Antropofagia Social
Uma
das coisas que mais me têm chamado a atenção na sociedade moderna é o
progressivo tsunami de violência e delinquência que tem solapado, implacável e
furiosamente, inúmeras vidas humanas, por conta da desumanização a que o homem
chegou por meio de uma estonteante e irrefreável espiral de circunstâncias
incontroláveis e surpreendentes. Trata-se, na verdade, do redemoinho feroz e
insaciável do qual poucos conseguirão escapar ilesos, incólumes.
No
final do mês de maio, a estatística contou 352 assassinatos em Sergipe. Vivemos
numa sociedade antropofágica, isto é, não comemos carnes humanas, comemos
humanos. A fratricidade bárbara da sociedade moderna tem nos assustado muito,
embora o aceitemos, passivamente, sem indignação ou capacidade reflexiva. Mas o
pior de tudo, nessa conjuntura de morte e brutalidade, é que ninguém pode
sentir-se totalmente seguro, pois a alta onda do horror que parece não nos
atingir, vai acabar engolindo a todos, caso não tomemos nenhuma providência
estratégica e sábia, a fim de conter a besta interior do homem que se desumaniza
cada vez mais, sobretudo, por desconhecer ou desconsiderar características que
são propriamente suas. O fato é que, no aceno de sua constituição enquanto
pessoa – equivalente a ser humano – não podemos deixar de apontar os princípios
de sua humanidade, que são radicalmente diferentes das leis vitais dos animais
irracionais. Não por acaso, somos dotados de inteligência, liberdade e vontade.
No entanto, o caos social em que nos encontramos mergulhados, parece desmentir,
e até contradizer, a sublimidade de suas prerrogativas racionais.
Evidentemente, o quadro antropológico atual não se refere apenas às novidades
atrozes, no sentido das conjunturas em que o homem se torna o próprio “lobo do
homem”, mas, ele planta suas raízes na originalidade, inclusive, do “homem
bíblico”, que não pode ser desconsiderado no âmbito da compreensão mais
profunda de seus dramas e de seus problemas. Por isso, não podemos deixar de
recorrer à Sagrada Escritura que, de um modo ou de outro, também abre as portas
da reflexão para o horizonte antropológico existencial humano hodierno.
Criado
“à imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,24), isto é, participando da intimidade
divina, a tal ponto chegou a perversidade do coração do homem, que,
afastando-se do Criador, ele precipitou-se nos desvãos da degradação humana, da
qual parece não conseguir levantar-se mais. Uma expressão da Bíblia traduz essa
realidade dramática do agir humano: “Os desígnios do coração do homem são maus
desde a sua infância” (Gn 8,21). Tal expressão aparece no contexto do momento
em que Deus, arrependido do dilúvio, promete não mais destruir a terra por
causa da maldade do homem, visto que ele sempre se comportou assim, desde a
mais antiga aurora de sua existência. É, mais ou menos, como se Deus,
desencantado com a obra-prima de suas criaturas, dissesse: “Não tem jeito
mesmo!”. O desgosto divino abate-se sobre o âmago, as vísceras e as entranhas
mais profundas do Criador. Nesse sentido, basta pensarmos, por exemplo, que a
história da humanidade começou com uma guerra fratricida, em que um irmão matou
o outro. Na verdade, esse longínquo horizonte da perspectiva relacional humana,
colocou em choque todos os relacionamentos futuros, e, até hoje, o homem
revolve-se dentro de si mesmo para superar as incongruências interiores de sua
agressividade. Embora isso aconteça de modo inconsciente, em que o homem parece
não sentir, vibrante dentro de seu ser, a real necessidade de mudança interior,
o caminho de volta não será outro senão o da introspecção, não apenas
psicológica, mas, especialmente, espiritual, ético, moral. De fato, dentro do
recipiente de sua agitação interior, com toda a carga de sentimentos e
sensações que o invadem na dimensão mais crucial de seus dilemas e frustrações,
o ilusório mundo da felicidade plena evidencia-se na contraluz dos embates
cotidianos da dura realidade que embrutece a sacralidade do homem.
É,
pois, nesse contexto de violência e constrangimento moral e físico que se
originam os arroubos da sensibilidade humana que compõe os fios da trama
maquiavélica e enganosa da traição de seus próprios sentimentos. Inveja, ciúme,
violência e morte abrem a porta para o caos dos relacionamentos humanos. Tudo
isso refere-se à violência que não pode ser passada em branco na constituição
do “homem bíblico”, sob a suspeita da não “compreensão” legítima dos caracteres
intrínsecos à própria importância do homem e da sua vida.