Desfazendo o Tempo
Sábado, dia primeiro de setembro,
como diria Rubem Alves, desfarei quarenta e dois anos. Quem vive desfaz o
tempo, até que o próprio tempo desfaça-o, de uma vez por todas. De fato,
nascemos, crescemos e caminhamos em direção à morte. Três estágios da
existência que não são coincidentes, mas consequentes. Cada um desses momentos
chega depois do outro.
Nasci,
lá, no interior do município de Carira, em 1970. Orgulho-me disso. A certidão
de nascimento registrou-me no dia primeiro do mês de setembro, uma terça-feira.
Minha mãe diz que apareci no dia dez, que teria sido uma quinta-feira,
retrocedendo no calendário permanente. O povoado Carreiro, do município de
Carira, recebia no aconchego de uma casa pobre, simples e humilde, a presença
de uma criança, sinal de esperança e manifestação de alegria no lar de
Aristides Rodrigues dos Santos – conhecido por “Gileno Pedreiro” – e Helena
Barbosa dos Santos. Meus pais acolhiam mais um filho. Minha mãe estava sozinha,
e, depois, ficamos nós dois. A parteira chegou atrasada. Na roça, vivi até os
sete anos de idade. Caminhei por estradas cheias de poeira, no verão, e, de
lama, no inverno. Acompanhei o desafio da vida dura, quando meus pais já tinham
cinco filhos vivos, pois três já haviam sido defeitos no tempo. Iniciei o
contato com as letras. A educação começou cedo, antes dos seis anos de idade.
Aos sete, já morávamos na cidade onde crescíamos cercado dos cuidados paternos
e maternos.
O
horizonte de uma vida humana se descortinava no alvorecer de mais uma
obra-prima do Pai-Criador. Na qualidade de crente e cristão, e, sobretudo, de
sacerdote, não posso descartar a vontade divina sobre toda a minha existência.
Somente Deus poderia permitir-me chegar aonde cheguei e ser quem sou,
evidentemente, longe de pensar que tenha tido algum “fascínio” especial que me
impulsionasse a pensar na minha “grandeza”, senão no contexto extraordinário da
maravilha que é tudo o que Deus faz. Ele, sim, deve ser a motivação pela nossa
grandeza, ao contrário do que conceberia o Imperador Nero Cláudio Cesar
Germânico, do pedestal de sua suposta autossuficiência e arrogância. Ele que
dizia: “Nem mesmo eu estou em condições de resistir ao fascínio da minha
grandeza” (Eu, o deus Nero). Essa frase chamativa é a ironia estúpida de quem
se via brilhante à sua própria consciência, quando, na verdade, não passava de
um demente, de um tolo, quanto às intempéries inelutáveis da brevidade de uma
vida, propriamente humana, escorrida na celeridade do tempo como a água furtiva
que nasce da sua fonte e se precipita no redemoinho inexorável da efemeridade.
Desfazendo
o tempo, debruço-me sobre os porões de minha consciência para buscar, nos
lampejos de reminiscências longínquas, a efervescência de lembranças que me
permitam reconstituir a frágil estampa da cronologia que emoldurou a ladeira
inolvidável dos anos passados. A vida, por si mesma, rebenta como um milagre
florescido no sertão árido e seco, cuja coloração vai dando asas e credibilidade
aos embates emergentes da existência. E o contraste verde-escuro das belas
paisagens desabrocha dentro da alma como canteiros de esperança, como de
esperança deve ser o destino desconhecido de cada novo ser, de cada nova flor
vicejante na origem luminosa da nascente de sua aurora, de maneira que, muitos
assaltos da nossa alma podem precipitar-nos no esconderijo do que poderíamos
chamar “a inconsciência do tempo”. Mas, o que é o tempo? Não sei se, um dia,
encontraremos uma resposta satisfatória a essa pergunta. Ao longo dos séculos,
muitos se perguntaram sobre o que ele seria, sobre o seu significado e sobre a
sua dimensão na realidade concreta da vida dos homens: existe, realmente, o
tempo? Para adentramos no santuário do seu mistério, precisamos de tempo, ou
melhor, temos necessidade do tempo.
O
que é essa categoria humana, que nos permite viver tantas experiências, tantas
possibilidades de realizações na vivência concreta dos fatos, verdadeiros e
reais, que constituem o antes e o depois da História dos homens? Na verdade, o
depois chega à nossa consciência tendo passado, quase imperceptível, pelo crivo
da nossa inconsciência, ou mais categoricamente, pelos escombros de nossa
capacidade de consciência, enquanto plenitude da concepção de um fato que, só
depois de ter acontecido, pode ser reelaborado na imagem da visibilidade
momentânea de nossa fantasia, qual espécie de resgate da sucessão dos anos
decorridos. Somos o que somos no tempo, enquanto possibilidade de realização
tangível, captada pelo esvair-se dos fatos repentinos que morrem para deixar
espaço a outros. Nasci criança, fui menino, adolescente e tornei-me adulto,
homem, pois os acontecimentos não cessam senão no pós-limiar intenso e imediato
do último suspiro. E é provável que nem sequer tenhamos tempo para dizer, no
trepidar emocionante do derradeiro adeus: “Acta est fabulas!” – “A peça acaba
de ser apresentada”, ou se quiserem uma tradução mais livre, “o espetáculo
acabou” – como dissera Caio Júlio César Otaviano, o Imperador Augusto, ao
despedir-se do cenário conturbadamente dramático de sua vida. O tempo passa
rápido demais, e as lembranças da vida vão se perdendo no redemoinho voraz do
esquecimento.
Não
sem razão, a Bíblia afirma, embora na concepção dos ímpios: “Breve e triste é a
nossa vida, o remédio não está no fim do homem, não se conhece quem tenha
voltado do Hades. Nós nascemos do acaso e logo passaremos como quem não
existiu; fumo é o sopro do nosso nariz, e o pensamento centelha do coração que
bate. Extinta ela, o corpo se tornará cinza e o espírito se dispersará como ar
no inconsistente. Com o tempo, nosso tempo cairá no esquecimento e ninguém se
lembrará de nossas obras; nossa vida passará como uma nuvem – sem traços – se
dissipará como a neblina expulsa pelos raios do sol e, por seu calor, abatida.
Nossa vida é a passagem de uma sombra, e nosso fim, irreversível; o selo lhe é
aposto, não há retorno” (Sb 2,1-5).
Até
que o arco do nosso tempo se feche, definitivamente, fora dos ciclos solares e
lunares, dos dias e das noites, o que mais, então, poderá ter-nos acontecido?
Não sei! O próprio tempo no-lo dirá...