sábado, 2 de junho de 2018

Dom Luciano Duarte e o Silêncio da Tempestade





Dom Luciano Duarte E o Silêncio da Tempestade: Tributo e gratidão







Dom Luciano José Cabral Duarte (1925-2018) foi como uma tempestade que passou pelo mundo e que, agora, se calou definitivamente. Com certeza, o silêncio profundo de sua tempestade começou há mais de vinte e cinco anos, quando, debilitado pelas forças físicas e intelectuais, foi constrangido, forçado pelas intempéries da vida a percorrer o caminho da ausência dos rumores e dos turbilhões próprios das procelas existenciais. Foi no segundo semestre de 1988, quando eu ainda estudava no Seminário Menor de Aracaju, aonde Dom Luciano ia toda semana falar aos seus seminaristas, que ele deixou de visitar-nos como estava habituado. Ele cuidava do Seminário Menor e dos seminaristas como “do próprio coração da Arquidiocese”, como tão bem ele repetia, segundo a frase do Concílio Vaticano II. Algumas explicações foram dadas, mas o fato é que, aos poucos, ele foi desaparecendo e desde aquele tempo Dom Luciano Duarte não parecia mais o mesmo, enérgico em suas reações de veio intelectual ou pleno de vitalidade espiritual diante das exigências de seu apostolado. Pouco interesse parecia demonstrar para com o Seminário que sempre estava no foco principal de suas preocupações. Todo ano, ele também visitava os seminaristas maiores de São Paulo, em Taubaté, e de Brasília. Quando em 1991, eu ingressei no Seminário Maior de Brasília para cursar Filosofia e Teologia, o meu grande sonho era que Dom Luciano aparecesse para nos visitar, rezar a missa, fazendo sua bela homilia, envolvida pelo êxtase da capacidade argumentativa na arte oratória, e eu poder dizer para os meus companheiros, com todo orgulho: “Esse é o meu Arcebispo!”. Mas Dom Luciano nunca apareceu como fazia, pelo menos uma vez por ano. Era ele mesmo que nos contava depois na convivência semanal com os seminaristas em Aracaju.
Por que eu digo que Dom Luciano Duarte foi uma “tempestade”? Porque ele sempre carregou dentro de si um vulcão interior de sabedoria intelectiva acumulada e explosiva para qualquer circunstância necessária de sua apelação. Às vezes, o encontrávamos na Cúria ou no próprio seminário quando havia reunião do clero, e ele se demonstrava calmo, sereno, penetrado de uma atmosfera espiritual tão profunda, que, como que por um milagre, ele transformava o ambiente e o elevava ao senhorio de sua personalidade. Não obstante a aparente serenidade, eu me perguntava sobre os turbilhões de pensamentos revoltos nas ondas escondidas de sua genialidade, saturando as bordas incontíveis de tanto saber armazenado ali. Quem o conheceu mais de perto sabe do que eu estou falando. E não sei se durante toda a minha pobre existência sobre a terra, terei a oportunidade de encontrar alguém que o “suplante” em rigor estilístico literário e espontâneo no risco imperativo das provocações que surgiam de dentro de sua própria inteligência. Suas palavras pareciam descer de uma cachoeira livre e fluente, desembocando na artimanha dialética do inolvidável deleite para os ouvidos de sua plateia. Era uma cabeça pensante, usufruindo sempre para o bem da Igreja de Cristo da inteligência privilegiada que Deus lhe concedera. De sua boca ou de sua pena, qualquer pingo de letra poderia transformar-se numa lagoa transbordante de beleza e sabedoria e ensinamentos.
Conta-se que, um dia, alguém disse sobre ele: “A Igreja vai precisar muito dessa cabeça!”. E ele, que dizia que “só merece ser levado a sério quem é capaz de sofrer por suas próprias convicções”, assumiu todos os riscos do princípio filosófico que criara com a intuição provada pela experiência do que sentia e sofria na pele. Nunca fugiu das altercações que lhe chegavam como resposta às colocações francas, diretas, sem tergiversações, com argumentos sólidos e fundamentados no patrimônio, sobretudo doutrinal e histórico, quando se referia às coisas da Igreja de Cristo. Quanta gente se aborreceu com ele dentro e fora da Igreja, com as respostas virulentas e até surpreendentes, conforme a necessidade do momento, mas também como autodefesa em relação aos ataques que lhe eram desferidos impiedosamente. Também por isso, ele foi como uma tempestade, cuja metáfora contradiz o tempo em que vivemos hoje, quando muita gente, inclusive da Igreja, se cala diante das calamidades progressivas de desprezo pela doutrina católica para não se ferir por causa de suas verdades. Com efeito, o silêncio covarde que nos amordaça é o mesmo que permite que determinadas arbitrariedades aconteçam no laxismo individual patrocinado pelas libertinagens de todo tipo. Assim, suas palavras eram flechas incendiárias que atingiam o alvo no esplendor fulgurante de suas elucubrações. Ele foi da geração de um tempo em que bispos se expunham intelectualmente nos jornais de todo o país, com verdades ferinas e contundentes, mas de alto calibre reflexivo, o que, muitas vezes, inquietava outros intelectuais que, de igual modo, se colocavam na fileira crítica da réplica e da tréplica de suas provocações. Dom Luciano Duarte foi de um tipo como temos poucos na Igreja, capaz de defender e sofrer pelas verdades da fé católica sem pudor nem constrangimento. Hodiernamente, o melindre, a hesitação da consciência, o escrúpulo tomou tanto conta das pessoas, que quase mais ninguém se arrisca em sofrer pelas verdades em que acredita, muito menos a proclamá-las de maneira ousada e audível como Dom Luciano fazia. Murmuramos no escuro as insatisfações pessoais por algum inconveniente do espírito, e quase ninguém fica sabendo.
