Com o Cardeal Carlo Maria
Martini em Jerusalém
“O
cardeal italiano e ex-arcebispo de Milão, Carlo Maria Martini, uma das grandes
figuras da Igreja católica e destaque da ala progressista, morreu nesta
sexta-feira (31/8/2012), aos 85 anos, informou o arcebispo de Milão, Ângelo
Scola”. Eis o breve discurso que anunciou o desaparecimento do Cardeal que eu
tive a alegria de conhecê-lo, quando de minha estada em Jerusalém, lá, pelos
tempos idos de 2005. Na, ocasião, éramos um grupo de estudiosos da Pontifícia
Universidade Gregoriana de Roma, que aprofundávamos o conhecimento da Sagrada
Escritura, palmilhando a terra de Cristo e visitando os lugares santos da
Jerusalém antiga. Coincidiu que, naquele momento, o Cardeal Carlo Martini,
Arcebispo Emérito da Arquidiocese de Milão, morava na Cidade Santa,
precisamente, no Instituto Bíblico de Jerusalém onde me hospedei.
Aconteceu
que, um dia, à noite, depois do jantar, tivemos
um frutuoso encontro com o Cardeal Carlo Maria Martini. Estando no Instituto
Bíblico de Jerusalém, fomos vizinhos de quarto. Era um homem de um raciocínio
límpido e transparente, como podemos constatar, também, através da leitura de
seus livros. Muito simples no seu modo de se apresentar, permanecia em
Jerusalém, onde vivia, mais ou menos oito meses do ano, fazendo o papel de um
intercessor pela paz na Jerusalém de hoje. Era ele mesmo quem se definia como
“a sentinela de oração nos muros da Cidade de Sião”.
Contou-nos um pouco de
sua experiência pastoral à frente da Arquidiocese de Milão e partilhou os seus
projetos de evangelização naquele instante. Quanto à situação de arcebispo
emérito, respondendo à minha pergunta, disse que não sofreu muito da reclamação
que ouvia outros eméritos dizerem. Pelo contrário, não se sentia ocioso e
continuava trabalhando como se não houvesse uma ruptura entre o ser e o não
ser. Além de se colocar como “intercessor”, também, recebia grupos de
peregrinos de Milão, quando iam em peregrinação pela Terra Santa. Sendo um
estudioso e exegeta, havia retomado o seu trabalho de aprofundamento sobre a
Sagrada Escritura, de modo especial, investigando o “Codex Vaticanus”, que teve
a imensa satisfação de apresentar-nos, por ser um dos documentos mais antigos e
completos que existem, do final do século IV.
Diante da complexidade
atual em que vivem Jerusalém e a Palestina, ele preferia não tomar partido, pelo
que julgava ser uma questão muito simples: cada uma das partes, em suas
motivações e razões, tinha razão. O problema da paz em Israel, segundo ele, só
teria solução quando as pessoas, feridas e machucadas, profundamente marcadas
por tantos males da estratificação histórico-sociológico-cultural, abrirem-se à
sensibilidade do outro que, por sua vez, também influenciado pelo mesmo vulcão
de sentimentos de vingança, raiva, ódio, intolerância e etc., deve abrir-se à
mesma sensibilidade e ao diálogo da paz, que não se faz sem renúncia nem a
capacidade de acolhimento do outro. Infelizmente, os dramas vividos pelos
habitantes da terra de Cristo, a Palestina, ainda são um desconforto, quase
insuperável, de desconfiança pela invasão de problemas que nascem da história e
se estendem pelos dias atuais. Tão confuso é o cenário, que qualquer palpite de
esclarecimento poderia incorrer na incerteza de nossas próprias convicções. Foi,
pois, dentro do horizonte desse raciocínio, que lhe respondi quando ele me
perguntou, num rápido passeio noturno pelo pátio do Instituto Bíblico, qual seria
a minha primeira impressão sobre Jerusalém: “Penso que a Jerusalém sonhada e
buscada no sonho de minha fantasia é muito mais bela do que aquela que eu
contemplo aqui com os olhos embaçados de tanta confusão”. Ao que ele despejou
seu comentário ligeiro e lúcido: “Começamos a entender alguma coisa quando
entendemos que não entendemos nada”. Nesse contexto, fizeram até uma
brincadeira quanto às expectativas de quem passa algum tempo na Cidade Santa:
“Se você passar um dia, pode escrever um livro, um mês, um artigo, um ano, e
você não tem vontade de escrever mais nada”, tal é a confusão de ideias e concepções
desencontradas no vislumbre da história passada e presente que acoberta a noite
incompreensível da terra de Cristo, em razão das turbulências crônicas vividas
pela sua gente.
Pelo
que me disseram em Roma, ele possuía uma equipe que sempre o acompanhava em
seus pronunciamentos e palestras sobre temas bíblicos, de modo que, depois,
confeccionava os seus livros e levava para sua aprovação. Nem mesmo ele tinha
consciência do título de todos os seus livros. No Pontifício Colégio Pio
Brasileiro, onde ele esteve para uma conferência, no final, levei-lhe um
opúsculo seu para autógrafo. Ele, sorridente, perguntou-me: “Esse livro também
é meu?”. Realmente, inúmeras são as suas publicações, geralmente, na área de
sua especialização, Sagrada Escritura. Sim, pudemos beber da fonte cristalina
de seu pensamento cristão, em profunda sintonia com seu desejo de dialogar com
todos, inclusive, com os não crentes. De fato, foi justamente nessa direção que
ele fundou, em Milão, quando estava à frente da Arquidiocese, a “Cátedra dos
não crentes”. Considerado pelos críticos polêmico e controverso em relação a
temas que poderiam ser revistos pela Igreja Católica, nunca deixou de expressar
suas ideias com a lucidez de suas convicções francas e abertas. Também era tido
como um dos dez cardeais mais papáveis da chamada “ala progressista” da Igreja,
e talvez tenha sido o mais influente dentre eles.
Na
singeleza de suas ideias, deixou seu legado espiritual e de renovação do
pensamento cristão em muitos livros escritos. Assim é a História da Igreja de
Cristo da qual temos a alegria e o privilégio de fazer parte sem, por isso,
desmerecer a parcela de contribuição de cada um que, com sinceridade de coração,
abre-se às moções do Espírito Santo e deixa-se guiar por ele para a edificação do
Corpo Místico de Cristo, que é sua própria Igreja. Descanse na paz do Senhor,
fiel soldado de Cristo! Descanse em paz, Carlo Maria Martini!
Descanse na paz de seu Senhor!