Santo Agostinho e seu itinerário
espiritual
segundo as Confissões
O
conteúdo inicial que desabotoa as linhas dessa reflexão colocar-nos-á, um
pouco, a par do itinerário espiritual de Santo Agostinho, um homem que se abre
para Deus, não se fechando no egoísmo de suas conquistas, intelectualmente,
pessoais, o que ele faz à luz da própria experiência vivida e confessada,
revelada e, de igual modo, descortinada ao longo de suas Confissões. Como já
dissemos, As Confissões contêm a mais
apaixonante aventura espiritual que a inquietação interior faz o homem
empreender: a busca mesma de Deus.
Na
conquista paulatina e cheia de peripécias, o bordejar infrene de suas
convicções pouco profundas, fá-lo-á flanar, talvez involuntariamente, por vias
que indicam as arbitrariedades do destino e as lufadas incessantes de ventos
contrários à verdadeira meta do espírito. É, pois, desse modo que uma alma,
mediante os bens criados, aí procura, ansiosamente, de ilusão em ilusão, de
sofrimento em sofrimento, de frustração em frustração, o único Bem que
corresponda à sua inquietação, até que, tendo-o, enfim, encontrado, ela possa
nele repousar em paz. É o que nos revela sua tão conhecida expressão, que
aparece já na primeira página de suas Confissões: “Fecisti nos ad Te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in Te”
(“Fizeste-nos para Ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousar
em Ti”. Nesse sentido de “confissão”, outros convertidos ilustres, tais como
Blaise Pascal, Maine de Biran, Newman, entre outros de grandeza e iluminação
testemunhal, também, escreveram-nos seu itinerário espiritual depois de Santo
Agostinho que, por primeiro, indicou-lhes o caminho.
Embora
As Confissões sejam um livro pleno de
Deus, ele também se revela um documento muito humano. Sob essa ótica, a estampa
de seu conteúdo ainda assegura o entretenimento e a atração de encontrar muitos
amigos. Na verdade, antes de ser um santo, Agostinho foi um homem como todos
nós, imbuído do espírito de seu tempo e das inquietações mais prementes da
mesma humanidade de que somos feitos. Conheceu as fraquezas mais comuns. Em
nada, As Confissões deixam-nos
ignorar sua sensualidade, tida como o último obstáculo à graça. Ele não foi
estranho a nenhum dos sentimentos da terra. A amizade lhe foi doce e ele a amou
até sentir, pela perda de um amigo, uma espécie de desespero. Sentiu o gosto
das lágrimas. Viu-se, loucamente, atraído tanto pelo saber quanto pela poesia.
Imaginativo e inquieto quando adolescente, revela-nos suas primeiras agitações
e emoções: “Nondum amabam...” –
“Ainda não amava!”. Nessa frase como em outras, ele mostra seu jovem devaneio,
nutrindo-se dos privilégios da poesia virgiliana, encantando-nos ainda hoje, quinze
séculos depois.
Da
primeira à última página, encontramos Santo Agostinho traçando, ao longo da
escalada espiritual, o desejo de Deus, numa abertura mais que voluntária,
atingida e solicitada pelo próprio Criador. Com efeito, o primeiro passo é, na
profunda convicção de sua parte, o reconhecimento de sua natureza humana, de
sua finitude, pois, segundo ele, Deus é quem o procura sem, contudo, nunca o
ter perdido. Assim, sua impetração é um frêmito da alma em busca de auxílio e
socorro: “Minha alma é morada muita estreita para te receber: será alargada por
Ti, Senhor. Está em ruínas: restaura-a!”. Como não descobrirmos, aí, o anelo de
Deus?! Santo Agostinho reconhece a graça divina atuando em sua vida, o que ele
agradece imensamente: “Como agradecerei ao Senhor por minha memória recordar
tais fatos, sem que isto perturbe a minha alma? Hei de amar-te, Senhor, hei de
dar-te graças e exaltar-te porque me perdoaste atos tão graves e tão maus. Sei
que pela tua graça e misericórdia, meus pecados se desfizeram como gelo ao sol,
devo à tua graça também todo mal que não pratiquei. A que ponto não deveria ter
chegado eu que amei o pecado por si mesmo, sem motivo? Senhor, proclamo que me
perdoaste todas as culpas, quer as cometidas voluntariamente, quer as que, por
tua graça, não cometi”.
Nessa
confissão, percebemos o quanto ele se esforça interiormente para convir que
tudo é graça, tudo é benção, quando suas disposições internas levam-no a
enxergar, no limiar do mistério, a luz que atrai, de modo irresistível, o olhar
dos virtuosos que, somente em Deus, justiça, beleza e inocência supremas,
satisfazem-se sem que jamais estejam saciados. Não será essa a perspectiva e a
direção de seu itinerário de conversão até que repouse eternamente em Deus?
Várias são as dificuldades encontradas no caminho. Sua rebeldia em relação à
religião de sua mãe o mantém afastado da graça que tanto almeja, mesmo sem o
saber, mas entregue aos prazeres que o mundo, sob múltiplas formas, algumas
mais convincentes que outras, apresentava-lhe. Contudo, é em busca da verdade
que ele se debate em suas inquietações interiores. Um dia, porém, a luz da
verdade brilhará com tanto fulgor sobre o raio tímido de seus olhos
espirituais, que lhe será difícil, com todas as forças da alma e da
inteligência, opor-se a ela. Com efeito, não era essa “beleza tão antiga e tão
nova” dentro dele, quando ele a procurava para si, que o estava conduzindo e
atraindo, mesmo se pelo chão da miserabilidade humana, numa experiência que
serviria de testemunho e consolo para tantos homens como ele, pobres e mortais
pecadores?
Deus
tem seus caminhos, sua metodologia, sua pedagogia, no intento de alcançar os
homens pela interioridade da graça que os atinge, misteriosamente,
convertendo-os ao seu amor gratuito e misericordioso. Segundo Daniel Rops, “se
alguma vez a alma humana deu a impressão de estar desde sempre ‘confiada à
guarda de Deus’ e de ser conduzida apenas por Ele e para o seu verdadeiro fim,
foi sem dúvida a desse rapazinho africano que a graça havia de tornar um
santo”. Ele, Santo Agostinho, que “amava amar...”