A Teologia do Evangelho de Marcos
O horizonte
teológico do Evangelho de Marcos descortina-se logo no início do Texto:
“Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1). Poderíamos
dizer que se trata de uma frase síntese que irá avançando em direção ao que, no
final, o próprio evangelista quer reafirmar de modo mais categórico e
convincente pela boca pagã de um centurião: “Verdadeiramente este homem era
filho de Deus” (Mc 15,39). Segundo Gnilka, “a profissão de fé válida é
pronunciada sob a cruz; isto confirma que apenas a partir do fim é possível
compreender Jesus”. Eis, pois, o Evangelho, a Boa-nova que o autor sagrado quer
anunciar com a chegada do Filho de Deus, Jesus, entre os homens. É a
instauração do “Reino de Deus” que se inicia com sua pessoa e suas obras.
Com ele, as
promessas antigas de libertação e a superação de todas as crises de fé do
Israel antigo, tornam-se mais evidentes e possíveis de concretização. Deste
modo, reconhecendo a soberania divina em meio a tribulações – o exílio provocou
grande frustração e desconfiança em relação às dimensões políticas e sociais no
âmbito da fé – a esperança passa a um grau mais espiritual, messiânico ou mesmo
escatológico. Por isto, a cristologia apresentada por Marcos está imbuída da
convicção de que, embora o Reino comece a se projetar já “na presença e
atividade de Jesus, em particular na sua comunhão de vida com os discípulos,
ele se realizaria totalmente somente na parusia gloriosa do Filho do Homem
(13,24-27). De fato, em Marcos prevalece uma ideia escatológica da basileia [Reino] de Deus” (Angélico
Poppi). Na verdade, a tensão entre presente e futuro marca profundamente o
mistério do fim dos tempos escondido no segredo de Deus.
Segundo
Fusco, o texto do Evangelho de Marcos desenvolve-se dentro de três “arcos
narrativos”, a saber: um primeiro arco narrativo (1,14-3,6): ainda que se
inicie com o chamado dos primeiro discípulos (1,16-20), vê-se em primeiro
plano, a relação entre Jesus e o judaísmo contemporâneo, descrito inicialmente
em termos de “estupor”, “maravilha”, “afluência de multidões” (1,21-45) e,
depois, em termos de hostilidade (2,1-3,6); um segundo arco narrativo
(3,7-6,6a): como cenário de prevalência, está o espaço aberto sobre a Margem do
Lago da Galiléia. Mais uma vez, Jesus opera e realiza milagres, maiores que os
precedentes, mas sem conseguir vencer a incredulidade de seus contemporâneos:
também esta sequência se fecha dolorosamente como a primeira, isto é, com o
insucesso de Nazaré (6,1-6a). Contudo, o fato novo constitui-se pelo emergente
grupo especial dos doze (3,13-19), depositário de um ensinamento privilegiado
(4,1-34). Doravante, Jesus vai reconhecer nos crentes sua verdadeira família
(3,20-35), mesmo que nele se revele todo o peso da cegueira humana, a qual
Jesus é constrangido a reprovar asperamente (4,13.41). E, assim, no contexto
narrativo, não se delineia a vitória nem da cegueira nem do esforço de Jesus
para iluminá-los...
Um terceiro e
último arco narrativo (6,6b-8,30), a “seção dos pães”, simboliza uma progressão
ulterior. Destarte, paulatinamente, a manifestação de Jesus atinge proeminência
no sinal da multiplicação dos pães, cuja repetição, também em território pagão,
já deixa entrever a participação dos pagãos à mesa do banquete messiânico, como
tão bem evoca, de maneira emblemática, a mulher siro-fenícia (7,24-30).
Todavia, a este alargar-se de horizonte, confronta-se seu restringir-se ou
concentrar-se, de modo quase obsessivo, sobre a relação entre Jesus e os doze,
obstaculizada, mais do que nunca, pela sua inaudita cegueira, o que lhes impede
a compreensão do verdadeiro sentido messiânico da multiplicação dos pães (6,52;
8,14-21). Por conseguinte, tal como nas outras seções narrativas, fica evidente
que ela se conclui com o mesmo insucesso, aliás, ainda mais grave, porque toca
de perto a própria cegueira e incompreensão dos doze. Mas, fechado nestes
circuitos medíocres e limitados da compreensão de seus seguidores mais íntimos,
escolhidos a dedo, a Jesus não lhe resta senão indicar o caminho da cruz, que
faz cintilar na esfera do aparente contrassenso, além de todas as trevas
interiores dos homens, a luz de sua verdadeira identidade. De fato, o horizonte
da fé dos discípulos não deve se fechar no círculo da compreensão triunfalista
de Cristo, enquanto apenas realiza curas e faz milagres.
