quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

 

Desculpe-me pelo atraso...



O discurso foi breve, ligeiro, rápido, tranchant: “O curso acabou para mim. Apresentei o TCC ontem. Só falta pegar o Diploma. Sou Bacharel em Direito. Finalmente.” Era o meu amigo Robson, derramando sentimentos de conquista, de vitória e de euforia no canteiro das palavras. Deixou o recado completo! Mas as palavras também escondem aquilo que não dizemos, ou guardamos no movimento das emoções. A luta diária de quem esteve ao seu lado sabe o que isso significa: um gosto quase secreto de que tentar realizar os desejos da formação acadêmica custa desafios, suor, energia, lágrimas, acordar cedo e não saber bem em que direção olhar, etc. Mas são as exigências da vida que demonstram a grandeza de um homem.

Não desistir nunca, não se acomodar aos ditames das condições não favoráveis, resistir às tempestades ferozes da imprevisibilidade do caminho, tirar forças de onde parece não haver, buscar soluções imediatas no solavanco das intuições, tudo isso faz parte do processo. Mas, “desculpe-me pelo atraso...” Pelo atraso de quê? Por quê? Seria pela demora de minha resposta à dimensão emergencial de seu desejo de partilhar uma alegria que conquistamos juntos. Vidas paralelas, separadas pelo cordão cronológico da biografia individual, se cruzam nos ambientes sociais da coletividade, porém, cada um no contexto de seu próprio existir. Então, fiz do “desculpe-me pelo atraso” uma metáfora de reflexão sobre a vida, toda vida, qualquer vida humana.

Ninguém deve pedir desculpas pelo atraso. Não, pelo atraso da vida, porque ninguém atrasa na vida! Na verdade, é ela que nos leva por outros caminhos: pelos caminhos das incertezas, das inseguranças, do medo invisível que nos assalta, das portas quase fechadas ao imprevisível! Mas a teimosia dos sonhos, da busca da realização dos ideais, da esperança alimentada pelos horizontes interiores do coração, tudo isso vence a insuficiência dos recursos, a letargia do espírito desanimado, sem motivação, em virtude do esforço de sobrevivência, que não nos permite desistir jamais. Cada um no seu tempo, com seus limites, com sua determinação e vontade de vencer; cada um com seus desafios; cada um com sua história; cada um com as labutas próprias da sobrevivência humana, que exige provas de superação e vontade de ir sempre mais adiante, não obstante todos as adversidades do percurso realizado. Mas olhamos para trás contentes e agradecidos. De fato, “O retrovisor da história é um espelho que nos mostra um pouco do que somos. Evidentemente, essa perspectiva é limitada pela parcialidade com que vemos as coisas e as pessoas. Com efeito, a luminosidade de uma existência é bem maior do que as sombras eventuais que acobertam e escondem a plenitude da singularidade de cada ser humano”. (Santos).

Uns mais jovens, outros mais velhos, mais avançados nos anos, "os patinhos feios" da universidade também vencem o preconceito, a indiferença dos bastardos megalomaníacos do meio acadêmico, a hipocrisia do sistema, a pobreza de alma e da estatura tacanha dos fidalgos, "filhinhos de papai", que atravessam os olhos, querendo impedir o sucesso dos aparentemente mais fracos, desprotegidos, como se "a paridade de armas" não fosse um direito da justiça social equânime, que deveria se derramar também sobre os que ela pune já no nascimento, e até mesmo antes de serem concebidos. Nos cantos escuros da alma, a luz da esperança se acende com mais intensidade diante dos obstáculos, das intempéries da peleja, dos contratempos da quotidianidade. Na percepção de Ihering, “A defesa do direito é portanto um dever da própria conservação moral; o abandono completo, hoje impossível, mas possível em época já passada, é um suicídio moral”.

Estudar direito, como também tantas outras áreas do conhecimento, é um bom acinte para os gigantes, porque a ciência alimenta o sonho de todos os espíritos. Contudo, a cosmovisão do universo jurídico é ampliada pelo emaranhado de leis e vicissitudes sociais que, dia após dia, estende ainda mais as provocações das conquistas legais na defesa dos direitos e garantias fundamentais de todos. Desconhecer a Lei não significa estarmos privados dos direitos que ela nos impõe pela exigência irrenunciável de sua aplicação e eficácia, derramando-se igualmente sobre os deveres de fazer o bem e evitar o mal. Ou seja: “comissão” e “omissão” fazem parte da mesma moeda legal, cujos valores são impingidos para acobertar a dignidade humana de cada indivíduo na sua singularidade e de todas as nações no abraço de sua coletividade.

Na história pessoal de cada um, o preço dos louros é a força bruta das energias gastas no combate desigual. A solidão das inquietações existenciais, os dramas vividos ao sabor das sadias altercações jurídicas da academia, o acolhimento dos amigos, a compreensão dos colegas, a frieza da indiferença, tudo isso ainda concorre para as alegrias da vitória. A presença em sala de aula, a festividade dos encontros, os olhares desconfiados dos calouros ou da empatia dos veteranos, o auxílio necessário dos funcionários, a simpatia, a competência e amizade dos professores, de igual maneira, foram fundamentais para os passos que fizemos durante o curso. Também os goles inebriantes da convivência jurídica através das atividades acadêmicas, dos impasses, da indecisão do comprometimento com o grupo, foram essenciais na formação. A camaradagem nos botecos do saber, nas pesquisas acadêmicas, na gestação, pré-natal e nascimento dos TCC’s – ou de artigos científicos – agora estampam a gratidão da memória pelo que vivemos juntos.

Amigos se perderam no caminho ou morreram. Depois, veio a pandemia que nos roubou ainda mais uns dos outros, e veio também o desafio das aulas à distância, online. O mundo ficou de pernas para o ar, e cada um no seu canto, do seu jeito, com suas lamúrias, tentou encontrar a maneira certa para seguir, sobrevivendo ao caos sanitário que golpeou a humanidade, enquanto muitos desapareceram do planeta Terra. Ficaram a lembrança, a saudade doída pelo mal causado pela perda, a vontade de encontrar novas luzes para resistir ao que estava por vir. Mas vencemos! Estamos vivos!

Hoje, meu amigo é Bacharel em Direito, e, logo, logo, será chamado de Doutor, com a aprovação no exame e ingresso na OAB. Outros de seu tempo de universidade chegaram depois, mas a ninguém devem pedir “desculpas pelo atraso”, porque cada um é senhor de seu momento, de suas circunstâncias, de suas vitórias. O importante é não parar de lutar, porque o curso universitário da vida se fecha e se conclui somente na morte. (PGRS).