Dom Luciano Duarte e a
ousadia dos gênios
(1925-2018)
Se vivo fosse, nesse dia 18 de janeiro de
2023, Dom Luciano Duarte estaria comemorando 77 anos de consagração sacerdotal.
A admiração que sempre nutri por Dom Luciano Duarte (1925-2018) nasceu quanto
eu ainda era jovem vocacionado, e, depois, seminarista, no final da década dos
anos oitenta, participando dos encontros vocacionais no Seminário Menor de
Aracaju. Como esquecer aquele tempo e suas visitas frequentes aos seminaristas?
Pelo menos, para mim, foi um tempo de desejo ardente de florescimento
multicultural, ouvindo e aclamando, com tantos encômios dignos de sua
autoridade pessoal e eclesiástica, o então Arcebispo Metropolitano da
Arquidiocese de Aracaju. O fulgor de sua inteligência era, realmente,
contagiante. Portanto, o que trago aqui outra coisa não é, senão, um breve memorandum sobre o mítico de multifacetada
personalidade que ficou conhecido no meio intelectual de Sergipe e na própria
Igreja católica simplesmente como Dom Luciano Duarte.
Grande visionário, intelectual de profundo e
rico veio oratório e dialético, versátil na exposição vocabular de seu
conhecimento linguístico. O homem da palavra ligeira e cortante, da réplica
espontânea, no belo estilo polido da finesse
dos grandes espíritos argutos, sábios, mas também capaz de ajudar os menos
afeitos ao rico patrimônio do saber, da “sabedoria acumulada” de que fora
dotado pela própria natureza de sua insistência na formação do caráter e da
individualidade. Mas nada aconteceu por acaso, no sentido de que ele não tenha
se esforçado para atingir os páramos mais elevados da grandeza que a
envergadura de sua genialidade poderia lhe favorecer. Com efeito, a intensidade
da educação que recebemos pode tornar-se uma referência que determina, negativa
ou positivamente, a vida de quem se abre ou se fecha aos dotes cognoscitivos
dos próprios recursos que brotam dentro da claridade dos pensadores.
Grande estudioso, insaciável na ânsia pelo
saber, de raciocínio investigador, extremamente inquieto e saliente nos limites
das aquisições já adquiridas, Dom Luciano era um espírito sempre desejoso de ir
mais além, alfinetado pelas respostas prontas que trazia sob os riscos ou
traços da pena literária, lúcido até onde lhe permitiram os rasgos do
brilhantismo intelectual. Dom Luciano Duarte sabia se posicionar, de modo
categórico e certeiro dentro dos vários ambientes em que se encontrava, sob
qualquer tema ou assunto, mesmo não agradando nem convencendo. No entanto, estava
convencido de suas certezas, de suas convicções pessoais, fundamentadas no
fértil solo do conhecimento erudito de que se servia para expor seus
argumentos.
Embora o caráter e a personalidade de uma
pessoa possam crescer e amadurecer no tempo cronológico de sua formação
educacional ou acadêmica, levando em consideração outros efeitos da
conceituação antropológica do indivíduo – sua infância e adolescência, o meio
onde foi criado e educado, o acesso que pôde ter às letras e aos livros, a
oportunidade de leituras e elaboração do pensamento etc. – o fato é que algumas
mentes privilegiadas podem se destacar, desde cedo, mediante o mistério
inebriante da acuidade espiritual e intelectiva de suas percepções mais tenras.
Penso que isso tenha acontecido com o homenageado, Dom Luciano Duarte. Gênios
brincam como gênios, mesmo que o alcance de sua criatividade seja traído pela
não concretude de seus anseios na vida futura. Aliás, quem pode garantir a vida
futura? Ouvi um dia, numa pregação da quinta-feira santa, na missa do lava-pés,
Dom Luciano dizer que quase morreu quando criança, muito doente. Mas conseguiu
se tratar e sobreviver, e não apenas não se tornou mais um número nas
estatísticas do governo federal, aumentando o índice da mortalidade infantil no
país, mas, sobretudo – dizia ele – havia se tornado alguém importante e
influente no seio da sociedade sergipana e alhures. Na verdade, ele se referia,
no contexto da celebração, ao modo como, muitas vezes, o Senhor Jesus poderia
nos lavar os pés, servindo-se daquela maneira.
