quinta-feira, 18 de julho de 2024

 

O timoneiro mudando a posição da vela

 


Mudar a posição da vela é mudar também a direção do barco. Essa é, pois, uma das maiores responsabilidades dos timoneiros quando pressentem a necessidade de mudança em relação à pressão do vento. Certamente, a navegação sempre foi um fascínio dos velejadores no horizonte, não só das conjunturas dos ventos e das águas, mas também na esperança de novas descobertas. Talvez tenha sido por causa dessas circunstâncias, adversas e surpreendentes, que Cneu Pompeu Magno (106-48 a. C.) afirmara: “Viver não é preciso; navegar é preciso!” De algum modo, segundo a literatura moderna, essa frase foi popularizada e atribuída a Fernando Pessoa (1888-1935), poeta, filósofo e escritor português. Contudo, independentemente de quem tenha sido o autor, eis, então, uma bela metáfora existencial para muitas realidades humanas e, igualmente, eclesiais.

Na Igreja de Cristo, o simbolismo da relação entre o timoneiro e a barca tem muito a nos ensinar. Com efeito, foi dela que o próprio Senhor se serviu para imprimir um caráter temporal e divino, eterno, à sua missão no mundo. E foi, justamente, lá, à beira do Lago de Genezaré, onde ele começou chamando seus primeiros apóstolos. “Vinde após mim, e vos farei pescadores de homens!” (Mt 4,19). Portanto, foi naquele contexto que a barca de Pedro se tornou protótipo da Igreja. E ele mesmo, o Senhor, colocara-o como o primeiro timoneiro da embarcação que é a Igreja, que vai singrando, tempo adentro, tempo afora, sobre as águas impetuosas do mundo em direção ao porto seguro da eternidade. Como escrevera um autor moderno: “Bendita és a Igreja de Cristo, imagem do céu projetada na terra! A poeira de vinte séculos de caminhada não apaga o esplendor de tua face divina. Tu és bendita, hoje e sempre, porque em Ti está Deus, que não morre; está a palavra de Deus, que não passa; está o Reino dos céus que caminha para a sua plenitude. Assim como as olimpíadas passam de uma para outra a tocha viva que acende os ânimos, tu transmites, de geração em geração, a luminosa chama da Fé, até o fim dos séculos. E, quando findar o tempo, a mesma fé abrirá um caminho de luz que nos levará ao esplendor da claridade total, que nos emana da Face do Pai”. (Pe. Luiz Chechinato). De fato, a Igreja do Senhor, que planta suas raízes nesse mundo, possui um futuro de glória perene no Reino dos céus. No entanto, até chegar lá, como uma barca, ela precisa de rumo e direção, conforme soprarem os ventos e desatarem as borrascas de seus desafios e de suas consolações durante a travessia, ainda que nela pareça “entrar água por todos os lados”, como rezava, então, o Cardeal Joseph Ratzinger,  futuro Papa Bento XVI, na via-sacra do Coliseu em 2005.

Ao longo dos séculos, a realidade mística da figura da Igreja de Cristo tomou proporções cada vez mais profundas e firmes na certeza inabalável da promessa do Senhor: “... e as portas do inferno (hades) nunca prevalecerão contra ela”. (Mt 16,18). Constituída de homens, pobres e mortais pecadores, as águas do mundo – suas procelas, suas ideologias, suas heresias, sua teimosia burra em afastar-se de Cristo – não poderão, jamais, fazer submergi-la, porque o próprio Senhor é o timoneiro, supremo e por excelência, da embarcação que é a sua Igreja. No entanto, ele quis precisar e confiar aos Apóstolos a continuidade do serviço da evangelização no mundo, para converter os homens e atraí-los a si. É, pois, o que acontece em todas as dioceses do mundo inteiro através da sucessão apostólica dos bispos. Evidentemente, em proporções menores e à mercê da medida limitada de sua extensão territorial, mas com vislumbre na mesma essência divina e eclesial de todos os tempos, inclusive com todos os bispos da Igreja em união com o Santo Padre – Petrus hodiernus – o Papa Francisco.

Aqui, na Arquidiocese de Aracaju, não poderia ser diferente! Ou seja: nesses últimos tempos, depois de alguns meses de Sede Vacante, a Igreja Particular de Aracaju acolheu Dom Josafá Menezes da Silva, no dia 25 de maio recente. Ele veio, nomeado pelo Papa Francisco, a fim de dar seguimento aos trabalhos apostólicos da missão evangelizadora da Igreja no território da Arquidiocese. Assim, com serena tranquilidade, sem a pressa da urgência febril dos incautos, ele tem assumido o apostolado com firmeza e magnitude. Na verdade, a estrutura espiritual e psicológica das pessoas, sobretudo no que concerne às tarefas que lhes são confiadas – também na Igreja – revela a grandeza de sua estatura. Dessarte, enfronhando-se de corpo e alma nos trabalhos pastorais, conforme as exigências de cada momento, a Igreja cresce e se manifesta, luminosamente, viva e dinâmica aos olhos do mundo. E ainda: não é a nossa própria luz que deve ganhar força, mas a luz de Cristo, que deve resplandecer, sempre com maior intensidade, sobre a vida de todos os cristãos. Com efeito, a egolatria, não apenas não faz bem à Igreja, mas também torna as pessoas cegas e bobas, quase idiotizadas.

Nesse sentido, e consoante as necessidades sinalizadas pela direção dos ventos, o timoneiro vai mudando a posição da vela, no intento de que a barca da Igreja de Aracaju receba novos ares e avance em águas mais profundas. E, mesmo que a calmaria seja aparente, com sobriedade e paciência, na perseverança, com eutimia e paz na alma, o Arcebispo não promete “fazer maravilhas”, mas promete “trabalho”, como enfatizou na segunda reunião geral com o seu clero, no dia 17 de julho de 2024. Eis, portanto, o âmago administrativo e funcional para os novos tempos na Arquidiocese de Aracaju. Enfim, alea jacta est (a sorte está lançada), mesmo se também devemos nos lembrar de que alea non facit omnia (a sorte não decide tudo)! Quer dizer: Deus e os fatos precisam, de igual modo, da colaboração e da boa vontade de todos, tanto dos clérigos quanto dos leigos, unidos ao seu pastor maior, o Arcebispo Metropolitano da Arquidiocese de Aracaju, Dom Josafá Menezes da Silva. (Dr. PGRS).

