Ousadia
Incendiária
Admira-me,
profundamente, a ousadia incendiária com que os muçulmanos reagem diante de
provocações de vilipêndio e desprezo ao profeta Maomé, figura emblemática,
importante e essencial de sua santa religião. Evidentemente, não quero com tal
afirmação, fazer apologia à violência furiosa dos adeptos de nenhuma religião.
Mas, cá para nós, a sociedade, incluindo nela, sobretudo, os meios de
comunicação social, com todo o arsenal de virulência, irritação e deboche,
deveria ter mais respeito com as coisas sagradas dos que professam a fé. De
fato, não defendemos a liberdade religiosa e a tolerância em relação aos
crentes?
Para quem não sabe, a figura de Maomé
tornou-se conhecida na História por fundar a religião que cultua o Deus Santo
no céu e venera na terra o seu profeta. Este surgiu no horizonte de nosso
tempo, lá pelos idos do século VII d. C. Um pouco de conhecimento sobre tal
personagem não faz mal a ninguém. Recorramos, pois à palavra de um exímio
historiador, que coloca na pena de seus registros a solenidade com que aborda
os mais variados assuntos no bojo de sua tempestiva argumentação: “O grande
acontecimento do século VII – aquele que mais havia de pesar sobre os destinos
do mundo – não se produziu nem no Ocidente, em vias de, bem ou mal, absorver os
bárbaros, nem no Oriente grego, que se debatia com as suas heresias e os seus
cismas. Teve por cenário uma cidade da Arábia onde um homem, condutor de
caravanas, foi pregar uma doutrina monoteísta. Da revolução religiosa que esse
homem suscitou iria surgir um novo poder, destinado a arruinar de um só golpe
todo o equilíbrio político de uma época. Nas regiões que até então só tinham
visto desfilar cameleiros e reizinhos, iria tomar corpo agora uma força
impetuosa, uma terrível ameaça, que acabaria por vibrar um golpe de morte no
predomínio milenar da civilização greco-romana. ‘Maomé constituiu a resposta
oriental às pressões de Alexandre’[Christopher Dawson]” (Daniel-Rops). E o
mesmo autor continua sua saga literária, desbravando-nos o estranho mundo de
Maomé, que, “tendo ficado órfão muito cedo, fora educado por um tio generoso,
mas sem fortuna, e vira-se obrigado a dedicar-se ao comércio das caravanas para
sobreviver, como, aliás, faziam-no geralmente os coraixitas [“tribo árabe à
qual pertencia Maomé”, Dicionário Aurélio]. Entrou para serviço de uma viúva
rica, Khadidja, e tornou-se em breve o seu homem de confiança e o grande guia
de suas caravanas. Assim pôde dispor de longas horas de reflexão e de sonho, ao
ritmo cadenciado do passo dos camelos” (Daniel-Rops).
Mais adiante, o referido autor chega ao que, particularmente, interessa-nos,
isto é, a Maomé como fundador da religião dos muçulmanos, depois de enfrentar
muitas dificuldades e resistências relacionadas aos judeus e aos cristãos:
“Convertido em chefe da comunidade mulçumana, al-Umma, e perante a intransigência dos cristãos heréticos e
sobretudo dos judeus que, mais belicosos, se recusavam a admitir a missão
profética de um gentio, Maomé acabou por estabelecer a sua doutrina
independente. Iria agora seguir um novo plano: a diplomacia e a guerra
passariam a substituir a pregação, difícil e aventurosa. Por intermédio de
Ismael, foi buscar a origem do Islão no próprio Abraão – que, conforme diz o
Alcorão [que significa ‘a recitação’], ‘não era nem judeu nem cristão' –, e a Kaaba passou a ser considerada como
fundada por esse ‘Pai dos crentes’ e consagrada ao culto de Alá. O muçulmano
voltar-se-á, pois, para Meca durante a oração, e não mais para Jerusalém” (Daniel-Rops).
