sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

 

Natal ou lero-lero?


 

Segundo uma frase atribuída a Santo Agostinho, “a ignorância é a mãe da admiração”. Certamente, assim, ele quis dizer que, quando, por alguma eventualidade da satisfação de nossa curiosidade, descobrimos uma novidade, o sentimento do espírito é de espanto, de fascínio ou de admiração. Em grego, a palavra certa seria “thambos”, uma estupefação. Trata-se, na verdade, do assombro que nos desconcerta diante do inevitável desconhecido que assoma no horizonte de nossa percepção e intelectualidade.

Infelizmente, no mundo pluricultural em que nos encontramos e vivemos, nem sempre o sentido dos acontecimentos encontram respaldo e apoio em nossas afirmações. Existe, de fato, o Natal? A quem ele serve como luz de inspiração e motivação para mudança de vida? Quais seriam os elementos ou ingredientes que poderiam nos conduzir à consciência de seu verdadeiro sentido, não apenas como propaganda de uma religião, mas, sobretudo, e soteriologicamente, como a fonte da dimensão mais profunda da salvação do homem, que não se delimita ao horizonte poeirento da terra? Com efeito, não somos apenas um ser imanente, cuja vida se rasteja no agora destrutível da transitoriedade do tempo, mas finca suas raízes na perene transcendência do eterno. Como diria Marie-Louise Guitton: “A vida passa, mas a eternidade permanece!” Tão triste seria se, de veras, toda a sublimidade da nossa vida na terra se fechasse na pobreza da materialidade que nos constrange à desilusão e à crença da tendência da finitude orientada para o caos, para o nada existencial da potência criacional divina! A expressão é da orelha de uma obra de Gizelda Morais (1939-2015), “A um passo do esquecimento” (2015), imortal da Academia Sergipana de Letras: “tudo criado jamais volta a ser nada”. Assim também é a criatura humana, obra-prima da criação.

Por conseguinte, diferentemente dos animais irracionais, mesmo se dotados de seus instintos e de sua maneira de percepção sensitiva, nossa vida – que, na realidade, está ligada à essência do eu mais profundo – se sobrepõe ao mero acaso da instantaneidade e se projeta no além transcendental. E é por causa dessa transcendência exponencial da criatura humana que o Natal tem sentido, que o Natal incide sobre a necessidade que todos nós temos de um Salvador. Até os ateus, ou agnósticos, ou descrentes, ou todos aqueles que se debatem na incongruência de suas especulações sobre o sentido do homem e do mundo, também eles precisam de um Salvador.

Basta, então, percebemos os sentimentos que nos invadem o espírito quando o medo da finitude nos assusta! Quanto tudo aquilo em que julgávamos acreditar esvanece e rui por terra no vislumbre de nossas aparentes seguranças ou certezas. Como acontecera com aquele teólogo protestante, que passou a vida inteira falando de Deus e das coisas do céu, mas que, na hora da morte, disse à sua esposa: “Passei toda a minha vida refletindo sobre Deus e sobre o além. Agora, porém, não sei mais nada! Exceto que, até na morte, estarei seguro”. De fato, é no momento extremo da morte que todas as nossas presunções caem por terra, no chão profundo das incertezas.

Depois desses tempos sombrios, dos quais ainda não nos libertamos, com o advento de novas variantes do coronavírus – agora, estamos sendo acometidos pelo ômicron, cujo nome é atribuído à 15ª letra do alfabeto grego, a fim de evitar confusões e preconceitos em relação às letras precedentes. Valeria a pena investigar a curiosidade dessa descoberta! De qualquer modo, o fato é que, voltando aos trilhos da reflexão natalina, não obstante todos os desafios das mortes, da saúde, da superação da pandemia, etc. etc., o mundo ainda segue adormecido, letargicamente mergulhado no nirvana entorpecente de suas presunções egoístas diante das maravilhas do Pai Criador. Ele é e sempre continuará sendo a Esperança radical de que precisamos para superar todos os males que nos afligem, também o da pandemia. Mas preferimos olhar de lado e seguir indiferentes aos apelos de conversão ao Menino-Deus. Mesmo assim, com toda a nossa indiferença, o Natal não é lero-lero!

Essa expressão – lero-lero – é muito usada no português vulgar, para nos referir a discursos do tipo “conversa-fiada”, sem muita credibilidade. No entanto, nem desconfiamos de que sua origem rebenta no vocabulário helênico e está presente no Novo Testamento quando do anúncio feito pelas mulheres na madrugada da Ressurreição de Cristo. Encontramos no Evangelho de São Lucas, no contexto da aparição do Senhor aos discípulos de Emaús: “Ao voltarem do túmulo, anunciaram tudo isso aos Onze, bem como a todos os outros. Eram Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago. As outras mulheres que estavam com elas disseram-no também aos apóstolos: essas palavras, porém, lhes pareceram desvario [do original grego: lero, que significa tolice, tagarelice, conversa fiada], e não lhes deram crédito”. (Lc 24,9-11). Trata-se, pois, da ação do verbo grego lereu, isto é, desparatar, dizer tolices. O contexto também esconde o pano de fundo cultural da época, em que as mulheres, as crianças e os escravos não possuíam valor social, de modo que, assim, não eram levados muito a sério. Enfim, “não lhes deram crédito!” (Lc 24,11). No entanto, precisou de tempo, para que os acontecimentos fossem empurrando a alegria da novidade da ressurreição de Cristo no coração dos discípulos. E eles acreditaram: “Vimos o Senhor!” (Jo 20,25). Não era lero-lero daquelas mulheres eufóricas diante da inaudito mistério do Ressuscitado. Portanto, o Natal do Senhor também não é lero-lero. É Deus, sempre de novo, perseverantemente, batendo à porta do mundo e do nosso coração com desejo de se fazer presença, consolação, esperança e, sobretudo, salvação. Porque Ele é o Salvador!

Olhemos para as necessidades da nossa alma, para as carências do nosso espírito, do espírito do nosso tempo, dos anseios da humanidade cansada de tatear em vão as satisfações mais intrínsecas e espirituais de seu ser mais profundo. Olhemos para as perdas cotidianas de pessoas, de amigos, de empregos, de dignidade humana, de sonhos, de ideais, de realizações...

Olhemos para a pobreza da manjedoura de Belém onde nasce para todos nós a grandeza da Salvação na vulnerabilidade de um infante, impotente, dependente, mas que é o Senhor Todo-Poderoso, Criador e Salvador do Céu e da Terra, de tudo o que existe. Amém. (PGRS).