 

quinta-feira, 30 de maio de 2024

 

Corpus Christi – o milagre de uma Presença



A cada instante do ciclo da história da humanidade, o milagre de sua Presença acontece pelas mãos de todos os sacerdotes que, obedientes à sua Palavra, celebram a Eucaristia. E, hoje, no dia da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, isso se realiza com devoção e adoração especiais ao Santíssimo Sacramento – o Sacramento dos Sacramentos. É um dia de louvor, de adoração, de pedidos, de gratidão, de reconhecimento da verdade do Senhor que prometeu estar conosco “todos os dias até o fim do mundo”. (Mt 28,20).

São as últimas palavras do Evangelho de São Mateus. Cristo desaparece, a fim de permanecer para sempre conosco. E ele foi buscar, ali, nos bens da natureza, os instrumentos de sua permanência entre nós. Um pedaço de pão, “fruto da terra e do trabalho humano”, e um pouco de vinho, “fruto da videira e do trabalho humano”, como o padre reza, silenciosamente, antes da consagração desses elementos primordiais, a “matéria” para a celebração do Santo Sacrifício da Missa. Com o milagre da transubstanciação das espécies do pão e do vinho, o Senhor vem e permanece no meio de nós, na discrição de sua Presença. E ainda queremos ver milagres! Que milagre maior do que esse pode existir sobre a face da Terra? Aquele mesmo Jesus de Nazaré, que cresceu no santo lar de Maria e José; que caminhou entre os homens, realizando curas e manifestando sinais do Reino; que atraiu o amor de alguns e o ódio de outros; que chamou um punhado de discípulos e apóstolos para estarem consigo; que lhes ensinou as coisas do Reino de seu Pai eterno; que foi perseguido, torturado e morto; que ofereceu seu corpo e seu sangue como cordeiro imolado, vítima de expiação por nossos pecados todos; que nos comprou com o seu sangue redentor para o nosso retorno à amizade com Deus, nosso Pai-Criador; enfim, que ressuscitou ao terceiro dia. Assim, depois de sua ressurreição alegrou aos discípulos com sua presença viva.

No livro dos Atos dos Apóstolos, São Paulo nos apresenta uma bela síntese da história da salvação, segundo os acontecimentos da revelação bíblica, que culminaram na Encarnação do Filho de Deus, o Messias, prometido e esperado pelas nações do mundo inteiro. Com efeito, Deus “suscitou-lhes Davi como rei, e dele deu testemunho: Encontrei Davi, filho de Jessé, homem segundo o meu coração, que em tudo fará a minha vontade. Da sua descendência, conforme a promessa Deus fez surgir a Israel um Salvador, que é Jesus. [...]. Pois os habitantes de Jerusalém e seus chefes cumpriram, sem o saber, as palavras dos profetas, que a cada sábado são lidas. Sem encontrar nele motivo algum de morte, condenaram-no e pediram a Pilatos que o mandasse matar. Quando, pois, cumpriram tudo o que estava escrito a seu respeito, retiraram-no do madeiro e o depuseram num túmulo. Mas Deus o ressuscitou dentre os mortos, e por muitos dias apareceu aos que com ele tinham subida da Galileia para Jerusalém, os quais são agora suas testemunhas diante do povo”. (At 13,22-31).

Esse é o mesmo Jesus Cristo presente na Eucaristia que adoramos! Aquele por quem “todas as coisas foram feitas” (Jo 1,3); “o Primogênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis” (Cl 1,15-16); o “herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos” (Hb 1,2); Aquele “por quem tudo existe e para quem caminhamos" (1Cor 8,6). Sim, Ele é o mesmo Jesus que está ao alcance de nossas mãos, dos nossos olhos e do nosso coração, nosso alimento de vida eterna. Ele, sim, é o dono do mundo, independentemente de o aceitarmos ou não. Ele é o antídoto contra nosso orgulho, nossa arrogância, nossa soberba, nosso indiferentismo e o nosso egoísmo. Por isso, no dia de Corpus Christi, todos nós somos chamados à humildade, ao reconhecimento do nosso Criador e Salvador, à adoração, à gratidão por seu imenso amor e misericórdia. Dobrar os joelhos diante dele significa também curvar o espírito à sua onipotência e majestade infinita. E mesmo quando tudo ao nosso redor parecer o caos, a derrota, o fracasso, o desequilíbrio interior ou mesmo exterior – como vemos no descontrole implacável da natureza sobre nós – Ele ainda é o Senhor absoluto de tudo e de todos. A Ele o louvor, a reverência, a prostração da alma em adoração.

