Dom Luciano Duarte E o Silêncio da Tempestade: Tributo e gratidão
Dom
Luciano José Cabral Duarte (1925-2018) foi como uma
tempestade que passou pelo mundo e que, agora, se calou definitivamente. Com
certeza, o silêncio profundo de sua tempestade começou há mais de vinte e cinco
anos, quando, debilitado pelas forças físicas e intelectuais, foi constrangido,
forçado pelas intempéries da vida a percorrer o caminho da ausência dos rumores
e dos turbilhões próprios das procelas existenciais. Foi no segundo semestre de
1988, quando eu ainda estudava no Seminário Menor de Aracaju, aonde Dom Luciano
ia toda semana falar aos seus seminaristas, que ele deixou de visitar-nos como
estava habituado. Ele cuidava do Seminário Menor e dos seminaristas como “do
próprio coração da Arquidiocese”, como tão bem ele repetia, segundo a frase do
Concílio Vaticano II. Algumas explicações foram dadas, mas o fato é que, aos
poucos, ele foi desaparecendo e desde aquele tempo Dom Luciano Duarte não
parecia mais o mesmo, enérgico em suas reações de veio intelectual ou pleno de
vitalidade espiritual diante das exigências de seu apostolado. Pouco interesse
parecia demonstrar para com o Seminário que sempre estava no foco principal de
suas preocupações. Todo ano, ele também visitava os seminaristas maiores de São
Paulo, em Taubaté, e de Brasília. Quando em 1991, eu ingressei no Seminário
Maior de Brasília para cursar Filosofia e Teologia, o meu grande sonho era que
Dom Luciano aparecesse para nos visitar, rezar a missa, fazendo sua bela
homilia, envolvida pelo êxtase da capacidade argumentativa na arte oratória, e
eu poder dizer para os meus companheiros, com todo orgulho: “Esse é o meu
Arcebispo!”. Mas Dom Luciano nunca apareceu como fazia, pelo menos uma vez por
ano. Era ele mesmo que nos contava depois na convivência semanal com os
seminaristas em Aracaju.
Por que eu digo que Dom
Luciano Duarte foi uma “tempestade”? Porque ele sempre carregou dentro de si um
vulcão interior de sabedoria intelectiva acumulada e explosiva para qualquer
circunstância necessária de sua apelação. Às vezes, o encontrávamos na Cúria ou
no próprio seminário quando havia reunião do clero, e ele se demonstrava calmo,
sereno, penetrado de uma atmosfera espiritual tão profunda, que, como que por
um milagre, ele transformava o ambiente e o elevava ao senhorio de sua
personalidade. Não obstante a aparente serenidade, eu me perguntava sobre os
turbilhões de pensamentos revoltos nas ondas escondidas de sua genialidade,
saturando as bordas incontíveis de tanto saber armazenado ali. Quem o conheceu
mais de perto sabe do que eu estou falando. E não sei se durante toda a minha
pobre existência sobre a terra, terei a oportunidade de encontrar alguém que o
“suplante” em rigor estilístico literário e espontâneo no risco imperativo das
provocações que surgiam de dentro de sua própria inteligência. Suas palavras
pareciam descer de uma cachoeira livre e fluente, desembocando na artimanha
dialética do inolvidável deleite para os ouvidos de sua plateia. Era uma cabeça
pensante, usufruindo sempre para o bem da Igreja de Cristo da inteligência
privilegiada que Deus lhe concedera. De sua boca ou de sua pena, qualquer pingo
de letra poderia transformar-se numa lagoa transbordante de beleza e sabedoria
e ensinamentos.
Conta-se que, um dia,
alguém disse sobre ele: “A Igreja vai precisar muito dessa cabeça!”. E ele, que
dizia que “só merece ser levado a sério quem é capaz de sofrer por suas
próprias convicções”, assumiu todos os riscos do princípio filosófico que
criara com a intuição provada pela experiência do que sentia e sofria na pele.
Nunca fugiu das altercações que lhe chegavam como resposta às colocações
francas, diretas, sem tergiversações, com argumentos sólidos e fundamentados no
patrimônio, sobretudo doutrinal e histórico, quando se referia às coisas da
Igreja de Cristo. Quanta gente se aborreceu com ele dentro e fora da Igreja, com
as respostas virulentas e até surpreendentes, conforme a necessidade do
momento, mas também como autodefesa em relação aos ataques que lhe eram
desferidos impiedosamente. Também por isso, ele foi como uma tempestade, cuja
metáfora contradiz o tempo em que vivemos hoje, quando muita gente, inclusive
da Igreja, se cala diante das calamidades progressivas de desprezo pela
doutrina católica para não se ferir por causa de suas verdades. Com efeito, o
silêncio covarde que nos amordaça é o mesmo que permite que determinadas
arbitrariedades aconteçam no laxismo individual patrocinado pelas libertinagens
de todo tipo. Assim, suas palavras eram flechas incendiárias que atingiam o
alvo no esplendor fulgurante de suas elucubrações. Ele foi da geração de um
tempo em que bispos se expunham intelectualmente nos jornais de todo o país,
com verdades ferinas e contundentes, mas de alto calibre reflexivo, o que,
muitas vezes, inquietava outros intelectuais que, de igual modo, se colocavam
na fileira crítica da réplica e da tréplica de suas provocações. Dom Luciano
Duarte foi de um tipo como temos poucos na Igreja, capaz de defender e sofrer
pelas verdades da fé católica sem pudor nem constrangimento. Hodiernamente, o
melindre, a hesitação da consciência, o escrúpulo tomou tanto conta das
pessoas, que quase mais ninguém se arrisca em sofrer pelas verdades em que
acredita, muito menos a proclamá-las de maneira ousada e audível como Dom
Luciano fazia. Murmuramos no escuro as insatisfações pessoais por algum
inconveniente do espírito, e quase ninguém fica sabendo.
