Obra literária Agostiniana
Quanto
à obra literária de Santo Agostinho, que poderíamos dizer? Sem dúvida, não é
nosso objetivo abordar, em tão efêmero discurso, todas as suas obras. No entanto,
é plausível fazer referência às mais importantes, resaltando, que, no segundo
tópico, faremos alusão somente à sua magnífica obra literária intitulada As Confissões. No final de sua vida, o
próprio Santo Agostinho se encarregou de fazer o rol de seus trabalhos,
contendo 232 livros, divididos em 93 obras, em cujo total não havia inserido os
Sermões nem as Cartas, algumas das quais constituíam verdadeiros tratados.
É
Daniel Rops quem o declara: “E assim nos aparece rodeado por uma muralha de
livro, pelos dezesseis majestosos tomos da Patrologia latina de Migne, ou pelos
grossos volumes do Corpus de Viena – uma muralha que, devemos confessá-lo, o
protege admiravelmente”. Daniel Rops, notável gênio da literatura francesa,
certamente, inspirado por grande amor à Igreja de Cristo, dedicou dez tomos de
suas obras somente ao estudo da História da Igreja, como que tecendo um véu
luminoso, acobertando e acompanhando a íngreme escalada dos séculos através da
Igreja. Ele é o nosso convidado especial. Portanto, fala, ó exímia enciclopédia
historiadora: “Se é de elementar cultura ter, pelo menos, dado uma vista de
olhos às Confissões, é de um nível mais elevado – nos nossos dias – ter uma
certa ideia da cidade de Deus, apenas os teólogos (e Deus sabe...) têm estudado
De Trinitate, e os pregadores a Doutrina Cristã. Quem se importa agora,
a não ser os especialistas na obra do Santo, com obras ricas de páginas
admiráveis, como, por exemplo, a Fé e
o Símbolo, ou esse manual de
‘agostinismo’ que é o Enchiridion? A
simples enumeração de seus livros encheria um capítulo. Na sua marcha para
Deus, expressão que resume esta obra multiforme, o filósofo dos Diálogos vai a
par do teólogo de A verdadeira religião,
dos escritos sobre A fé, do tratado
da Trindade e da Cidade de Deus. Para espalhar e desenvolver a verdade, o teórico do
Enchiridion, o moralista dos
opúsculos, trabalha lado a lado com o apologeta da Doutrina Cristã e, ao aprofundarmos nas suas bases, configura-se o
exegeta que demonstra a Conciliação dos Evangelhos, e o comentarista de São
João e de São Paulo. E temos ainda de pôr de lado, os inumeráveis livros e
brochuras que lançou, como dardos acerados, contra os hereges de todas as
castas, que nunca deixou de combater. Juntemos ainda trezentos e sessenta e
três sermões – ou talvez quatrocentos e cinquenta – considerados autênticos, e
duzentos e sessenta cartas que chegaram até nós, certamente de entre alguns
milhares... E essa enumeração não passa de um insuficiente esboço deste
monumento do espírito”.
Como
aconteceu a todos os homens da História – sejam eles figuras proeminentes ou
anônimas, reluzentes ou obscuras, diáfanas ou opacas, lúcidas ou dementes,
inteligentes ou néscias, e como, sem dúvida, acontecerá a cada um de nós, no
momento oportuno, vivendo o hoje da evolução cronológica e da revolução
tecnológica – Santo Agostinho viveu à penumbra, fatalmente, sofrível da solidão
involuntária da senescência e da decrepitude agonizante de seus derradeiros
suspiros. Sitiada, Hipona parecia ter chegado ao fundo do abismo. Em 430,
Genserico insurge, avassaladoramente, com seus soldados ruivos e assalta a
cidade do grande santo. Há uma luta contínua contra os invasores, porquanto se
sabia muito bem o que aconteceria se o vândalo se tornasse senhor: o intento da
luta era retardar, por pouco que fosse, o horror inevitável. É, pois, nesse
contexto de guerra, num momento em que os ânimos se encontram agitados e
perturbados na história de Hipona, que, embora tudo parecesse orientado para o
desespero, “havia um homem que era a própria encarnação da esperança e da
coragem. Era um ancião, já gasto pela idade e pelas fadigas e de sua vida de
lutas. Acabava de fazer setenta e cinco anos, mas, se as forças físicas – que
nunca tinham sido consideráveis – declinavam, o espírito nunca fora mais
luminoso nem a vontade mais firme. Nos trinta e quarto anos, ao longo dos quais
vinha habitando no seio desse povo, sempre representava a sua consciência viva;
e quando chegou a hora do drama, manteve-se no seu posto. Nada mudou na sua
existência costumeira. Como sempre, orava, orava muito, lia, escrevia, ensinava
o Evangelho e dava abrigo, sem se cansar, aos infelizes que se juntavam à sua
porta. Regularmente, continuava a fazer ressoar, sob as abóbadas da Basílica
Maior, a sua voz enfraquecida que quebrava o silêncio angustioso do seu
auditório. E quando os sitiados de Hipona recolhiam a palavra de seu bispo,
sentiam crescer em si, mais do que a vã confiança humana, essa firmeza de ânimo
que vai haurir a sua seiva de Deus” (Daniel Rops).
A
despeito de tudo, de toda a agitação conflituosa de Hipona, é justamente no
meio dos seus que o Santo quer morrer, sem se furtar às incongruências do
instante desafiador: “O bispo, alma da resistência, no entanto, está preso ao
seu leito, moribundo. Agora, quer ficar só com Aquele que ele havia buscado tão
longe quando, na verdade, ele estava tão perto, no âmago esmo de seu desejo.
Fechando-se, os seus olhos já descobrem a outra margem, onde sua esperança
lançava âncoras” (Hamman).
Após
essas últimas palavras, tão bem dispostas na essência e no conteúdo, o silêncio
é o comentário mais eloquente a comunicar-nos a grandeza sublime de uma alma
apaixonadamente incansável em busca da verdade suprema, único bem que satisfaz,
de modo pleno, o “inquietum cor nostrum”,
deixando na fímbria da alma humana, envolvida pelo mistério da vida dos santos,
a vontade de chorar...