De lá, na humildade dos sacrários das nossas Igrejas – mas também no templo do nosso corpo onde habita o Espírito Santo de Deus pela graça dos Sacramentos que celebramos e recebemos – está o Senhor da Eucaristia a esperar-nos, a acolher-nos, a olhar-nos no mais profundo de nós mesmos. Que essa certeza alimenta a nossa esperança, anime nossos passos, alegre o nosso espírito, tranquilize nossas inquietações e nos devolva a eutimia, a paz da alma, porque, nele e com ele, estaremos sempre seguros, mesmo quando as tempestades da vida parecerem ameaçar-nos. Ele é o nosso porto seguro, o nosso descanso e o nosso consolo espiritual. Amém! (Dr. PGRS).

quinta-feira, 23 de maio de 2024

 

Dom Josafá Menezes: uma luz no fim-início do túnel



No dia 25 de maio do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2024, a Arquidiocese de Aracaju receberá mais um Pastor, quer dizer, mais um Arcebispo. Sim, isso mesmo: um Arcebispo, que seja um Pastor! Fato é que sombras e dificuldades de todo tipo se estenderam sobre a Arquidiocese de Aracaju nos últimos tempos! Tempos tristes, sombrios e vácuos parecem ter acobertado, como um véu de escuridão e incertezas, a conjuntura eclesial da Igreja Particular de Aracaju, infelizmente! E não estou afirmando nenhuma novidade, porque quem procura inserir-se eclesialmente no contexto em que vive, sabe que luzes e trevas compõem a cotidianidade de qualquer instituição, seja religiosa, seja civil, seja política, ou de quaisquer outras naturezas, sobretudo por ser composta de homens, às vezes, frágeis, débeis, interesseiros, egoístas, quando não, ególatras mesmo! Mas, no caso da Igreja, a responsabilidade de um bispo assume um nível de coerência e adequação entre fé e vida, que exigem outros parâmetros de grandeza de espírito.

Testemunhar a fé professada e viver segundo as suas exigências requer mais do que boa vontade e espírito de sacrifício. Na verdade, requer uma dinâmica de virtudes e submissão aos preceitos divinos, o que demanda, no mínimo, retidão de consciência, volição ética e energia moral diante dos próprios apelos da missão assumida na Igreja, e, claro, isso vale também para os padres, os leigos, os religiosos, as religiosas, enfim, para todas as pessoas de boa vontade que, pelo imperativo da caridade de Cristo, decidem-se por se tornarem seus discípulos, respondendo ao doce convite do Senhor, que diz: “Vem e segue-me!”. No entanto, é correto afirmar que, nem sempre, aquilo que intencionamos fazer corresponde às exigências do que seria o ideal, como nos ensina São Paulo: "Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero" (Rm 7,15), de modo que, em são juízo, todos estamos sujeitos a isso, embora devamos nos esforçar para superar as fraquezas do caráter propriamente humano e nos doar mais quanto ao combate das forças da concupiscência que impera em nós, por causa do pecado. E disso todos nós somos vítimas, embora uns mais conscientes do que outros. Assim, num contexto profundo de vicissitudes pastorais e anelos de realizações mais profícuas, diante de tudo o que vivemos nos últimos tempos, Dom Josafá vem como um sinal de esperança para todos nós. Aliás, como afirmo na epígrafe do texto, “uma luz no fim-início do túnel”, porque ele chega num momento em que as trevas que pairaram sobre a conjuntura eclesial arquidiocesana ainda não passaram, e vão permanecer sobre nós por algum tempo mais.

A claridade do dia não chega tão facilmente depois das densas trevas que desafiam o sofrimento, as desilusões, as incongruências dos ideais da evangelização, a expectativa dos bons cristãos – porque infelizmente também há maus cristãos, que são contra testemunhos à própria fé – de modo que, tudo isso, transformado em esperança de bons tempos, deve ajudar-nos ao amadurecimento necessário à espiritualidade de uma Igreja que sofre no clero, nas ovelhas, nas dimensões pastorais e na ação evangelizadora, nas comunidades esparsas em sua circunscrição territorial e sobretudo espiritual, e assim por diante. Às vezes, a noite precisar durar mais do que desejaríamos, a fim de que possamos melhor identificar os pontos luminosos que anunciam a nova aurora. Deveras, quando vivemos dias em terra arrasada e minada em todos os sentidos possíveis das nossas esperanças, como numa guerra fria de interesses desencontrados e mesquinhos, podemos evocar dramas proféticos de onde pode renascer a reconstrução dos escombros deixados pelas intempéries do tempo ruim, que passa.

É quando o olhar tristonho do Senhor pousa sobre todos nós com desprezo: “foi esta a Jerusalém que coloquei no meio dos povos e em torna dela, as nações. Mas ela se rebelou contra as minhas normas, com uma perversidade maior do que outros povos, e contra os meus estatutos, mais do que as nações que estão em torno dela. Com efeito, os seus habitantes rejeitaram as minhas normas e não andaram nos meus estatutos”. (Ez 5,5-6). E outras palavras terríveis o Senhor derrama sobre a infidelidade de Jerusalém como expressão também da nossa infidelidade ao Senhor dos Exércitos. E o próprio Senhor se coloca contra ela. No entanto, Ele não é somente anúncio de desventura e destruição. Ele, de igual modo, é mensageiro de tempos alvissareiros, de reconstrução, de paz, de esperança, “sem visão vã nem presságio mentiroso”. (Ez 12,24). É o Senhor quem promete e age na edificação de seu povo, com o auxílio dos Pastores que ele coloca à sua frente, como modelo do rebanho e encorajador dos desaminados. A tempestade deve estar passando ou, quiçá, apenas começando, sob o impulso de novos tempos, que exigirão bravura e determinação, “coragem física e moral”, e valentia, para enfrentar os ventos contrários do que poderia ter ficado para trás, mas ainda nos assusta.

Dom Josafá Meneses da Silva, baiano, certamente um bom marisqueiro – vindo da Arquidiocese de Vitória da Conquista, no Sul da Bahia – seguirá a linha da sucessão apostólica na Arquidiocese de Aracaju, sendo o sétimo bispo e quinto arcebispo da sede arquiepiscopal. Bem-vindo à Arquidiocese de Aracaju! Nas mãos do Senhor estão os novos rumos da porção do rebanho de Cristo em uma parte das plagas de Sergipe, seu novel berço de amor e evangelização para o povo de Deus e também para o seu clero, com todos os padres – cada um na sua singularidade pessoal – que, na expressão do Concílio Vaticano II, são os seus “necessários cooperadores e conselheiros no ministério...” (Presbyterorum Ordinis, n. 7). Nossa Senhora da Conceição nos ilumine, nos fortaleça e nos guarde no seu amor maternal. Revela Domino opera tua, et dirigentur cogitationes tuae! (Pr 16,3).

