As aventuras de um turista em Londres
Cheguei a
Londres justamente no dia 14 de agosto de 2014, sete meses depois do anúncio
que me fizera o Arcebispo Metropolitano de Aracaju, Dom José Palmeira Lessa. O
voo 246 da companhia aérea British
Airways, com mais de doze horas de atraso, nada elegante para a conhecida
pontualidade britânica, decolou exatamente às 05h42, pousando no Aeroporto de
Heatrow às 20h22. Era uma aeronave de grande porte, com assento para trezentos
passageiros, segundo a informação que colhi de uma comissária a bordo. Era a segunda
vez que pisava em terras londrinas para uma estada de duas semanas. Aos olhos
do turista brasileiro, chegar a uma cidade grande e desconhecida é sempre um
desafio patrocinado pela desconfiança e pelo medo. Ainda mais se ele chegar à
noite, a mãe do pecado, como diria Santo Agostinho. Como será a recepção na
alfândega? Que perguntas serão feitas? As malas serão revistadas? Felizmente,
fizeram-me só duas perguntas, carimbaram o passaporte e me deixaram passar de
modo livre e rápido. Depois, como fazer para pegar o transporte até o local de
pernoite e albergue?
Apesar de todas
as orientações que me haviam sido dadas pelo pároco da Paróquia onde ficaria
hospedado, com indicação dos meios de transporte mais fácies e baratos para
minha deslocação, preferi pegar um taxi. Coisa de turista medroso e
desconfiado. Logo ao sair do aeroporto, fui abordado por um senhor que, como
diríamos no Brasil, fazia o trabalho clandestino, carregando turista para aqui
e acolá. Não o aceitei. Ele nem era londrino. Procurei os taxis normais. Não
aceitavam que pagasse com euro ou dólar. Tive de fazer o primeiro câmbio –
troca de moeda – ao sair do aeroporto. Sem saber me expressar bem em inglês,
mostrei ao taxista o endereço e ele me conduziu até lá. Paguei em libras
esterlinas £. 75 Pounds como eles
preferem chamar. Um colega me disse que com esse valor, eu poderia muito bem
comprar uma passagem de ida e volta de avião para Roma. Fazer o quê? Depois de
muito rodar dentro do taxi londrino, o silêncio foi cortado por uma pergunta do
taxista. Não entendi nada. Mais uma vez, mostrei-lhe o endereço, e já estávamos
perto. Graças a Deus! Então, encontramos a Igreja de “Santa Maria dos Anjos”, situada na Artesian Road – Rua Artesão. Na obstante o verão europeu, podíamos
sentir o vento frio da noite batendo à pele e cortando o cansaço do calor
nordestino e a distância da viagem. Com as malas no chão, apertei lentamente
todos os botões da porta para ver se apareceria alguém para me atender. O
silêncio era profundo. Nada se ouvia de dentro para fora. Esperava que uma
pessoa me acolhesse. Esperei mais um tempo. Pensei que fosse dormir na rua, o
que não me parecia um problema, pois não estávamos no Brasil, mesmo que a
mentalidade de brasileiro nos persiga alhures. Um padre gentil me atendeu e depois
sumiu. Fui levado até o quarto onde permaneceria por duas semanas em Londres.
Agora, era só descansar e esperar o alvorecer do novo dia. Calmo e tranquilo,
ainda se sobressaltado com a saída do Brasil onde deixei meus pais chorando de
saudade e tristeza – “saudade e tristeza”, dois dos sentimentos que mais tempo
repousam no fundo da alma – deitei para dormir e descansar. Não tenho
dificuldade para dormir em nenhum lugar, contando que seja dentro de casa. A
noite foi breve. No quarto onde me hospedei, encontrei um porta-retratos com
uma inscrição que fala do Cardeal Henry Edward Manning, que ali habitara
durante oito anos, de 1857 a 1865, como Reitor das Oblatas de São Carlos. Mais
tarde, ele escrevera: “Os oito anos em que eu estive em Santa Maria dos Anjos
foram os mais felizes da minha vida. Meu nome sempre estava sobre a porta, e
nunca me senti tão em casa como quando eu estava naquele pequeno quarto”.
