Onde nasce o mal
O
pensamento de André Wéninn afirma: “Na experiência humana, a violência é um
dado primeiro, bruto. Por isso, a meus olhos, a Bíblia não seria pouco crível
se passasse ao lado dessa realidade muitas vezes invasora, pois ela não somente
está presente nas sociedades em que todo ser humano se encontra quando vem a
este mundo, mas também marca profundamente cada indivíduo desde seus primeiros
instantes. O nascimento não constitui, para a criança, uma violência saída de
um paraíso de que se vê expulsa para ser lançada num mundo frio e privado de sentido?
E esta é apenas a primeira separação. Outras virão, todas marcadas com o sinal
de certa violência, e sustentadas – mas nem sempre – por um amor que ajuda a
crer em um sentido possível. Nessas condições, crescer em humanidade não
consiste em recusar essa violência inevitável, mas em integrá-la aprendendo a
reconhecer que ela pode abrir brechas para crer e se tornar humano. Assim, uma
boa violência que abre para a vida acompanha uma má violência que semeia a
morte, sem que se saiba bem onde passa a linha de demarcação entre as duas”.
Refletir
sobre o “homem bíblico” é mais do que buscar entender o sentido de suas
encrencas existenciais. É projetar luzes e sombras sobre o perfil psicológico e
espiritual de sua essência antropológica no redemoinho de todas as suas
carências mais íntimas ou desejos mais profundos de plenitude. Portanto, nessa
linha de pensamento, “o mal se aninha no coração do mistério da vida”, segundo
o vislumbre literário do primeiro livro da Bíblia. Assim, “o mal entrou no
mundo por culpa dos protoparentes e de um tentador malévolo e traiçoeiro; a
culpa não é de Deus. Gn 3 tem o seu exórdio ou preparação no capítulo 2: o
jardim, as árvores, o preceito, a nudez da inocência e da culpa, as mesmas
pessoas – só o tentador é novo” (Dom João Terra). O tentador, considerado por
Cristo como o “pai da mentira” (Jo 8,44), instiga o homem à desobediência do
preceito divino para “não comer do fruto proibido” (Gn 3,3), o que constitui a
essência de seu pecado, cujas consequências – “desencanto, vergonha e
concupiscência” – obnubilam o rosto transfigurado e luminoso de sua intimidade
com o Criador. Eis, pois, uma definição de pecado que pode se traduzir em tudo
aquilo que o homem faz que desagrada a Deus: “O pecado não é uma transgressão
qualquer, mas uma declaração de independência de um ser que se considera
autônomo e emerge e ergue-se diante de alguém que toma o seu lugar. O homem
pretende ocupara o centro, o lugar de Deus, e deseja conseguir por natureza o
que só receberá pela graça. O sujeito dessa transgressão é o ser humano em sua
integridade” (J. Alegre Aragües).
Desse
modo, “a manducação do fruto proibido ou a transgressão do preceito os tornou
diferentes e em consequência disso sentem o rubor da nudez. Mas não devemos
ficar simplesmente nesta vergonha da nudez corporal, pois ela tem alcance mais
profundo, sendo na realidade a consciência da culpa cometida. Eles sentem agora
que fizeram uma coisa que não deviam ter feito. Nessa concatenação dos efeitos
do pecado o nosso narrador mostra seu conhecimento profundo do coração humano.
Realmente, ‘a árvore da ciência tornou-se a árvore da consciência’ (Heinisch)” (Dom João Terra).
São
Gregório de Nissa já afirmava na sua Grande Catequese: “Nenhuma origem do mal
teve o seu princípio na vontade divina, porque a maldade fugiria da condenação,
se pudesse dar a Deus o título de seu criador e patrão. Entretanto, de alguma
maneira o mal nasce de dentro, produzido pela ação da vontade, sempre que a
alma se afasta do bem. Como a vista é uma atividade da natureza e a cegueira é
a privação daquela atividade física, assim a mesma oposição ocorre entre a
virtude e o vício. Não é, de fato, possível conceber a existência do mal senão
como ausência de virtude”. Também há quem afirme que, “mais do que uma
informação sobre a origem do mal, trata-se de seu caráter de culpa. O ‘porquê’
do mal não tem resposta teológica, a não ser o fato de que a teologia indica na
cruz a superação do mal” (J. Alegre
Aragües).
A
verdade é que, de todos os seres criados, somente o homem teve a lâmpada
bruxuleante de sua consciência acesa. Somente ele tem consciência do existir. E
ele pagará caro por isso. Todavia, o preço dessa conta está relacionado às
decisões de seu coração vacilante e às escolhas de sua liberdade hesitante, que
não sabe bem para que lado pender, buscando o equilíbrio interior de sua
condição originária de intimide com Deus.