 

Pe. Gilvan Rodrigues dos Santos

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

 

Jejum como atitude penitencial

 

O jejum deve ser fruto de uma necessidade penitencial no sentido profundo do desejo de conversão. Portanto, não se trata apenas de uma prática de dieta ou vontade de emagrecer por meio dele, embora nos tempos modernos muitas pessoas recorram ao jejum, buscando melhorar seu condicionamento físico, o que não seria um problema. Contudo, se essa fosse a intenção primeira de quem se dispõe a fazer algum tipo de sacrifício pela abstenção de alimentos, estaríamos muito distantes do propósito da reflexão, e ela nada teria a nos dizer sobre a necessidade da “humilhação da alma” diante de Deus, segundo uma das expressões judaicas relacionadas à prática do jejum que descrevemos. Todavia, o jejum que Deus pede do seu povo deve ser reflexo do comportamento mais condizente com o espírito do próprio jejum, isto é, ele deve expressar também práticas de paz e concórdia em meio aos irmãos. Essa é a razão da crítica dos profetas diante de atitudes meramente externas do jejum que não revelam o sentido profundo dos desejos do coração.

Na visão de Anselm Grün, que estudou profundamente os vários sentidos do verdadeiro jejum, “a discórdia nasce da ausência de medida, da dominação pelas paixões e pelos instintos. O jejum submete o ser humano à disciplina, liberta-o do domínio das suas paixões e, assim, proporciona-lhe a paz interior. [...] Desse modo, nos Padres da Igreja, evidencia-se continuamente uma compreensão do jejum que pressupõe a unidade entre corpo e alma. Eles nunca se preocupam simplesmente com a saúde do corpo, tampouco simplesmente com a cura do espírito”. (Grün, 2013, p. 30). Dentro dessa dinâmica que envolve a percepção do homem integral, “o jejum jamais é uma simples disciplina exterior, uma obra que podemos apresentar a Deus, e sim um exercício que visa conduzir todo o ser humano a um estado adequado. O jejum corporal tem que estar acompanhado de um jejum espiritual, ou melhor: o jejum corporal bem compreendido é sempre, ao mesmo tempo, um jejum espiritual”. (Grün, 2013, p. 31). Essa compreensão é muito significativa e está subjacente à dura crítica que Cristo faz aos fariseus, preocupados apenas com o ritualismo externo, que não permeia o espírito nem o motiva à conversão sincera. É o que acontece quando Jesus fala do fariseu e do publicano que subiram ao tempo para rezar. O fariseu se vangloriou tanto, inclusive por jejuar duas vezes por semana, que não voltou para casa justificado. No seu interior, se exaltava e desprezava os outros. (Lc 18,9-14). Qualquer pessoa consciente de suas atitudes sabe que adequar o corpo aos imperativos do espírito não é tarefa fácil. Podemos fingir diante dos outros, mas nunca disfarçaremos a aflição que carregamos dentro de nós pelos vendavais das incoerências que nos contorcem interiormente. Nesse contexto, a conversão é uma caminhada em direção a Deus e contra nós mesmos, contra nossos instintos e apetites, contra todas as frestas abertas na alma pela concupiscência que nos dilacera. Que tremendo desafio!

A “concupiscência” traduz, de modo negativo, todos os anseios do espírito que nos puxam para baixo, que não nos permitem elevar-nos à transcendência. A concupiscência é a casa dos nossos pecados. É o olimpo dos deuses infernais que nos perturbam, que nos desorientam no caminho da perfeição.

No contexto joanino, a “concupiscência” está relacionada ao desejo das coisas especialmente proibidas. Na verdade, esse é o terreno de nossas lutas, sobretudo, espirituais: vencer em nós o que contraria a vontade de Deus. Desse modo, epithymia e kosmos são termos correlatos, pois ambos participam do mesmo universo teológico do contexto soteriológico. Essa é a razão pela qual “o mundo em sentido teológico é o mundo como cenário do processo da salvação; ele não é somente o cenário, mas é um dos protagonistas do drama, pois o mundo é a humanidade decaída, alienada de Deus e hostil a Deus e a Jesus Cristo. Essa concepção é frequentíssima nos escritos paulinos e em Jo, menos frequente nas cartas, quase totalmente ausente nos evangelhos sinóticos. O mundo está em oposição a Deus: o espírito do mundo é contrário ao espírito de Deus (1Cor 2,12)”. (Mckenzie, 1983, p. 637).

Numa profunda reflexão sobre “Blaise Pascal, conversão e apologética”, Gouhier assevera que “a alma convertida encontra-se voltada para Deus. Ora, o amor de Deus só pode ser exclusivo; ele exclui, portanto, o amor de si. Essa é a própria essência da vida espiritual. Mas, na união propriamente mística, o amor de si desaparece com o eu; à ausência do eu corresponde um estado de indiferença a tudo o que lhe concerne: o amor exclusivo de Deus é também o esquecimento de si. Na perspectiva de Pascal, o aniquilamento proclama que a queda fez cair meu ser sob a cólera de Deus e que faço minha essa cólera: a conversão substitui o amor-próprio, que desde o pecado põe o eu no lugar de Deus, pelo amor de Deus [...]”. (Gouhier, 2005, p. 77). É, pois, justamente na direção da conversão, a metanoia, para usar a expressão grega, que deve nos levar o jejum, mesmo que haja quem defenda a abstinência de alimentos como um esforço de busca de si, de sua identidade mais profunda, o que é também evidentemente válido.