No dia seguinte,
15 de agosto, conheci alguns padres chilenos e colombianos que também estavam
hospedados na mesma Paróquia. Um deles se demonstrou muito sensível e cordial,
e ajudou-me a organizar os dias com passeios, como preparar a comida, lavar as
roupas, tomar transportes, enfim, de que modo que eu poderia não tornar os dias
monótonos e cansativos durante minha estada em Londres. A primeira vez que saí
com um amigo brasileiro e voltei sozinho, cheguei à estação Notting Hill Gate, perto de casa, e não
sabia onde estava ou que direção tomar. Senti-me perdido. Quase bateu o
desespero. Sem o número de telefone de ninguém, sabia apenas o nome da rua
porque tinha decorado. Tentei pegar um taxi à moda brasileira, acenando com a
mão. Ninguém parou. Tentei acalmar-me e fui arriscar meu inglês com as pessoas
na rua. Pedi informações sobre a Artesian
Road, e me disseram que não estava muito longe dali, mas que me informasse
melhor. Fui adiante, encontrei um rapaz fumando. Repeti a pergunta, e ele me
respondeu com seu inglês invejável afirmando que pegasse a primeira à esquerda
de onde eu estava, caminhasse uns dez minutos, que estaria lá. Foi o que
aconteceu. Como reza o ditado, parafraseando-o, “quem tem boca também vaia a
Londres”. A vida do turista é assim cheia de aventuras, encontros e
desencontros que valem a pena pela coragem com que ele se dispõe a sair da
mesmice e invadir o mundo desconhecido do lugar que o cerca. A Inglaterra como
Londres, a sua capital, é um foco de história, civilização e cultura onde muito
tempo é sempre muito pouco para atingirmos as razões profundas da escalada
cosmopolita que a conduziu ao que ela é hoje. A história é longa demais como a
de todos os povos.
Aqui, a história
do Cristianismo também encontrou uma maneira diferente de tentar encarnar o
espírito evangélico longe da vontade de seu Fundador. Uma maneira errada de conceber
a potencialidade de todos os caprichos humanos diante da fantasia da fé que não
respeita Deus como centro e epicentro da felicidade querida para a Sua
criatura. Enquanto mais o homem se volta para si mesmo mais ele se distancia de
Deus. É a cidade terrena que corre para sua plenitude transitória e se debate
na libertinagem que a fecha para a cidade celeste. O palco civilizatório das
vontades humanas apresenta rachaduras que fizeram conspurcar a face da Igreja
do Senhor como acontecera com os cismas históricos ao longo dos séculos.
Renunciamos à Sua vontade para fazermos a nossa. Recentemente, o Papa Francisco
recebeu no Vaticano um grupo de bispos da Igreja Anglicana e entre eles se
apresentaram algumas sacerdotisas – mulheres ordenadas sacerdotes – para
escândalo dos cristãos da Igreja de Roma. Um verdadeiro desrespeito para com a
Igreja Católica e o Santo Padre na concepção de alguns analistas. O editor de
um jornal inglês afirmou de maneira irônica que aquele seria um dia
historicamente muito importante para o ecumenismo. Terra de santos e de
mártires, a Inglaterra deve muito ao catolicismo romano. Visitando a esplêndida
Abadia anglicana de Westminster – que fora templo católico – fundada no século
X, quando a maior parte dos cristãos da Europa ainda aceitava a autoridade da
Igreja Católica Apostólica Romana e do Papa, a sensação que nos penetra a alma
é a de quem se sente espiritualmente desconfortável pelos abusos doutrinários
que suplantaram os ideais do próprio Evangelho de Cristo que quis sua Igreja
unida e não separada por tantos credos e profissões de fé.
