O Son[h]o da Cruz
Sempre me chamou
a atenção a beleza de uma imagem que descansava na parede do apartamento de Dona
Valdeci Guerra, no Bairro 13 de Julho, em Aracaju. Não era somente pela
novidade da figura que eu contemplava, ali, quando a visitava. Era, sobretudo,
pela expressão do cenário encantador que me fascinava. Esteticamente, talvez,
não fosse mais bela do que tantas outras representações que encontramos por aí
afora. Mas aquela possuía um toque especial pela grandeza da simbologia que
parecia envolvê-la de luz no vislumbre da possibilidade de uma oportuna
reflexão, como essa que nasce, agora, da contemplação repetitiva do gosto pela
arte sacra mais figurativa do que abstrata.
Nunca tive
coragem de pedir-lhe o objeto sacrossanto como recordação de sua amizade,
embora os comentários, vez por outra, fossem indiscretos sobre o quanto gostava
de perceber aquela visão misteriosa que projetava o olhar além do aparentemente
perceptível. Um dia, enfim, ela intuiu o interesse que manifestava pela obra, e,
então, ofertou-ma de presente. Contente e feliz, levei-a para casa onde posso
vê-la, sempre, sem ter de esperar a próxima visita. Sei que meus leitores já
estão curiosos, quiçá, tentando adivinhar do que se tratasse. Revelo-lhes,
pois, o segredo escondido nas palavras sobreditas: travava-se da figura do
menino Jesus dormindo sobre a cruz, com uma expressão tremenda de silêncio e
quietude! Sobre o que estaria sonhando aquele menino, que nem sequer crescera e
já estava repousando sobre o crudelíssimo instrumento de dor e de morte que o
abraçaria na vida adulta?
Comovente é pensar
nas possibilidades dos acontecimentos terríveis, nos pesadelos de suas
angústias, na atrocidade cruenta de seus futuros algozes. Estaria sonhando o
sonho de Deus ou as dores não merecidas de nossa humanidade ingrata e rebelde
diante de seu amor? Estaria ele com problemas tão graves e sérios que o
levariam a dormir, cerrando os olhos da indiferença para cair no sono que
adormece as dilacerações de nossa interioridade? Estaria ele com medo de
enfrentar o drama histórico de sua vida na terra, que iniciara com os percalços
da maldade desde sua infância, quando fora obrigado a fugir para não morrer
pela fúria dos senhores do mundo, representados em Herodes? Que sonhos tens Tu,
ó doce e belo menino, “o mais belo entre os filhos dos homens [?], a graça
escorre dos teus lábios, porque Deus te abençoa para sempre!” (Sl 45,3). Estaria
ele vendo, no fundo de sua consciência, os bilhões de crianças maltratadas
pelos adultos, sem esperança de sobrevivência digna no submundo perverso da intolerância
e da agressão física, verbal, sexual, de exploradores caninos? Tantas feridas
escondidas no semblante sereno e maravilhoso daquele menino poderiam revelar o dilema
da humanidade inteira, indiferente às necessidades dos pequenos, infelizes e sofredores
do planeta Terra.
Realmente, as crianças
não deveriam chorar a fome, a violência, o desprezo, a brutalidade assassina do
aborto, nem o peso escravo o trabalho precoce por causa da sobrevivência
material. As crianças não deveriam padecer o frio covarde da impaciência dos
adultos pelos sentimentos incompreensíveis de sua pueril e natural incomunicabilidade.
As crianças não deveriam ser traídas, na pureza de sua sensibilidade, pela
malícia dos corações mal intencionados dos que deveriam protegê-las,
defendendo-as das garras dos agressores. Como seria bom se todos nós pudéssemos
aprender do ensinamento de Cristo, que disse: “Deixai as criancinhas virem a
mim e não as impeçais, porque delas é o Reino de Deus. Em verdade vos digo,
aquele que não receber o Reino de Deus como uma criancinha, não entrará nele!”
(Lc 18,16-17). A impostação do pensamento de Cristo é uma resposta dura e
incisiva quanto ao comportamento dos discípulos, que tentavam impedi-las de se
aproximarem de Jesus, que acolhe a todos. E, no caso das “criancinhas”, elas são
apresentadas como modelo despretensioso de quem se dispõe a abraçar o Reino
trazido por Cristo, na sua Pessoa, pela sua pregação e anúncio da boa nova
mandada por Deus. Todavia, quem são, de fato, as “criancinhas” dos lábios de
Cristo? O aprofundamento exegético da palavra de Deus, contida na Bíblia
Sagrada, aponta para todas as pessoas que, como elas, demonstram “disposição mais
idônea para acolher o Reino de Deus”. Com efeito, segundo Angélico Poppi, as
crianças não eram levadas muito em consideração por conta de sua incapacidade para
compreender e observar a Lei [de Moisés], pois tinham necessidade de tudo e
dependiam dos outros. No entanto, Jesus as abraça com amor e ternura, não por
sentimentalismo romântico, mas porque vê nelas – como já foi dito – disposição mais
idônea para acolher o Reino de Deus. Por isso que, na percepção de nosso autor,
daí emerge mais claramente o fato de Cristo propô-las como modelo, não tanto
pela inocência ou outras supostas virtudes, mas pela total dependência dos
genitores, pela sua receptividade: eles não podem doar nada, mas podem apenas
receber. É, pois, assim, com atitudes de verdadeira impotência, que o discípulo
deve acolher o Reino de Deus, qual dom gratuito da bondade do Pai celeste. A grandeza
da proposta de Jesus, de igual modo, deve levar os discípulos modernos ao
reconhecimento humilde de que, depender de Deus, é colocar-se submisso à sua intenção
de amor e gratuidade com que ele quer acolher todos os homens, qual crianças atiradas,
num intenso ato de fé, no colo aconchegante do pai, que lhe dá segurança e proteção.
No texto original
grego, São Lucas usa o termo neutro “paidíon”,
que aparece 52 vezes no Novo Testamento, e significa, justamente, “menino”, “criança”.
Na abordagem de A. Oepke, a abrangência de sua compreensão lexical, originalmente,
está ligada ao vocábulo “paĩs”,
derivada da forma primitiva “paFis”. Sobre
vasos, havia a forma “paũs”, oriunda
da raiz pōu, pau, pu (pouco, pequeno)
[a partir da qual deu origem a outros termos latinos tais como: pauper, paucus, parvus, puer, pusus,
pusillus e puella]. Quanto à palavra “paĩs”,
geralmente refere-se ao gênero masculino, e quer dizer rapaz. Porém, relacionado
à idade, faz alusão a menino, isto é, a um moço entre 7 e 14 anos, mas
diferente de quem está abaixo dos 7 anos de idade, que coincide com o termo
usado por Cristo [paidíon], e do
jovem que se encontra na faixa etária entre 14 e 21 anos, designado, em grego,
pela termo “meirákion”. No NT, o vocábulo
paĩs, num significado mais
abrangente, também quer dizer “filho”, e seu diminutivo é paidíon, destacando um menino abaixo dos 7 anos. De fato, o termo
grego também indica a pessoa que possui a inteligência limita para as grandes abstrações.
Trata-se, pois, de alguém que, segundo a psicologia moderna, ainda não atingiu
o conhecido uso da razão. Já em outra concepção neotestamentária, o termo diz
respeito ao modo afetivo com que o pai espiritual dirige-se aos que lhe
foram confiados, a exemplo da maneira como Cristo Ressuscitado chama os seus discípulos
(Jo 21,5). As crianças de hoje ainda precisam do mesmo trato que Jesus lhes
oferece na narrativa do evangelho de São Lucas.