Na visão de Balbinot, por exemplo, “o jejum está relacionado à experiência humana intencional de privação dos produtos que suprem as necessidades fisiológicas. Por que se faria isso? Não seria uma ação conta a própria natureza infligir o castigo contra si próprio? O jejum é a renúncia voluntária de saciar-se fisicamente com a intenção de estar em maior sintonia com as questões ontológicas interiores, que determinam o sentido do ser. [...] o jejum, para muitas pessoas, não passa de um tempo de espera pela comida, quando, na verdade, deveria ser um tempo de reflexão sobre a vida e o ser. A fome não pode ser confundida com o jejum, pois é uma ameaça à existência. O jejum é ação pedagógica e espiritual que possibilita vivenciar uma situação de carência para entender e aprender a viver bem, mesmo em situações extremas”. (Balbinot, 2015, p. 48-49).

A santidade é outro apelo da Igreja numa trajetória de vida que dura a existência inteira, até o fim, até o céu. Por isso, no contexto da espiritualidade do jejum, abre-se, de igual modo, a senda dos desafios para a santidade nos conturbados tempos modernos.

Tanto quanto a oração, o jejum também deve nos conduzir a humildade, pois ele “nos confronta com nós mesmos, com todos os nossos desejos e necessidades, nossos sentimentos e pensamentos, com nossas sombras. Reconhecer as próprias sombras nos torna mais humildes. Além disso, o jejum nos conduz aos nossos limites. [...] O jejum nos confronta com nossa própria carência. Não somos suficientes para nós mesmos, não possuímos o sossego dentro de nós. Quem está sentado diante de Deus e sente fome sente também seu anseio de satisfação”. (Grün, 2013, p. 46-47). Numa palavra, pelo jejum, podemos reconhecer nossas insuficiências mais profundas e, assim, recorrer ao auxílio divino que nos plenifica, com o dom da graça sobrenatural. (Do livro “O sentido do jejum cristão, p. 47-56 – Pe. Gilvan Rodrigues dos Santos).

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

 

Trilogia Judaica – Cantos do Gueto (Sarah Gorby)

(Dos Arquivos do então Instituto Dom Luciano Duarte) 

 

Para fazer memória do dia em que Dom Luciano Duarte comemoraria 76 anos de ministério sacerdotal (18 de aneiro de 1948), gostaria de apresentar-lhe a “Trilogia judaica – cantos do gueto”, a que fui convidado a analisar quando ainda existia o Instituto Dom Luciano Duarte. Isso também fez parte do patrimônio cultural da personalidade de quem, por sinal, dentro de um ano, estaremos celebrando o centenário de seu nascimento (1925-2025). Portanto, ei-lo:

O universo cultural do homem sempre atravessa as fronteiras de suas percepções e sensibilidades, sobretudo quando ele está voluntariamente devotado ao enriquecimento das apreensões elásticas do saber erudito. Sem sombra de dúvidas, isso poderia ser dito sobre Dom Luciano José Cabral Duarte que nunca se deixou vencer pelas fatigas acadêmicas, por mais que as gavetas de seu espírito já estivessem ocupadas. Ainda bem que o conhecimento não ocupa lugar na inteligência como poderia acontecer com os bens materiais que acumulamos nas gavetas e dos quais, vez por outra, temos de nos desfazer! Mas isso é privilégio do homo sapiens que, pela artimanha da intelecção, projeta dentro de si o mundo exterior, maravilhando-se, assim, pelo fascínio das possiblidades de suas descobertas.

Convidado para analisar o conteúdo da Trilogia Judaica, que envolve Cantos do Gueto, Cânticos dos cânticos e Cantos judaico-espanhóis do século XVI, embalados pela voz cândida e solene de Sarah Gorby, o contexto histórico por si mesmo fala profundamente de um tempo em que os judeus viviam a experiência dolorosa de mais uma diáspora. Com efeito, é isso mesmo que o canto reflete no conteúdo doloroso de pais e mães que sofrem a tristeza do distanciamento dos filhos pela covardia da brutalidade humana com que são perseguidos, torturados, psicológica e espiritualmente, nas dobras mais recônditas e profundas da alma que silencia o grito sufocante do desespero.

Marcadamente o fato histórico de 1942, quando os judeus foram expulsos da Espanha, encheu de angústia e lágrimas a vida de muitos espanhóis dessa etnia, como tantas outras vicissitudes o fizeram ao longo dos séculos, o que se estendeu também pelo século XVI e até os nossos dias. Certamente, temos de recorrer a alguns dados históricos se quisermos adentrar no âmbito da situação judaica, especialmente do conhecido mundo sefardita, isto é, de toda a conjuntura que concerne aos judeus da Espanha. Segundo o Dicionário Enciclopédico do Judaísmo, em nossos dias, o judaísmo compreende dois componentes principais: o asquenaze e o sefardita. Os sefarditas deveriam tirar o seu nome do país onde viveram seus ancestrais na Idade Média, de modo que o termo sefardita designa tradicionalmente a Espanha. Trata-se, na verdade, de um hápax da Bíblia (palavra que aparece apenas uma vez), citado no livro de Abdias (v.20), que anuncia que os “exilados de Jerusalém, que estão em Safarad, tomarão posse das cidades do Negueb”. Portanto, para a crítica bíblica, esse topônimo se aplica, então, à cidade de Sardes na Ásia Menor, e os primeiros comentadores judeus se tornaram Safarad pela Espanha. Em 1917, sob o mandato britânico, estabeleceu-se a dualidade rabínica (ritual ou litúrgica) Asquenaze-Sefardita, de modo que todos aqueles que pela filiação não eram asquenazes pertenciam ao grupo dos sefarditas. Mais tarde, no encontro acontecido em Amsterdam, organizado de 14 a 17 de 1971 pela Federação Sefardita Mundial, tomou-se para si o pragmatismo israelense que apregoava a declaração de Élie Éliyachar: “Chamo Sefardim (plural hebraico de sefardita) todos aqueles que não são Asquenazim (plural hebraico de asquenaze)”. (W., Geoffrey et al, 1996, p. 1234). Quanto a esse último nome, também julgo necessário algum esclarecimento para os que não estão muito afeitos a tal terminologia. O dicionário Aurélio afirma: “Do hebr. ashquenazi, do top. bíblico Ashkenaz, posteriormente atribuído à Alemanha medieval.]”; e ainda: “Relativo a, ou próprio dos asquenazes, ou do judaísmo da Europa central e oriental”. Portanto, sem maiores detalhes, pois a intenção é a de tão somente situar a compreensão do leitor, esse grupo surge das numerosas comunidades originadas da Polônia, da Alemanha, da Holanda, da Áustria, da Tchecoslováquia, da Iugoslávia e da Grécia, entre outros países como o bloco da União Soviética (antiga), Romênia e Hungria. (W., Geoffrey et al, 1996, p. 1339). Voltando à conjuntura sefardita, que é a que nos interessa no momento, as mudanças comerciais, demográficas e culturais que sempre aconteceram antes e depois da expulsão dos judeus da Espanha, vividas entre as comunidades judaicas da bacia do Mediterrâneo permitem falar de “sefardização” e de “região sefardita”.