A verdade é que
o desmantelo da Igreja Anglicana, vista por quem a contempla de dentro, com os
respingos sobre quem a olha de fora, torna-se cada vez mais evidente depois da
ordenação das mulheres, da consagração de bispos abertamente declarados gays, e
de tantos padres que se converteram ao catolicismo romano. É certo que a graça
e o pecado estão por todos os lados, mas não é a deliberação pessoal de ninguém
que vai dizer certo ao errado, bem ao mal, verdade à mentira, luz às trevas,
visão à cegueira, santo ao profano, divino ao satânico, e assim por diante,
pois tais definições não fazem parte das concessões, conveniências ou
presunções pessoais de nosso arbítrio. Tal discernimento é divino e, não,
humano. Com efeito, seria bom demais para a concupiscência humana se assim o
fosse, de modo que, nenhuma falta ou mesmo nenhum pecado nos fosse imputado.
Porém, desse ponto de vista, que sentido e que valor teria a própria redenção
apresentada por Cristo ao Pai em favor da humanidade? Esse é um drama religioso
que nossa consciência nem sempre quer aceitar. Não somos salvadores de nós
mesmos. A salvação eterna vem de Deus por meio de seu divino Filho Jesus
Cristo. E isso vale para todos, crentes e não crentes, judeus e não judeus,
gregos e troianos, em qualquer tempo e lugar. Deus escolheu apenas um “Caminho”
pelo qual o homem poderá ser salvo e, não, salvar-se: Jesus Cristo. Hoje, o
verniz da vivência cristã parece tão superficial e transparente, quase
invisível, que se houver cristianismo de verdade nas terras pagãs do coração do
homem moderno, somente Cristo sabe onde ele se encontra.
British Museum
Um mosaico de
religiões e culturas se espalhou pelo mundo, envolvendo todas as dimensões que
dizem respeito à antropologia e à constituição do ser pessoa, desde o seu
aparecimento na terra até os rituais que despedem seu corpo exânime na frieza
da própria terra. Nascer, viver e morrer ainda são verbos que compõem a
dinâmica existencial de todos os mortais. O simbolismo dessa realidade pode ser
diferente de uma cultura para outra, mas o fato é que ninguém escapa da trama
fatídica do círculo da vida que um dia se abre e no outro se fecha. Famosos e
anônimos, ricos e pobres, pretos e brancos, índios e mulatos, de qualquer gênero
ou espécie, o kronos segue, de modo implacável e indiferente, o ritmo solene e
cadenciado de todas as despedidas. Pobre vida humana, cujos cacos se espalham
pela terra inteira ou em qualquer lugar onde tombar o corpo vencido pela
necrose de suas próprias vísceras. Fruto das múltiplas concepções humanas,
verdadeiramente vasto e complexo é o universo antropológico que encerra tudo o
que se refere às dialéticas de sobrevivência da humanidade na terra, enquanto
germe de elaboração e formação das gerações que, passando, se sobrepõem umas às
outras. Às vezes, fico imaginando se Deus teria percebido o alcance
problemático das confusões de todo tipo que o homem causaria ao projeto inicial
da preservação da espécie dentro do contexto geopolítico de organização da
própria criação. Foi uma visita rápida que fiz ao Museu Britânico – British Museum – que me despertou para
reflexões desse tipo. Tomado de turistas por todos os lados, crianças, jovens,
mulheres, homens e anciãos se misturavam no labirinto histórico que acoberta
séculos e mais séculos das civilizações na terra. Criado em 1753, com sua
excepcional coleções de peças que cobrem a história da cultura humana desde o
seu início até o presente, ele contém mais de seis milhões de artefatos,
ordenados de pequenos fragmentos arqueológicos a maciços objetos das culturas
passadas e contemporâneas. Um acervo imenso, capaz de tirar o fôlego
intelectual do turista pela ânsia de sua curiosidade. Todas as civilizações ali
se cruzam como patrimônio histórico único das conquistas e das derrotas da
humanidade. Naquele espaço multicultural, vida e morte encontram o mesmo abrigo
imposto pela condição efêmera de todas as raças. Olhando o passado delas
podemos intuir o desfecho de nosso futuro. Mais ou menos como na frase que encontramos
em uma igreja de Roma, enfeitada de ossos humanos por todos os lados. Embaixo,
numa afirmação cortante e lapidar, a terrível constatação: “Aquilo que vós
sois, nós éramos; aquilo que nós somos, vós sereis!”. Fuja dessa, inteligente!
Sicut transit gloria mundi!
Assim passa a glória desse mundo!