Combati o bom Combate
No
pôr do sol de sua vida, São Paulo pôde dizer ao seu discípulo Timóteo: “Quanto
a mim, já fui oferecido em libação, e chegou o tempo de minha partida. Combati
o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Desde já me está
reservada a coroa da justiça, que me dará o Senhor, justo Juiz, naquele dia; e
não somente a mim, mas a todos os que tiverem esperado com amor a sua Aparição”
(2Tm 4,6-8). Sem querermos ser muito presunçosos, mas esperançosos, que o
Senhor nos reserve o mesmo prêmio salvador, quando também para nós soar a hora
bendita da travessia ao encontro definitivo com o Redentor.
Por
meio do terno libação, São Paulo faz uso da linguagem comparativa de belíssimo
esplendor e admirável conotação. Do vocabulário hebraico nāsak, o termo “é
empregado para indicar a oferta de bebidas ou libação no AT. (A palavra
‘libação’ vem do latim libare, ‘derramar uma oferta de bebidas’). A oferta de
bebidas foi originalmente estabelecida na comunidade da aliança como uma forma
apropriada de adoração, embora ela também pudesse ter o seu significado
pervertido, devido à influência de rituais religiosos pagãos” (Dicionário
Internacional de Teologia do Antigo Testamento). Curiosamente, aí brota o
sentido de que algumas pessoas, ao beberem, derramam um pouco da bebida no chão,
dizendo que é “para o santo”. Impressionante é a distância temporal em que
nascem as tradições. De fato, como o conhecimento nos ultrapassa! “No NT, Paulo
faz uso da figura da ‘libação’ do AT ao empregar o termo [grego] spendomai (Fl
2,17; 2Tm 4,6). Nas duas passagens, Paulo, que escreve da prisão, declara
literalmente: ‘estou sendo já oferecido por libação’ por amor a Cristo. Assim
como a libação era ‘derramada’ no altar, da mesma maneira o apóstolo está
preparado para, jubilantemente, ‘derramar’ sacrificialmente seu sangue como
mártir” (Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento).
Segundo
O. Michel, o enunciado do verbo grego “spendomai” nas duas passagens feitas
pelo Apóstolo serve para indicar o martírio subido, imediato, de São Paulo. Nos
dois casos, a terminologia do judaísmo tardio e, respectivamente, do ambiente
helenista, faz referência a um ato cultual histórico que assinala o fim da vida
e da obra do Apóstolo. Desse modo, a ação terrena dos homens que julgam e
apagam o eleito de Deus é transfigurada pela interpretação solene, sacral da
morte, que nos dá o próprio apóstolo. Por fim, a imagem da libação serve para
apontar a oferenda da vida, isto é, o Apóstolo derrama o seu sangue como a
libação é derramada aos pés do altar. Portanto, surge também no ambiente
cristão a linguagem figurada do sofrimento, que eleva a dignidade e a
importância da morte ao nível das concessões rituais. Tudo isso São Paulo viveu
embalado pelo amor à Verdade de Cristo e ao sofrimento por causa dele.
É
o Papa Bento quem o afirma: “O sofrimento e a verdade andam sempre juntos. [...]
O sofrimento é necessário para dar crédito à verdade, mas só a verdade dá um
significado ao sofrimento”. Quanto em relação à nossa vida, quais são os
caminhos do sofrimento? Por onde eles encontram a válvula de escape da dor que
nos atormenta por dentro? Como intencionamos controlar seus ímpetos inesperados
de reservas e ansiedades? A liberdade interior da aceitação é o melhor caminho
para mitigar os arroubos inesperados de sua inevitável companhia.