a
vaidade do eu, sem o que ele jamais poderá progredir na ascese cristã e
identificar-se, verdadeiramente, com o seu Senhor.
Bebendo especialmente da fonte da Palavra
de Deus, métodos fácies e exequíveis podem ser aplicados à vida de oração permanente,
como ter o pensamento atravessado por uma expressão que nos coloque em sintonia
com o espírito reflexivo e orante, a exemplo do publicano que simplesmente rezou,
dizendo: “Meu Deus, tem piedade de mim, pecador!” (Lc 18,13). E voltou para casa
justificado diante de Deus, com seu coração leve e banhado da misericórdia do Pai.
Somente assim, com serenidade, mas sem hesitação interior, o homem moderno poderá
trilhar novas sendas de vida espiritual, motivado pela simplicidade e pela alegria
de seu despretensioso agir.