A terceira
seção – ou “sequência” – depois de ter confirmado tão fortemente a cegueira
(8,14-21), quase a sublinhar a gratuidade e a grandeza do dom de Deus,
prossegue narrando a cura de um cego (8,22-26) e, logo depois, apresenta a cena
de Cesareia em que Jesus vem, finalmente, reconhecido como Messias (8,27-29).
É, pois, aqui onde se fecha a seção que se abrira, justamente, corroborando,
mais uma vez, a interrogação sobre a identidade de Jesus e mencionando as
opiniões das pessoas que viam nele João Batista, Elias ou um dos profetas
(8,27-29; 6,14-16). Assim, conclui-se toda a primeira parte da narração de
Marcos.
A segunda
parte do texto de Marcos, ainda conforme a exposição de Fusco e, evidentemente,
considerando as argumentações anteriores, seguirá em outra direção. Embora com
a transfiguração, a proclamação de Pedro receba a confirmação plausível por
parte da voz divina, no caso, a voz do Pai, a plena iluminação sobre o enigma
que envolve a identidade de Jesus, deve passar pelo mistério da necessidade da
paixão. Jesus vai à frente, convidando todos a seguirem seus passos (8,34;
10,21.28.32.52). Logo, para inverter a expectativa falsa suscitada nos
discípulos, três vezes, ele apresenta o anúncio da paixão (8,34; 9,31;
10,32-34). Apesar da rejeição em reações contrárias por parte dos seguidores
(8,32s; 9,32-34; 9,32-34), Jesus não desiste de suas claras exortações à
atitude coerente e determinada do seguimento: renegar a si mesmo, carregar a
própria cruz, estar disposto a perder até mesmo a própria vida (8,34-9,1);
fazer-se o último e o servo (9,35); fazer-se servo a exemplo de Jesus e doar a
própria vida por todos (10,42-45). Ao lado destas exigências de uma vida
totalmente mergulhada no carisma da generosidade de Cristo, outros ensinamentos
do Mestre de Nazaré invadem o contexto da comunidade primitiva que, na
preocupação de Marcos, deve estar imbuída do verdadeiro espírito cristão e,
portanto, da caridade do próprio Jesus. Na verdade, trata-se de situações que
permeiam a vida da comunidade, enquanto circunstâncias corriqueiras, mas que
não devem ser alheias à sensibilidade dos seguidores de Jesus: acolhimento aos
pequenos, atenção dispensada aos estrangeiros, exortações contra a discórdia e
o escândalo (9,36-50); matrimônio e divórcio (10,1-12); não distanciar as
crianças (10,13-16); pobreza e riqueza (10,17-31); o exercício da autoridade
como serviço (10,35-45).
O fato é que
a comunidade deve se inspirar no comportamento de Jesus. Suas atitudes, suas
escolhas de serviço, pobreza, humildade, tudo isto é proposto à comunidade
cristã qual critério de resolução de seus problemas e dificuldades. Em outras
palavras, o itinerário percorrido por Cristo torna-se o modelo comportamental
dos que o seguem. Quanto à cura de outro cego, que, uma vez tendo recuperado a
vista, seguia-o pelo caminho (10,46-52), assume uma conotação simbólica,
fechando a seção sobre uma nota de esperança: a cegueira poderá ser vencida, o
seguimento será possível, porque não é apenas o esforço moral do homem, mas,
também, é milagre de Deus e dom de sua graça, dom de sua infinita gratuidade.
Por isto que
o Evangelho se fecha com a proclamação do centurião diante do crucificado:
“Verdadeiramente esse homem era Filho de Deus” (15,39). É, pois, ali, aos pés
da cruz, onde brota para a Igreja pós-pascal a proclamação de fé no
Crucificado-Ressuscitado, cuja verdade deverá percorrer todos os caminhos da
terra e do coração dos homens, que se abrem ao processo interior de conversão e
resposta a Cristo e à sua proposta redentora.