Nos vários “recreios culturais”, que tive e
tenho com a amiga Ana Maria Medina, da Academia Sergipana de Leras, ela me
contou que, num episódio narrado em seu diário
seminarístico, consta que,
numa brincadeira de menino, ele dizia que queria ser “gente grande”, no sentido da
importância de uma personalidade que se destacasse pelos seus talentos, numa
espécie de peça de teatro, o que ele escreveu aos onze anos. Desse modo, ele já se
colocava como aquele a quem todos deveriam obedecer, isto é, a “Dom Luciano
Duarte”. Certamente, adormecida nas dobras da alma pueril do menino levado,
inteligente, jazia o tom brincalhão de quem, futuramente, se tornaria, de
verdade, importante e influente. Esse fato, narrado por ele mesmo, fez-me
acordar dentro das lembranças da fantasia da alma, algo que li, por sua
influência, sobre Geovanni Papini, um dos tantos convertidos do século XX,
entre os quais podemos destacar também o filósofo Maurice Blondel (1861-1949) e
escritor Léon Bloy (1846-1917), sobre os quais ele falava com largueza de conhecimento
e riqueza de detalhes da vida dos dois.
Geovanni Papini, que dizia nunca ter sido
criança, sisudo na fisionomia do rosto, já era tratado e apelidado como
“velho”, aos sete anos de idade. Não brincava como as outras crianças de sua
contemporaneidade, mas, penetrado por uma inteligência brilhante e astuciosa,
rivalizava com o próprio Deus em peças de teatro que imaginava, querendo
concretizar o acontecimento bíblico de quando a serpente disse a Adão e Eva que
eles seriam como o próprio Deus.
Assim sãos os gênios e sua ousadia
intelectual, tempestivamente provocados por suas intuições mais profundas. Às
vezes, tento fantasiar em minhas especulações a ousadia da genialidade de
meninos assim, abertos aos ventos do espírito, com as asas da inteligência volitando
sobre os encantos de suas criações inocentes. Devaneios ou sede de
autoafirmação mesmo? Consciência plena dos caminhos de suas buscas ou enlevos
francos de sua esperteza em arrebatamentos idealistas? Não sei! Mas tenho
certeza de que as sementes dos grandes sonhos plantados na alma dos pequenos
gênios podem ser sinais de virtude, de coragem ou de desejo de realizações
oportunas. Contudo, a vida é o caminho dessas vitórias e conquistas, mas os
limites são os desafios impostos pela superação dos grandes ideais e aspirações
do espírito humano. Aquele menino virou padre e, depois, também Arcebispo da Arquidiocese
de Aracaju.
O tempo é o senhor de todos os sonhos! Para os
ideais daquele menino também. Levantando-se do chão pelo crescimento da força
física, mas também intelectual, seu caminho estaria marcado pela lucidez com
que, sempre, se embrenhou pelas florestas altas do saber e do conhecimento,
percorrendo o mundo pela construção acadêmica que a Igreja lhe abriu durante a
formação, porém ampliando, cada vez mais, o horizonte das inquietações que lhe
perturbavam o espírito. Não se deteve no conhecimento das coisas da Igreja,
apenas, mas igualmente se deixou desassossegar pela conjuntura mundial das
ideologias que, de um modo ou de outro, espezinhou e vilipendiou a dignidade
humana em conflitos revolucionários de governos caudilhistas e déspotas. Ele,
que costumava citar o pensamento de um pastor inglês, metodista, John Wesley
(1703-1791) – que dizia que, ao abrir a janela de sua casa pela manhã,
contemplava o mundo inteiro como se fosse sua paróquia – também saiu das
sacristias e elevou seu pensamento e suas preocupações sobre os telhados do
mundo em decomposição moral, espiritual, ética, deteriorando-se nos seus
valores mais prementes.
Outrossim, a alma dos gigantes não se contenta
com o mundo pequeno de suas percepções, mas com a grandeza e a elasticidade de suas
inquietações mais profundas. Não quis somente ser o padre ou pastor,
especializado nas coisas da Teologia e da Igreja, mas também se abriu para o
mundo, fazendo seu doutorado na Sorbonne de Paris, aos pés de grandes filósofos
e amigos como Jean Guitton e Paul Ricoeur, também egrégios inspiradores de
grandes ideais pela elevação espiritual da humanidade. (Dr. PGRS).