Quaresma
tempo de penitência e conversão
“O
período quaresmal é momento favorável para reconhecer a nossa debilidade,
acolher, com uma sincera revisão de vida, a Graça renovadora do Sacramento da
Penitência e caminhar com decisão para Cristo” (Bento XVI) .
Todo
ano acontece, para todos os cristãos, o período do tempo da Quaresma, qual
fonte de espiritualidade e enriquecimento interior diante do Senhor que, vencendo
o “seu êxodo que se consumiria em Jerusalém” (Lc 9,31), carrega-nos sobre seus
próprios ombros em direção à plenitude da Páscoa da Ressurreição.
Por
conseguinte, nesse caminho de penitência e conversão, que é a Quaresma,
enquanto momento de forte apelo à mudança de vida e ao acolhimento da própria
vida de Deus, sobretudo manifestada de modo radicalmente novo e pleno em Jesus
Cristo, gostaria de apontar qual seria a nossa atitude diante de Deus como
manifestação do esforço de resposta e gratidão à incondicionalidade de seu
infinito amor. De fato, ao Deus que se revela, deve-se a “obediência da fé”.
Assim, nesse tempo forte de penitência, todos somos intimados a olhar com mais
generosidade e reconhecimento o amor de Deus por cada um de nós. Sob esse prisma
ou ângulo de reflexão, como é importante sermos humildes diante de Deus! E essa
humildade deve ser recomeçada e vivida cada dia, de novo.
Quando
o sol nasce e se levanta no horizonte de nossa existência, nosso olhar piedoso
deve erguer-se, à luz do “Sol nascente que nos veio visitar”, ao encontro de
Deus misericordioso, que não leva em conta os nossos pecados, as nossas faltas,
como tão bem nos recorda o salmista: “O Senhor é compaixão e piedade, lento
para a cólera e cheio de amor, ele não vai disputar perpetuamente, e seu rancor
não dura para sempre. Nunca nos trata conforme os nossos pecados, nem nos
devolve segundo nossas faltas” (Sl 103,8-10); ou ainda: “Senhor, se levardes em
conta nossas faltas, quem haverá de subsistir? Mas, em vós se encontra o
perdão, eu vos temo e em vós espero” (Sl 130,1-5). Trata-se de um dos cânticos
das subidas para a cidade Santa, Jerusalém, que Israel canta De profundis, clamando a piedade do
Senhor Deus.
Deus
torna os nossos pecados escarlates brancos como a neve, conforme o
reconhecimento da oração penitencial de Davi (Sl 51,9). Todavia, não obstante a
sua misericórdia, Ele pede que nos convertamos, pois Ele é implacavelmente
contra a hipocrisia:
“Quando
estendeis vossas mãos, desvio de vós os meus olhos; ainda que multipliqueis a
oração não vos ouvirei. Vossas mãos estão cheias de sangue: lavai-vos,
purificai-vos! Tirai da minha vista as vossas más ações! Cessai de praticar o
mal, aprendei a fazer o bem! Buscai o direito, corrigi o opressor! Fazei
justiça ao órfão, defendei a causa da viúva! Então, sim, poderemos discutir,
diz o Senhor Deus: Ainda que os vossos pecados sejam como escarlate,
tornar-se-ão como a lã” (Is 1,15-18).
Segundo
Austel, o vocábulo hebraico shānî
[“escarlata” do latim Quercus coccinea]
“[...] adquiriu um significado simbólico por ser utilizado em cerimônias de
purificação, como na descontaminação do leproso (Lv 14,4.6) e da casa do
leproso (Lv 14,49.52) e na descontaminação da impureza cerimonial em geral (Nm
19,6). Visto que shānî era a cor do
sangue, seria o símbolo natural para isso em tais cerimônias. A palavra torna a
aparecer em Isaías 1,18. Depois de dizer aos israelitas que a adoração que lhe
prestavam era inaceitável devido à manchas de culpa de crime de sangue nas mãos
do povo (v. 15), Deus fala que devem ser purificados e deixar de fazer o mal. O
versículo 18 é o convite que ele faz para a purificação. Ele removerá até mesmo
a culpa de crime de sangue, simbolizada por uma roupa tingida de escarlata. Por
mais impossível que seja [ou que pareça ser, aos nossos olhos humanos e
mortais], Deus torna a roupa num branco puro e brilhante, representando uma
retidão sem máculas (cf. Sl 51,7 [9]; Ap 7,4)”.
Portanto,
é a graça do Senhor quem nos acompanha, do nascer ao pôr do sol, se somos
solícitos aos seus apelos. E quando o sol no ocaso desaparecer, fazendo
precipitar sobre a noite da alma o véu da escuridão interior, renova-nos a
certeza de que, no dia seguinte, mais uma vez, e com intensa luminosidade,
brilhará sobre todos nós o Sol da justiça divina que nos recobrirá com a
infinitude de sua graça e presença.
O
verdadeiro caminho penitencial é aquele que nos conduz a Deus pela obediência.
E esse é o grande desafio de toda a nossa vida cristã. Aliás, Cristo veio
justamente para ajudar-nos nesse itinerário de retorno à intimidade com Deus.
Pela sua obediência, somos readmitidos no aconchego acolhedor do Pai do céu, o
Criador de tudo, e, de modo consequente, tornamo-nos configurados ao Redentor
de nossos pecados, Cristo Jesus. Falando sobre “graça e obediência à lei de
Deus”, São João Paulo II escreveu o seguinte: “Ao homem, permanece sempre
aberto o horizonte espiritual da esperança, com a ajuda da graça divina e com a colaboração
da liberdade humana. É na Cruz salvadora de Jesus, no dom do Espírito
Santo, nos Sacramentos que promanam do lado trespassado do Redentor (cf. Jo
19,34), que o crente encontra graça e força para observar sempre a lei santa de
Deus, inclusive no meio das mais graves dificuldades”.
O
pensamento do saudoso Papa vai na direção de uma vida totalmente pautada pela
abertura do homem à vontade divina. Portanto, o exemplo salutar é-nos
apresentado pelo próprio Filho de Deus, que disse ao entrar no mundo: “Eis que
eu vim para fazer a tua vontade” (Hb 10,7.9).
E ainda o contemplamos e o ouvimos nas horas derradeiras de sua agonia, ao fazer o desabafo realizado em meio às dores de sua aflição: “E dizia: ‘Abba! Ó Pai! Tudo é possível para ti: afasta de mim este cálice: porém, não o que eu quero, mas o que tu queres’” (Mc 14,36). O Evangelho de São Lucas revela Jesus colocando a sua vontade nas mãos do Pai: “Contudo, não a minha vontade, mas a tua seja feita!” (Lc 22,42). Com efeito, somente iluminados pelo testemunho de Cristo, somos capazes de, também nós, e, por nossa vez, levarmos adiante a exigência da plenitude da conversão e do desejo de profunda intimidade com Ele.