Dom Luciano José Cabral Duarte – como muitos outros bispos seus contemporâneos, homens de talento e também honestos com a consciência, mesmo se até em lados opostos – foi de outra talha, de outra envergadura pessoal. Poderia não convencer, mas estava convencido do que dizia, porque não falava em nome próprio. No momento em que a Teologia da Libertação já havia feito tantos estragos dentro da Igreja no Brasil e na América Latina, ele defendeu a Arquidiocese com unhas e dentes para que ela não fosse infectada pelo sangue venenoso que ela transmitia. E ele era muito bem consciente dos riscos. Uma vez, ele chegou ao Seminário Menor de Aracaju muito furioso com outro arcebispo, e antes da oração inicial – que era o primeiro gesto que ele fazia com os seminaristas – ele esbravejou, num tom enfaticamente raivoso: “Se eu fosse o papa, eu excomungaria o arcebispo [e disse o nome!]”. Depois, para descontrair, ele começou a sorrir e disse: “Mas ele pode ficar tranquilo que eu não vou ser papa não!”. E todo mundo caiu na gargalhada com ele. Portanto, segundo a sua linha de pensamento, jamais ele permitiria que um candidato ao sacerdócio da Arquidiocese fosse encaminhado para um seminário que estive contaminado pela “teologia da enxada!”, que era uma expressão usada à época. Na CNBB, dizem que sempre que ele iria se pronunciar, fazendo um aparte e tomando a palavra, a assembleia gelava. Coisa boa não viria, no sentido de que ele iria fazer alguma intervenção que contrariaria os presentes. E uma vez, o presidente ficou tão furioso com a sua colocação, que depois, disse: “Está encerrada a sessão!”. Ele foi um dos únicos que tiveram a coragem de enfrentar Leonardo Boff dentro das reuniões da própria CNBB. Foi daquela época o seu opúsculo “O caso Leonardo Boff e a [sua] rebeldia contra Roma” que ele publicou, e nós lemos. Era um tempo de efervescência dialética produtiva e contagiante no meio episcopal. Recentemente, contou-me um eclesiástico da CNBB, com sentimento de tristeza e desilusão depositado no fundo da alma, que, hoje, para alguém se pronunciar, antes tem de dizer qual é o assunto e, dependendo do conteúdo, ele não poderá expor a matéria em questão.
Mas o tempo é implacável com todos, e ninguém escapará à inexorabilidade fatídica de seu redemoinho. Quando o sol da vida se esconde do tempo para iluminar os lugares inimagináveis aos olhos humanos, sua luminosidade ainda permanece se projetando no mundo das reminiscências humanas. Referindo-se à morte, de cuja condição ninguém poderá subtrair-se, Dom Luciano Duarte afirmou numa pregação: “O pensamento da morte, nessa misteriosa e pobre psicologia humana, é um pensamento que nós não suportamos continuamente. Nós temos de nos esquecer de que, um dia, a morte nos levará, senão, não poderemos viver. E, entretanto, é preciso que esse esquecimento não seja um olvido total, não seja uma vida que nega a existência desse corte, deste final brusco que um dia atingirá a cada um de nós. Todos nós conhecemos a nossa própria psicologia, e basta olhar como a nossa alma, como o espírito se comporta quando nós vemos a morte golpear em derredor de nós – nossos amigos, nossos parente, nossos entes queridos. Durante um pouco de tempo, temos aquele pensamento presente ao nosso espírito e dentro de nós o nosso coração soluça. Mas vem de novo a necessidade de sobreviver, e nós deixamos nos desvãos da memória, deixamos nessas profundidades daquilo de que a gente não se lembra, no fundo da nossa alma, as lembranças tristonhas e novamente entramos no ritmo da nossa vida comum. Entretanto, sem nenhum momento doentio, sem nenhuma atitude mórbida, de quem vive sufocado pelo pensamento da morte, de quem vive tirado da maneira habitual de viver dos outros homens, com lucidez, com aceitação, com tranquilidade, com paz na alma, nós devemos nos recordar [...] de que a nossa vida é breve, de que nós teremos que dar conta de como empregamos essa vida e de que o Senhor já está a caminho e ao encontro dele nós estamos caminhando”.
A ele que disse: “Nós carregamos dentro de nós mesmos uma semente de imortalidade e de vida. Depois dessa morte na terra, abre-se para nós uma eternidade inteira que nós somos chamados a viver juntos de Deus na contemplação de sua face”, que o Bom Deus possa conceder-lhe a “contemplação luminosa” de Sua face no céu. Amém.