terça-feira, 3 de janeiro de 2023

 

Um padre na vitrine da Arquidiocese

 

 

Um dia, há muito anos, eu fui visitar o Pe. Raul com outro sacerdote que não o conhecia ainda, e ele ficou bastante entusiasmado com o reverendo. Depois, voltando para casa, ele me disse: “Rapaz, o Pe. Raul deveria ser colocado numa vitrine da Arquidiocese para admiração e inspiração do clero mais jovem e, sobretudo, dos seminaristas”. Contudo, infelizmente não é assim que, às vezes, a Instituição ver os padres mais avançados nos anos.

Eu tive o privilégio de ser coroinha do Pe. Raul, lá atrás, nos idos da década de setenta e oitenta, em Carira, e fui testemunha do seu zelo pastoral, ao dedicar-se incansavelmente ao pastoreio do rebanho que lhe fora confiado. Tanto que sou fruto de seu ministério sacerdotal naquelas terras tórridas e inclementes em tempos de seca prolongada, onde o duro chão nada fazia florescer, castigando, então, o sertanejo que até passava fome e tinha dificuldades para alimentar os filhos. Foram tempos sofridos no meio daquela gente, mas o Pe. Raul, no frescor da juventude sacerdotal, era uma motivação para a fé simples do povo. Carismático no sentido prático do evangelho, dedicado à cura das ovelhas, assistia espiritualmente, não apenas a sede paroquial, no caso, a matriz, mas se desdobrava para ir aos povoados, construindo capelas, pedido ajuda à própria comunidade, não deixando faltar-lhes oportunamente a missa nas localidades. Com ele, fiz a Primeira Comunhão! Também o acompanhei pelas redondezas, no verão, no inverno, nas estações de chuva, em meio aos riscos das estradas inundadas, etc. Ou seja, vi de perto seu desgaste pelo bem da comunidade.

Mais tarde, fui para o seminário menor de Aracaju, e, lá, fui seu aluno de latim, em 1987, quando ele se mudara para o Grageru, na capital. Na nova comunidade, assumindo a missão do pastoreio, igualmente revelou seus dotes como escritor e poeta, publicando livro de poemas. Homem da palavra fácil, ainda teve tempo de desenvolver a inteligência engenhosa para a pintura, uma obra de arte que exige criatividade e vislumbres pontuais da mente do artista. Pinturas em tela, com tinta; gravuras rabiscadas a lápis de cor ou apenas de grafite; tudo isso mostrava o gosto pela cultura polivalente que lhe rebentava na alma. Mais tarde, em 1996, voltou a Carira para preparar as minhas ordenações diaconal e sacerdotal. Fez tudo com muito carinho e generosidade, junto à comunidade. Seu “primogênito” tornava-se padre no dia 21 de janeiro de 1998. Há 25 anos!

Ao celebrar o Jubileu de Ouro Sacerdotal nos brindou com o livro “Cartas para Francisco”, em 2013, retratando, através de missivas endereçadas ao pobrezinho de Assis, suas preocupações pastorais no vicariato de Carira. Na verdade, um belo resgate de boas lições vividas como sacerdote. No final dessa obra, há uma coleção iconográfica de sua autoria que resume a história de São Francisco. Feita a lápis de cor, parecem figuras tridimensionadas pela percepção da acuidade do criador. Ainda há outras obras suas que não foram publicadas por falta de recursos pecuniários, inclusive uma que auxiliou muito a Ir. Morais na sua obra “Província Eclesiástica de Aracaju: Evangelizando para a vida” (2014). Sua colaboração foi muito valiosa, e a autora lhe agradeceu condignamente a generosidade da pesquisa.

Agora já octogenário, no dia 3 de janeiro de 2023, comemorou mais uma primavera, no alto de seus 86 anos de vida, e caminha para o sexagenário aniversário de ordenação sacerdotal, no dia 7 de julho do ano em curso. Vive numa casinha em Itabaiana, na solidão de seu peregrinar, ajudando no que pode às religiosas de um hospital, desgastando seus dias com alegria testemunhal e espírito de bom humor. Sim, sua pessoa deveria ser colocada na vitrine da arquidiocese de Aracaju, não somente para ser reconhecido como consagrado do Senhor, mas, também, elevado ao pedestal da dignidade do que foi sua vida derramada pela Igreja e pelos cristãos por onde passou. Enfim, um testemunho vivo, fiel e alegre do serviço ao Senhor. (Dr. Pe. Gilvan Rodrigues dos Santos).