A Revolução
dos bichos
Numa espécie de verdadeira fábula, “a revolução dos bichos” – uma obra
do pseudônimo George Orwell
(1903-1950), cujo nome verdadeiro era Eric Arthur Blair, que foi romancista,
ensaísta político e jornalista – retrata a interação entre os bichos
e os homens, numa perspectiva de superação das dificuldades por que passam os
bichos quando não se sentem livres nem iguais aos homens. Na verdade, a obra do
referido autor, adepto do anarquismo, é uma crítica e uma sátira, eivada de
humor, em relação ao sistema ditatorial de Stalin, na Rússia.
A obra é uma distopia ou antiutopia, isto é, representa lugares e
existências fictícios para denunciar algo que gostaria que não existisse na
realidade. É, pois, o que acontece na supracitada obra, que inspirou o
comentário a seguir. Nela, fala-se de irmandade, de fraternidade, que são
termos próprios dos humanos. Assim, no apólogo, os bichos pensam e falam, à
maneira antropológica, ao modo humano. Eles argumentam sobre justiça e liberdade,
igualdade e direitos no exercício da sua dignidade animal. Na verdade,
poderíamos dizer que se trata de uma projeção humana no universo animal,
porque, de fato, os humanos tentam se colocar dentro do contexto da vida
daqueles indefesos, que são maltratados e mortos. Então, eles, por assim dizer,
no reflexo de sua percepção, se recusam a admitir que os homens os tratem de
modo cruel, porque são preparados e cevados para morrer. “A revolução dos
bichos” se torna, então, um tipo de protesto, de grito e de rebelião; uma
insurreição capaz de produzir a revolta dos bichos. Tudo isso se reflete,
contundentemente, quando eles expulsam os humanos que os exploram para longe de
seu habitat. Assim, o perigo mais
grave que se apresenta é a possibilidade de que o comportamento dos animais se
estenda sobre outras propriedades da região. Começa, portanto, a tirania dos
bichos sobre os humanos.
Interessante é pensar, por exemplo, que o desequilíbrio natural e
harmonioso entre os humanos e os bichos é um fator psicológico humano,
reproduzido nos animais. Hoje, fala-se muito dos “direitos dos animais”, da “racionalidade
inferior” dos bichos, até bem pouco tempo, totalmente considerados irracionais.
Logo, o raciocínio dos bichos se enquadra dentro das discriminações polarizadas
no contexto social moderno. Os bichos se tornam discriminados em face dos
humanos e intencionam se tornar como eles, inclusive com a elaboração e a
positivação de princípios e leis que possam regê-los à maneira tipicamente
humana. Trata-se de instruções que possam garantir seus direitos de liberdade,
igualdade e dignidade ao nível de sua animalidade. Uma organização se
estabelece entre os bichos, que ocupam cargos de liderança e funções de
trabalho, ordem e disciplina, a tal ponto, eficientes, que surpreendem os
humanos, agora, destituídos de suas tarefas frente aos bichos. Tudo parece um
sonho feliz e edificante, quando, de repente, os sentimentos negativos, de
rejeição, de tortura e de reféns de alguns bichos dominando outros, começam a
aflorar.
Ou seja, os bichos entram no mundo dos homens e se comportam de igual
maneira. Mais ou menos como assistimos no espelho da história humana onde os
que tentam se liberar de certas tiranias, acabam impondo as suas. A cegueira ou
o fanatismo de ideologias que deturpam o sentido real dos direitos devido a
todos também se estabelece sobre as atitudes comportamentais dos bichos. Assim,
a ideologia poderia comparar-se a um veneno lento, que entorpece a consciência,
obnubilando-a gravemente, de modo que a pessoa se submete às imposições da
tirania. De fato, a ideologia enfraquece as mentes distraídas, condicionando-as
letargicamente aos antídotos contra a liberdade da própria lucidez do espírito.
Quer dizer: a suposta segurança de alguns degringola na opressão de outros. Isso
porque, com muita facilidade, os que lutam pelo desejo de liberdade em relação
à tirania, quando alcançam o poder, assumem, de igual modo, o posto dos
ditadores, tornando-se até piores do que seus predecessores. Um dia eu ouvi num
filme: “Se não expulsarmos as formigas, elas nos expulsarão”. Então, trava-se a
guerra ou a batalha pela sobrevivência individual, de modo que, mesmo assim,
almejando liberdade e igualdade, alguns subjugam os demais, usufruindo dos
mesmos privilégios que antes condenavam. Soa-se, assim, como corolário da
astúcia dos tiranos, o rifão que diz que o
mundo é dos mais espertos. E há rivalidades entre os próprios bichos. “A lealdade
e a obediência são mais importantes!”, afirma Napoleão, que faz de tudo para
ludibriar, de modo intencionalmente pernicioso, a capacidade de pensamento dos
bichos! Cada um assume o seu papel na construção da sociedade, com canseira,
fadiga e até fome, mas sem fugir das responsabilidades que lhe cabem.