Já na Idade Média, mesmo que a civilização sefardita seja diferente daquela dos Judeus da Europa do Norte, ela está muito próxima dos Judeus da África do Norte e do Oriente, de modo que existe uma espécie de civilização comum a todas as comunidades judaicas. (W., Geoffrey et al, 1996, p. 1234). Consequentemente, esse mosaico de considerações apresentado teve por objetivo contextualizar melhor o sentido e a compreensão da Trilogia judaica ensaiada por Sarah Gorby. Nascida no ano de 1900, em Chisinau, capital, a maior e mais importante cidade da Moldávia, sua voz imortalizou “Les inoubliables chants du Ghetto”, um álbum musical lançado em 1976.

Perlustrando o conteúdo das músicas traduzidas para o português com títulos em espanhol e outras línguas, graças ao pequeno, mas significativo acervo adquirido por Dom Luciano Duarte, podemos intuir a grandeza da experiência transmitida pela voz de Sarah Gorby em tempos difíceis para os membros da comunidade judaica. Mas antes de adentrarmos em terras mais profundas da linguística judaica de cantos de sofrimento e de esperança, de contratempos e de arroubos de entusiasmo em meio às intempéries circunstanciais dos ventos poéticos, precisamos entender melhor o sentido do “gueto”, dentro do contexto da sinfonia histórica que, de algum modo, restringiu os judeus no círculo da persecução que os encerrou nos limites de seus próprios sonhos de realização e conquistas enquanto povo. Tudo isso vivido como fruto de barbáries que sempre fizeram diminuir a dignidade de culturas, civilizações e povos, esmagando a carne humana sob o véu de ideologias e crenças não salutares, mas perniciosas e, às vezes, extremamente nocivas à humanidade inteira. No Dicionário Aurélio, uma das definições apresentadas para gueto é a seguinte: “Bairro onde os judeus eram forçados a morar, em certas cidades europeias”. Um sítio da internet (http://www.superinteressante.pt/index.php?option...) apresenta a etimologia do termo: “Um gueto é uma área separada e habitada por um grupo étnico, cultural ou religioso, voluntária ou involuntariamente, em maior ou menor reclusão. O termo referia-se originalmente às judiarias e aplica-se, hoje, a qualquer zona que concentre um determinado grupo social. Provém da palavra do dialeto veneziano ghetto (fundição de ferro), devido à fábrica que existia no bairro onde foram confinados os judeus de Veneza, em 1516. De noite, o acesso ao gueto, situado numa das ilhotas da cidade e rodeado de canais, permanecia fechado”. Ou seja, na essência da significação atribuída ao vocábulo, trata-se de pessoas segregadas por circunstâncias variadas em relação ao contexto social em que vivem ou são obrigadas a viver.

No contexto das letras cantadas por Sarah Gorby, encontramos expressões e conteúdos tais como: “Nossa aldeia está em chamas e vocês ficam indiferentes, de braços cruzados? Nossa aldeia está ardendo, o vento penetra por todos os lados, ululando e tudo destrói. A salvação está nas mãos de vocês...”; “Chove no verão e cai neve no inverno. Vou andando sozinha, caminhando infeliz, sem destino... Todos os meus entes queridos desapareceram, mortos por forças demoníacas... e após tanto sofrimento, tantos horrores, após tudo isso... ainda devo fugir da Polônia”; “Quando te aproximares, todas as portas hão de fechar-se diante de ti. No lugar em que passares um dia, não poderás passar outro. Fecha teus olhos... Vai, procura uma rocha escarpada, senta-te e, sozinho, golpeia o peito com teus punhos... Raquel virá então te acompanhar em tuas lamentações...”; “Multidões expulsas de seus lares vão se arrastando através de campos poeirentos e manchados de sangue. Com o coração humilhado e os olhos repletos de angústia, as mães estreitam os filhos contra o peito... Mães aniquiladas pela dor e pais extenuados pelo sofrimento, curvados sobe o peso de uma tristeza infinita... Eles vão caminhando para a morte”; “Dorme, criança... Noite e chuva, noite e vento... Por caminhos encharcados, famintos como cães, espancados como cães, caminham eles... Dorme, criança, dorme. Para aonde vão? Só a noite sabe, só o vento sabe, pois ouviram os seus soluços e gritos lancinantes. Como colunas de sombras, vão andando. Dorme, filho querido, dorme. Noite e chuva... noite e vento...”; “Os incêndios foram apagados; contudo, o fogo que brota do meu coração ficará sempre aceso. A provação dolorosa que sofreu nosso povo dispersou pelo mundo os melhores de cada geração... As gerações perderam o orgulho e a alegria. Todavia, a guerra acabou”; “Não digas nunca que o caminho que percorres é o último porque pesadas nuvens o encobrem: o dia chegará e também a hora esperada. Hás de escutar nossos passos. Já estamos aqui! O sol da aurora iluminará nosso caminho. Os dias negros do passado desaparecerão com o inimigo. Nosso canto será entoado por todas as bocas; por isso, não digas jamais que é a tua última jornada...”.

