Santo Agostinho, suas
Confissões e a Responsabilidade de ser Bispo
As
atribuições de um bispo, na época de Santo Agostinho, eram inúmeras em relação
às que percebemos em nosso tempo. Eles eram encarregados de muitos deveres e
obrigações. Somente para nos situarmos um pouco, vejamos, por exemplo, qual era
o papel de um bispo daquele tempo, consoante o define perfeitamente
Chateaubriand em um de seus estudos históricos.
Ele
nos revela que, na complexidade exigente de tantas atividades de um bispo, ele
batizava, confessava, pregava, ordenava penitências privadas ou públicas,
lançava anátemas ou levava excomunhões, visitava os doentes, assistia aos
moribundos, enterrava os mortos, resgatava os cativos, nutria os pobres, as
viúvas e os órfãos, fundava hospitais e hospícios para os leprosos,
administrava os bens de seu clero, pronunciava-se como juiz de paz nas causas
particulares ou arbitrava desavenças entres as cidades. Ao mesmo tempo,
publicava livros e tratados de moral, disciplina, teologia, escrevia contra os
hereges e os filósofos; ocupava-se de ciência e de história, ditava cartas para
as pessoas que o consultavam numa ou noutra religião, correspondia com as
igrejas e com os bispos, os monges e os eremitas; sediava concílios e sínodos;
era chamado ao conselho dos imperadores, encarregado de negociações; era
enviado a usurpadores ou príncipes bárbaros para desarmá-los ou contê-los; além
do que outros poderes religiosos, políticos e filosóficos concentravam-se no
bispo.
De
acordo com o sobredito, fica-se mais do que evidente a ampla e diversificada
atividade pastoral do bispo naqueles tempos tão difíceis em que a Igreja
avançava vagarosamente. Foi, portanto, em meio a tantas obrigações que o Bispo
de Hipona escreveu com determinação o livro que, entre tantos outros, entraria
para a história da humanidade como uma obra prima de sua genialidade, contendo
a “mais apaixonante aventura espiritual: a busca de Deus”. Aos olhos do mundo,
suas páginas se abrem, uma após outra, para aquilo que o homem constata ser, de
modo consciente ou não, infinitamente superior a si mesmo, transcendendo-o: o
próprio Deus. Ele o atrai irresistivelmente. Eis, então, a experiência tão
normal que faz Santo Agostinho, ao abrir-se para Deus.
Provavelmente,
As Confissões foram escritas, mais ou
menos, entre os anos que vão de 397 a 398. É uma obra que está dividida em
treze livros extraordinários, compondo o conjunto do texto. Há uma parte
autobiográfica, os livros de I – IX, permeados de culpas e agradecimentos ao
Bom Deus pela misericórdia que lhe concedeu desde quando ele era criança, desde
a sua infância. O livro X contém uma análise, feita com muita perspicácia
psicológica, em que Santo Agostinho expõe sua posição ético-religiosa no
momento mesmo em que escreve. Por fim, a terceira parte, dos livros XI – XIII,
traz consigo o comentário sobre os primeiros versículos do livro do Gêneses,
contido na Bíblia. Aliás, tais versículos favorecem oportuna ocasião para ele
fazer, mediante várias interpretações alegóricas, profundas considerações sobre
Deus e o mundo, o tempo e a efemeridade; de igual modo, ele também tece
louvores que exaltam a grandeza do Criador e sua infinita bondade. Com efeito,
não foi em vão que Santo Agostinho afirmou: “Se o homem é feito à imagem e
semelhança de Deus, a sua verdade, estimulando o que de mais elevado existe na
própria alma. É claro que Deus não está onde está o pecado, a angústia, que
deriva do pecado. Pelo contrário, Deus está onde se procura com sinceridade a
própria salvação e a dos outros, isto é, onde se vive na graça de Deus.
Portanto, conhecer realmente a si mesmo para chegar àquele que nos é mais
íntimo que nós mesmos”.
Mais
tarde, ao fazer um reexame de toda a sua obra, o próprio Santo Agostinho
constatou em suas Retratactiones (II,
6): “Os treze livros de minhas confissões louvam o Deus justo e bom por meus
males e bens, e elevam até ele a mente e o coração dos homens; senti esse feito
enquanto o escrevia, e torno a senti-lo cada vez que os leio”. Na verdade,
trata-se de um livro de altíssima mística, de modo que ele tem sido lido ao
longo dos séculos. E a evidência irrecusável de tal verificação, está
proeminentemente muito bem estampada na lucidez espiritual envolvente de suas
laudas. Certamente, quem o leu aí retornou muitas vezes para bebericar da
inexaurível fonte de deleite espiritual, místico, teológico ou filosófico,
descoberto em cada nova releitura, o que sempre deixa transparecer o conteúdo
cada vez mais profundo. Sem tergiversações nem evasivas, é uma obra de
requintado estilo literário, em que o metafórico sobrepuja, de maneira sobeja,
o puramente textual, transpondo o que está aquém da própria escrita, da própria
letra, que, se não for bem entendida, pode gerar conflitos e perturbações
involuntárias, abalando, como ondas agitadas pelo vento em conjunturas de
tempestade, a leveza do ser e a tranquilidade da alma, no seu interior. Sobre
quantas coisas não escreveu Santo Agostinho nessa sua obra?!
Assim,
bastaria projetarmos rapidamente nosso olhar sobre o índice e seus subsequentes
temas, para que, logo, percebêssemos a necessidade de um capítulo inteiro, e bem
considerável, para conseguirmos elencar todos os tópicos. Com efeito, um
espírito atilado e dotado de aguda perspicácia intelectual, com certeza,
descobriria aí um terreno inesgotavelmente fértil para analisar ou investigar,
de modo profundo e especulativo, cada um desses títulos, ou subtítulos de
maneira a atingir toda a riqueza das águas refrescantes de sua obra.