Sinteticamente, a religião muçulmana
prega o culto ao único Deus da religião monoteísta, cujo nome em árabe é Alá, levando-se em consideração profetas
que vieram desde Abraão até Cristo, depois dos quais, por fim, foi enviado um
profeta de sua nação, Maomé. Portanto, “ser muçulmano – muslim, em árabe – significa estar submetido a Deus e abandonar-se
nele. Crede em Alá, o Único – repete o Alcorão –, e na missão de seu enviado
Maomé, e ireis depois da morte para o jardim do Paraíso, onde, deitados em
leitos de brocado, bebereis a água viva da fonte al-Salsabil, e gozareis das ‘huris’,
das ‘filhas do Céu’, ‘perfeitas como um ovo fechado e que ninguém, anjo ou
homem, terá jamais tocado’. Se não crerdes, porém, ireis para o inferno comer o
execrável fruto da árvore Zakhum, no
meio de chamas inextinguíveis” (Daniel-Rops).
Também foram acrescentadas cinco práticas religiosas rígidas, que o crente
dessa religião deve executar. São elas, brevemente citadas: a profissão de fé,
a oração ritual, a esmola, o jejum – no mês de ramadã – e a peregrinação a Meca,
pelo menos, uma vez durante a vida.
Na verdade, há coisas com as quais não deveríamos
mexer, sob pena de radical perseguição e intolerância, como preço do destrato e
da ridicularização concernentes à importância que elas significam para algumas
pessoas. É o que estamos vendo, atualmente, com o suposto “filme” americano, de
14 minutos, em que o profeta dos mulçumanos é citado no enredo. Acredito que
respeito quanto a questões tão graves quanto infames, não limita nem condiciona
ou até mesmo não fere a desejosa e sonhada liberdade de expressão. A prudência
é mãe de muitas virtudes. As reações violentas, como também já vimos em
episódios anteriores, mesmo se precipitados por equívocos e preconceitos,
demonstram a força e a convicção daqueles que não permitem que seu personagem
religioso mais importante seja levado à berlinda sob reflexos de acintes
difamatórios ou injuriosos. Eles são irredutíveis na defesa de seus valores e
princípios religiosos. Inclusive, há quem pense que uma das possibilidades para
desencadear-se a Terceira Guerra Mundial está relacionada às provocações
desferidas contra os muçulmanos. E eu não duvido disso! Claro que não estou
defendendo a fúria descontrolada de quem quer que seja, mas o incêndio da
oposição conservadora frente aos ataques de libertinagem e agressão aos súditos
de Maomé tem dado sinais de que eles levam a sério o seu profeta. Isso
mereceria uma profunda reflexão sobre como, sobretudo, nós católicos, parecemos
fazer pouco caso do nosso Jesus, que, sem dúvida, fundou a estranha religião em
que se prega o amor aos inimigos.
A maneira como Jesus é pintado, com
todas as cores e os sabores mais agressivos possíveis, com charges e discursos
provocativos de toda espécie, não deveria provocar em todos nós maior
indignação e defesa da nossa fé, da nossa religião? Os hereges modernos vivam
como quiserem, mas devem respeitar o nosso Cristo e a nossa fé. Por exemplo: a
Revista Veja do dia 26 de setembro de 2012, edição de número 2288, ano 45, n.
39, apresentou uma charge de Cristo crucificado, à página 85, tendo Maria
Madalena aos seus pés, sensualmente mal vestida, como se estivesse
oferecendo-se para Cristo, que lhe diz: “Hoje não, Madalena. Estou pregado!”.
Certamente, uma alusão ao despautério ou à asneira desmedida de quem ainda
pensa na possibilidade de Cristo ter se casado com Maria Madalena, segundo um
documento copta – um papiro do século II – apresentado em Roma, agora, no dia
19 de setembro, por uma arqueóloga. Porém, nós, como reagimos a tal
despropósito de acinte e provocação? No máximo, rimos achando engraçado,
enquanto a infâmia corre solta pela criatividade maligna de seus autores. Todavia, já pensaram se todos os Católicos do
Brasil, ou melhor, todos os cristãos, entre os quais também os evangélicos, a
partir dessa semana, não assinassem mais tal revista? Tenho certeza de
que eles perderiam muito e, da próxima vez, pensariam duas vezes, antes de nova
publicação absurda e provocante. Poderia ser uma reação incendiária, mas
silenciosa. Penso que valeria a pena. Assim, o inimigo seria derrotado pelas
suas próprias armas.