Araujo, o octogenário
Conheci o professor José Araujo Filho, o
octogenário, depois que ingressei no Seminário Menor “Sagrado Coração de
Jesus”, em Aracaju, no dia 14 de fevereiro de 1987. Há pouco mais de trinta e
seis anos. Àquela época, a CNBB havia instituído o chamado “ano propedêutico”,
com o qual Dom Luciano Duarte (1925-2018) concordou plenamente, em virtude de
que os estudantes vinham de colégios públicos e havia grande déficit de
inteligência ou de conhecimento. Éramos considerados como “tábula rasa”, isto
é, desprovidos do devido nível do saber para seguirmos no estudo do “Segundo
Grau”, como era apodado o hoje “Ensino Médio”, de modo que, por essa razão,
deveríamos parar um ano, aprofundando algumas disciplinas de cunho científico,
mas também eclesiástico.
Naquele comenos, Dom Luciano Duarte, que era um
exímio investigador das ciências filosóficas, teológicas e de outros saberes plúrimos,
inclusive preocupado do a visão rasteira que possuíamos da realidade
estudantil, requisitou, compulsoriamente, um grupo de professores intelectuais
de Sergipe, seus amigos, formados na Europa, para nos administrarem as aulas
preparatórias. Entre eles, estava o então ainda meio jovem professor José
Araujo Filho. Portanto, ali nascia a possibilidade da estrada aberta para o
conhecimento e a amizade com o dileto professor, que, às vezes, de perto, às
vezes, de longe, seguia o processo formativo que, no meu caso, durou onze anos:
quatro anos no Seminário Menor e sete no Seminário Maior, em Brasília, de onde
voltei, no final de 1997, para ser ordenado diácono e, depois, sacerdote.
No Seminário Menor, fui seu aluno de latim e de
língua portuguesa. Mas seu universo intelectual já abrangia um leque de
sabedoria filológica e de outros ramos da cultura erudita – história,
geografia, literatura clássica e moderna, entre outras – o que tornava interativa
e envolvente sua exposição em sala de aula. Desse modo, a semente de seus
conhecimentos fora plantada no coração de muitos seminaristas. Na dinâmica do
ensino do português, ele sugeria que lêssemos textos para melhorar a prosódia e
a compreensão do conteúdo, e todos participávamos, cada um por sua vez. Nunca
esqueci a frase que, por sorte, me coube ler numa daquelas experiências na
incipiência do aprendizado: “Ele espremia os olhos, porque não enxergava
direito!” Aquela expressão quase me chocou, pois era justamente o que fazia
quando perlustrava um texto. E foi Dom Luciano quem, um dia, descobriu que eu
era quase cego!
Habitualmente, o então arcebispo frequentava o
seminário menor toda semana, a fim de nos fazer uma palestra, e jantar com os
seminaristas. Sempre pedia que o Reitor, Pe. Raimundo Cruz (1941-2014), desligasse
a campainha e o telefone, porquanto ele desejava estar exclusivamente com os
seus pupilos. O caudal de conteúdo e a motivação que derramava sobre nós eram
algo apoteótico, mas também despertava melancolia e apreensão, porque ele fazia
muitas perguntas para as quais, dificilmente, encontrávamos resposta. Contudo,
era muito contagiante! Um dia, ele quis ensinar-nos uma música em latim,
escrevendo-a na lousa, para todos copiarem. Foi quando, depois de perguntar se
todos já haviam copiado, eu respondi que ainda não. No entanto, eu copiava do
colega ao lado e não da lousa. Percebendo-o, perguntou por que não escrevia
diretamente do quadro. Respondi: “Porque não enxergo direito”! Então, ele fez
uma brincadeira, quase me chamando de “cego”, e pediu ao Reitor que me
providenciasse, com urgência, um oftalmologista. Fiz os exames, e comecei a
usar os óculos! Nas leituras seguintes, quando o professor Araujo pedia, eu não
espremia mais os olhos! E voltei a ver o mundo mais festivo.