Na verdade, os textos acima citados refletem, de maneira singular e profunda, a experiência inaudita de um povo que sempre carregou sobre os ombros da existência a estranha sina da perseguição, da depreciação, da violência mesmo. E nenhuma luz dialética jamais será suficientemente bem apresentada ou projetada sobre ele, de modo a iluminar os pontos obscuros de sua própria história. (Pe. Gilvan Rodrigues dos Santos, da Arquidiocese de Aracaju. Escritor e Advogado).


sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

 

Advento, Natal e  Ano Litútigo 

O Catecismo da Igreja Católica afirma que “ao celebrarmos cada ano a liturgia do Advento, a Igreja atualiza esta espera do Messias: comungando com a primeira vinda do Salvador, os fiéis renovam o ardente desejo de sua Segunda Vinda” (CIC, n. 524).

Essa é a motivação pela qual, de novo, queremos abrir as comportas do nosso coração para acolher o Senhor que vai chegar no mistério da Encarnação pela qual “a verdade do amor de Deus alcança o homem na história, convidando-o a acolher livremente essa novidade radical” (Papa Bento XVI). No âmbito desta “novidade radical”, a Igreja de Jesus Cristo retoma “o ciclo das [suas] festas essenciais que são o Natal, a Páscoa e Pentecostes”. (Dom Luciano Duarte).

O período do Advento coincide com o início do novo ano litúrgico, e também, chamado ano eclesiástico, que, em 2024, retoma a reflexão sobre o Evangelho de São Marcos, o ano “B”. Notoriamente, o começo do ano litúrgico não corresponde ao princípio do ano civil, o que acontece no dia primeiro de janeiro. Então, foi a partir do Concílio Vaticano II, que a Igreja de Cristo se enriqueceu com a meditação dos Evangelhos distribuídos nos chamados anos “A”, “B”, e “C”. Trata-se, respectivamente, dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, conhecidos na literatura bíblica como “os Evangelhos Sinóticos”. Essa distribuição dos Evangelhos em três anos litúrgicos foi um “dos frutos maiores do Concílio Vaticano II”. Tudo isso porque, como afirmara Dom Luciano Duarte, “a Igreja inteira vive, pende, está suspensa pela vida histórica de Jesus Cristo, e é celebrando esta vida histórica que a vida religiosa dos cristãos foi se desenvolvendo”. Em outras palavras, “o ano litúrgico é a estrutura que sustenta todo o mistério do culto cristão” (Matias Augé).

Essencialmente, do ponto de vista litúrgico, a vida da Igreja se desdobra no arco de tempo que vai do Advento até o último domingo do Tempo Comum – Solenidade de Cristo Rei do Universo – passando pelo Tempo da Quaresma, que culmina na celebração da Páscoa do Senhor. Dessa maneira, a vida do cristão é permeada por este “kairós” de Deus, o tempo da salvação que se chama “hoje”, que assume a plenitude no mistério da Encarnação de Cristo, extrapolando todos os limites e todas as dimensões do tempo e do espaço, invadindo, antropologicamente, todas as cavernas mais obscuras da imperfeição humana.

Numa atitude de abertura e conversão, todos somos chamados a mergulhar na graça da Redenção que nos é oferecida gratuitamente. Ela é a fonte da esperança de que fala o Papa Bento XVI na sua Carta Encíclica “Spe Salvi”, publicada no dia 30 de novembro de 2007, no Vaticano. “A redenção é-nos oferecida no sentido de que foi dada a esperança, uma esperança fidedigna, graças à qual podemos enfrentar o nosso tempo presente: o presente, ainda que custoso, pode ser vivido e aceito, se levar a uma meta e se pudermos estar seguros desta meda, se esta meta for tão grande que justifique a canseira do caminho”. (Spe Salvi, n. 1).

Falando da “transformação da fé-esperança no tempo moderno”, e fazendo uma retrospectiva histórica de momentos cruciais em que se tentou varrer Deus da convivência social para dar razão à ditadura de sistemas políticos e econômicos, o Papa afirma que “o homem não é só produto de condições econômicas nem se pode curá-lo do exterior criando condições econômicas favoráveis” (Spe Salvi, n. 21) e que, “para Deus entrar verdadeiramente nas realidades humanas, não basta ser pensado por nós, requer-se que Ele mesmo venha ao nosso encontro e nos fale”. (Spe Salvi, n. 23). E é, pois, esse encontro com Deus que queremos celebrar durante o Advento, e mais categoricamente no dia do Natal. Sim, aí, gostaríamos de experimentar, de modo pleno, a profunda satisfação do amor de Deus que nos supera em todas as nossas limitações. Todavia, para isso, o coração precisa ser dilatado, limpo e purificado. É o Papa quem afirma: “O homem foi criado para uma realidade grande, ou seja, para o próprio Deus, para ser preenchido por Ele. Mas, o seu coração é demasiado estreito para a grande realidade que lhe está destinada. Tem de ser dilatado”. (Spe Salvi, n. 32).

Citando Santo Agostinho, o Papa apresenta a bela imagem que descreve a “dilatação” do coração: “Supõe que Deus queira encher-te de mel. Se tu, porém, estás cheio de vinagre, onde vais pôr o mel?” Portanto, abramo-nos ao acolhimento festivo do Messias esperado, que chega, a fim de que rebente no nosso coração ressequido a alegria divina manifestada pelos pastores de Belém, pois, no “hoje” da nossa fé, nasceu-nos um Salvador, o Cristo Senhor. (Dr. PGRS, 2023).

terça-feira, 31 de outubro de 2023

 

A Solenidade de todos os Santos


 

“O Reino celeste é a morada dos santos, sua paz para sempre”. No dia 1º de novembro, celebramos, na Igreja Católica, a solenidade de Todos os Santos, que no Brasil se transfere para o Domingo seguinte, caso o dia 2 – comemoração de todos os fiéis defuntos – não caia em dia de Domingo.