Depois que os animais se instalam na Fazenda dos homens, é preciso tomar
o caminho do diálogo, da negociação, mesmo reconhecendo que com animais não se
negocia. Todavia, enquanto isso não acontece, vale a vigilância atenta, conscienciosa
dos bichos mais reflexivos, a fim de se livrarem das ciladas argumentativos e
fáticas diante das circunstâncias da convivência na suposta “Fazenda animal”,
que se augura “vida longa”! Os homens tentam fazer os animais provarem de suas
experiências, enquanto eles mesmos, racionais e pensantes, dominam a
inteligência do animal dito “racional”. Certamente uma preposteração de
valores, de sentimentos e ideais de vida, que colocam os animais no lugar dos
humanos. Também no meio deles não há espaço para os traidores e enganadores de
seus iguais. Isso para efetivar o anseio de uma sociedade melhor, mais justa e
equânime na prática de seus direitos, embora isso também contrarie o princípio
da igualdade, pois, entre os bichos, também há categorias classistas. Os de
segunda classe não poderiam usufruir dos mesmos direitos que os da primeira.
Com a instauração do tribunal de julgamento, animal que infringiu o mandamento
do “não matarás”, será condenado e punido de morte. Mas a liderança impoluta do
“reino dos animais”, que favorece as condições de sobrevivência dos bichos deve
receber o mérito da “honra do animalismo”. Uma ironia hipócrita do reino
animal! Falácias de bichos que não são capazes de reconhecer suas próprias
desgraças e desigualdades. A força bruta da tirania é o princípio que rege os
sonhos de liberdade dos oprimidos. Porém, a solidariedade entre os bichos
também reforça os laços da filadelfia, da irmandade, de modo que uns podem
ajudar aos outros. Vida longa; Fazenda animal; Viva Napoleão!
De um momento para outro, o homem instiga o porco a reconhecer que todos
os animais são iguais, mas “alguns são mais iguais que outros”! Outra falácia
para enganar os animais quanto à semelhança com os humanos. Por conseguinte,
eles também precisam de muralhas que possam protegê-los dos inimigos. Mas a
ganância e a crueldade dos poderosos também se reproduzem nos animais, vítimas
de sua própria loucura, mesmo “esperando contra toda esperança”. No final, com
a expectação frustrada pela nostalgia de algum tempo distante, tudo parece
recomeçar do zero, de onde a esperança e a vontade de gozar da liberdade sonhada
brilham no horizonte de novas perspectivas de conquistas, de vitórias. Ou seja,
percebendo a impostação do conjunto da obra, a inspiração da racionalidade humana respinga no mundo dos animais, com desejos de superação de
si mesma na contraluz da irracionalidade
dos bichos em revolução. Mas é como diria La Fontaine: “Sirvo-me dos animais
para instruir os homens”. Com efeito, essa parece ser a legenda mais eficaz e
producente quando imaginamos que, pelo andar da carruagem, nós, os humanos, por
vontade própria de humanização dos bichos, escorregamos, pressurosamente, para
a animalização dos humanos.
Por fim, ousaria até dizer que estamos transitando da era dos humanos
para a era dos bichos, como já aconteceu em algum tempo e em lugares, bem
distantes, perdidos nas sombras inimagináveis da história. Pena que, quando
desaparecermos, por mais brilhantes e racionais que sejam os bichos – como
desejam algumas fantasiosas intuições acadêmicas, inclusive na área do Direito
em universidades modernas, do Brasil e do mundo – eles nada poderão dizer ou
contar da era dos humanos. Com efeito, quando estivermos esparsos e diluídos no
espaço sideral do esquecimento, nada mais seremos além de uma massa informe nas
lentes controversas dos próprios bichos. Quem viver verá quão irracionais
teremos sido nós, que teremos perdido para os irracionais, que nunca se
levantarão de suas patas nem conseguirão ser inteligentes como os humanos.
Sinceramente, na real, considero um grande risco o fato de os humanos tentarem
humanizar os animis, enquanto, ele mesmo, também parece [eu escrevi “parece”, o
que supõe incerteza e dúvida] se bestificar, animalizando-se. (PGRS)