Dom Luciano José Cabral
Duarte – como muitos outros bispos seus contemporâneos, homens de talento e
também honestos com a consciência, mesmo se até em lados opostos – foi de outra
talha, de outra envergadura pessoal. Poderia não convencer, mas estava
convencido do que dizia, porque não falava em nome próprio. No momento em que a
Teologia da Libertação já havia feito tantos estragos dentro da Igreja no
Brasil e na América Latina, ele defendeu a Arquidiocese com unhas e dentes para
que ela não fosse infectada pelo sangue venenoso que ela transmitia. E ele era
muito bem consciente dos riscos. Uma vez, ele chegou ao Seminário Menor de
Aracaju muito furioso com outro arcebispo, e antes da oração inicial – que era
o primeiro gesto que ele fazia com os seminaristas – ele esbravejou, num tom
enfaticamente raivoso: “Se eu fosse o papa, eu excomungaria o arcebispo [e
disse o nome!]”. Depois, para descontrair, ele começou a sorrir e disse: “Mas
ele pode ficar tranquilo que eu não vou ser papa não!”. E todo mundo caiu na
gargalhada com ele. Portanto, segundo a sua linha de pensamento, jamais ele
permitiria que um candidato ao sacerdócio da Arquidiocese fosse encaminhado
para um seminário que estive contaminado pela “teologia da enxada!”, que era
uma expressão usada à época. Na CNBB, dizem que sempre que ele iria se
pronunciar, fazendo um aparte e tomando a palavra, a assembleia gelava. Coisa
boa não viria, no sentido de que ele iria fazer alguma intervenção que
contrariaria os presentes. E uma vez, o presidente ficou tão furioso com a sua
colocação, que depois, disse: “Está encerrada a sessão!”. Ele foi um dos únicos
que tiveram a coragem de enfrentar Leonardo Boff dentro das reuniões da própria
CNBB. Foi daquela época o seu opúsculo “O caso Leonardo Boff e a [sua] rebeldia
contra Roma” que ele publicou, e nós lemos. Era um tempo de efervescência
dialética produtiva e contagiante no meio episcopal. Recentemente, contou-me um
eclesiástico da CNBB, com sentimento de tristeza e desilusão depositado no
fundo da alma, que, hoje, para alguém se pronunciar, antes tem de dizer qual é
o assunto e, dependendo do conteúdo, ele não poderá expor a matéria em questão.
Mas o tempo é
implacável com todos, e ninguém escapará à inexorabilidade fatídica de seu
redemoinho. Quando o sol da vida se esconde do tempo para iluminar os lugares
inimagináveis aos olhos humanos, sua luminosidade ainda permanece se projetando
no mundo das reminiscências humanas. Referindo-se à morte, de cuja condição
ninguém poderá subtrair-se, Dom Luciano Duarte afirmou numa pregação: “O
pensamento da morte, nessa misteriosa e pobre psicologia humana, é um
pensamento que nós não suportamos continuamente. Nós temos de nos esquecer de
que, um dia, a morte nos levará, senão, não poderemos viver. E, entretanto, é
preciso que esse esquecimento não seja um olvido total, não seja uma vida que
nega a existência desse corte, deste final brusco que um dia atingirá a cada um
de nós. Todos nós conhecemos a nossa própria psicologia, e basta olhar como a
nossa alma, como o espírito se comporta quando nós vemos a morte golpear em
derredor de nós – nossos amigos, nossos parente, nossos entes queridos. Durante
um pouco de tempo, temos aquele pensamento presente ao nosso espírito e dentro
de nós o nosso coração soluça. Mas vem de novo a necessidade de sobreviver, e
nós deixamos nos desvãos da memória, deixamos nessas profundidades daquilo de
que a gente não se lembra, no fundo da nossa alma, as lembranças tristonhas e
novamente entramos no ritmo da nossa vida comum. Entretanto, sem nenhum momento
doentio, sem nenhuma atitude mórbida, de quem vive sufocado pelo pensamento da
morte, de quem vive tirado da maneira habitual de viver dos outros homens, com
lucidez, com aceitação, com tranquilidade, com paz na alma, nós devemos nos
recordar [...] de que a nossa vida é breve, de que nós teremos que dar conta de
como empregamos essa vida e de que o Senhor já está a caminho e ao encontro
dele nós estamos caminhando”.
A ele que disse: “Nós
carregamos dentro de nós mesmos uma semente de imortalidade e de vida. Depois
dessa morte na terra, abre-se para nós uma eternidade inteira que nós somos
chamados a viver juntos de Deus na contemplação de sua face”, que o Bom Deus
possa conceder-lhe a “contemplação luminosa” de Sua face no céu. Amém.