Celebrar todos os santos significa alimentar a esperança de, um dia, também nós estarmos participando da plenitude da vida eterna, depois de vencidas todas as imperfeições de nossa humanidade pelo mistério da Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo. De fato, ele nos abriu o cominho de céu, e nos tornamos herdeiros de sua vida divina, concidadãos dos céus, da vida plena em Deus. Desse modo, “já não sois estrangeiros e adventícios, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus. Estais edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, do qual é Cristo Jesus a pedra angular. Nele, bem articulado, todo o edifício se ergue como santuário santo, no Senhor, e vós, também, nele sois coedificados para serdes habitação de Deus, no Espírito” (Ef 2,19-22).

Somente os santos poderão morar no céu! Portanto, todos somos convidados e intimados a uma vida santa diante de Deus e dos homens. A santidade é fruto da íntima e profunda união com Cristo, que faz resplandecer nos santos a glória de sua ressurreição. Ou seja, a santidade não é para os extraterrestres, como, às vezes, imaginamos. Não o é para os que vivem fora do mundo, nas nuvens imaginárias da alienação do cotidiano. Ninguém pode ser santo se não for dentro da realidade propriamente humana, vivendo as disposições interiores e espirituais na abertura transcendental que permite a ascensão para Deus. Quando Cristo pede que sejamos santos como o nosso Pai do céu é santo, isto é, perfeito (Mt 5,48), ela já está dando-nos a esperança de que isso é possível, com o auxílio de sua graça e a nossa abertura ao acolhimento das exigências e implicações que o desejo e a atitude concreta da santidade o pedem. Portanto: “A santidade cristã manifesta-se, pois, como uma participação na vida de Deus, que se realiza com os meios que a Igreja nos oferece, particularmente com os sacramentos. A santidade não é fruto do esforço humano, que procura alcançar Deus com suas forças, e até com heroísmo; ela é dom do amor de Deus e resposta do homem à iniciativa divina”. (Missal Dominical, 1995, p. 1367).

Nossos altares estão cheios do exemplo luminoso de pessoas que viveram na terra como se já estivessem no céu, totalmente impregnadas pelas maravilhas que Deus realizou em sua vida: “De fato, toda forma de santidade tem seu núcleo central na comunicação por parte de Deus, que irrompe na vida da criatura humana e efetua de modo criativo uma autêntica novidade interior. Na luz da transcendência divina, o santo é atraído a entrar em íntima relação com o Pai, participa de sua riqueza salvífica, vive suas exigências e torna-se uma incessante glorificação. Imerso na santidade do Pai e animado pelo Espírito, que é santo e santificante, o santo torna-se um hino de louvor e um sinal vivo da bondade divina para com toda a humanidade, pela riqueza de sua ação”. (Dicionário de Homilética). Contudo, a vida dos santos não é vivida sem as dificuldades impostas pelas limitações humanas dos filhos de Deus, mas, sobretudo, assumindo, na concretude da vivência cristã, todos os apelativos da vontade divina. Numa dimensão de fé, isso significa não se deixar perturbar pelas vicissitudes alheias aos desejos de controle do que nos escapa, mas tudo colocar, de modo confiante e abandonado, sob o prisma da providência divina. Para os santos, nada acontece sem a permissão divina, mesmo as situações aparentemente negativas, que causam aborrecimento e desgosto pelo entusiasmo da fé. Daí que os santos experimentam momentos de terrível escuridão interior, de aparente indiferença divina, de suspeitoso silêncio divino quanto às angústias desprovidas de consolações espirituais. De fato, quantos dissabores existenciais de questionamento perturbam a alma dos santos! Santa Teresa d’Ávila já dizia que não era de admirar que Deus tivesse tão poucos amigos por causa dos “maus tratos” com que Ele saúda os que dele se aproximam.

Desafortunadamente, o mundo moderno, tão materialista quando arreligioso, tem demonstrado um grave indiferentismo quanto às realidades sobrenaturais da existência. A ciência e a técnica tentam explicar tudo e, assim, não deixam espaço para o transcendente, embora o coração do homem jamais se satisfaça com os avanços tecnológicos ou científicos. Tudo isso pode favorecer uma faceta obscura do sonhado “humanismo”, mas não conduz à plenitude do homem desejoso de infinito. Na expressão do Papa Bento XVI (2009, n. 78).), “a reclusão ideológica a Deus e o ateísmo da indiferença, que esquecem o Criador e correm o risco de esquecer também os valores humanos, contam-se hoje entre os maiores obstáculos ao desenvolvimento. O humanismo que exclui Deus é um humanismo desumano. Só um humanismo aberto ao Absoluto pode guiar-nos na promoção e realização de formas de vida social e civil – no âmbito das estruturas, das instituições, da cultura, do ethos – preservando-nos do risco de cair prisioneiros das modas modernas. É a consciência do Amor indestrutível de Deus que nos sustenta no fatigoso e exaltante compromisso a favor da justiça, do desenvolvimento dos povos, por entre êxitos e fracassos, na busca incessante de ordenamentos retos para as realidades humanas”.

Portando, também dentro do horizonte das conquistas humanas, deve haver condições producentes em relação ao encontro entre o humano e o divino, a fim de que essas satisfações historicamente momentâneas não fechem o caminho progressivo da santidade ultra histórica porque nos leva a Deus. É permitindo que Deus – o Santo e Santificador, por excelência – participe da nossa vida terrena que poderemos ser agraciados pela participação futura da sua vida no céu, pois a vida no céu não será outra coisa senão a continuidade de nossa amizade com Ele vivida na terra. Com efeito, iluminados pela luz interior da fé – que é um dom da gratuidade divina – os santos conseguem contemplar um horizonte tão longínquo que poucos conseguem perceber. É, pois, lá, onde eles fazem a sua morada eterna desde o mundo sombrio da Terra. (Dr. PGRS)