Pois bem, o tempo passou, conclui os estudos de
filosofia e teologia, fui ordenado sacerdote, e nossos encontros eram
esporádicos, mas sem nunca perder a possibilidade dos contatos. Em 2000 e 2001,
fui Reitor do Seminário Menor, e eis que o professor seguia ministrando aulas
de latim, participando ativamente das atividades acadêmicas da referida casa de
formação. Uma fileira inumerável de alunos, hoje, padres – e há um bispo, Dom
Valdemir, auxiliar de Fortaleza-CE – beberam da fonte cristalina de sua sapiência.
Ou, pelo menos, tiveram o privilégio de seu desgaste intelectivo, ao tentar
instrui-los com maestria e competência. Uma vez, tivemos a oportunidade de
sermos colegas de turma, durante uma semana, em São Paulo, na Faculdade
Assunção, num curso de hebraico moderno. Soube depois que um dos companheiros
de viagem, o obrigou a dividir com ele os gastos que eu teria naquela semana,
especificamente, com a hospedagem. Foi o bom velhinho, o Dr. Paulo Machado,
grande jurista sergipano, que depois se tornou meu aluno no curso de Teologia
do Seminário Maior da Província Eclesiástica de Aracaju. Ele que dizia: “Daqui
a alguns dias, Paulo Machado será Paulo Foi-se!” Era muito
espirituoso, e fazia esse trocadilho!
Bem mais tarde, em 2007, depois que eu voltei
de Roma, onde fiz o mestrado em Teologia Bíblica, na Pontifícia Universidade
Gregoriana, tornamo-nos colegas do Corpo Docente no já supracitado Seminário
Maior. E, assim, ao lado de outros intelectuais de grande envergadura
epistemológica, d’uma imensa capacidade de síntese gnosiológica – como era o
caso, por exemplo, do Pe. Gilson Garcia (1936-2020) – tínhamos diálogos francos
e frutíferos do ponto de vista da abrangência da formação acadêmica como
deveria ser o ambiente dos Seminários. Mas, como o saber de um homem não deve
se deter nos limites das ciências puramente humanas, o professor Araujo, desde
cedo, também se demonstrou afeito às moções do Espírito, fomentando no fundo da
alma o esteio da espiritualidade. Talvez, aqui esteja a essência do que veio a
se tornar o nosso amigo octogenário, que teve todos os estágios das estações de
sua existência alimentados pela ceiva do divino. E, com certeza, isso tornou
mais luminoso seu caminho, e ainda mais convincente a trajetória do testemunho
em relação aos que o cercam. Com efeito, é no silêncio e na solidão que o homem
tempera melhor seu estado de alma para alcançar os páramos da felicidade que
almeja. Melhor: “A verdadeira solidão será sempre o lugar do autoconhecimento e
da elevação espiritual”. (Galvão,
2019, p. 147).
De algum modo, mesmo elevando hoje muitas ações
de graças pelo dom de sua vida, inclusive na solene celebração eucarística, na
Igreja, a vida do professor Araujo poderia ser resumida como dom e partilha,
durante todo o seu passando. Assim, para concluir, recorro ao pensamento
do autor moderno, um sacerdote paulino, que nos ensina: “O amor de Deus esconde
uma plenitude que o amor humano não pode desvelar totalmente. Faz parte dos
limites de nossa humanidade. Contudo, essa limitada compreensão, não nos exime
do compromisso de multiplicar e partilhar esse amor no cotidiano da nossa vida.
A experiência do amor divino não pode ser algo que nos isole das contradições
do mundo, mas, antes, uma experiência que nos integra: à natureza, aos seres
humanos, à vida compartilhada. [...]. Amar é fazer a experiência de
despossuir-se continuamente”. (Galvão,
2019, p. 142).
Parafraseando ou quase repetindo Dom Luciano Duarte, o problema não é fazer oitenta anos, o grave é tornar-se octogenário, professor. Assim, pois, foi a vida do nosso amigo, agora, octogenário, que “se despossuiu” para enriquecer todos aqueles que, algum dia, estiveram ao seu lado, na vida, na escola, na universidade, na Igreja, no coração dos que o admiram e o amam. (Dr. PGRS, Aracaju, 11 de março de 2023).