Encantos do meu Sertão
Janeiro de 2013. Foi a
primeira vez que pensei em passar alguns dias de férias circulando pelos
encantos de meu lindo sertão, desde quando fui ordenado sacerdote. Nada como
estar com nossos familiares e amigos. Voltar ao berço de nossas origens é
legitimar a verdade sobre nós mesmos, sobre nossa história e sobre o nosso eu
mais profundo. Por isso que eu não consigo entender por que algumas pessoas não
se sentem à vontade ao dizerem de onde são, quais suas origens humildes, não
muito sofisticadas quanto à importância e ao conhecimento do lugarejo
desconhecido onde nasceram. Não diria que sou parisiense, se não o fosse. E, de
fato, não o sou, porquanto sou “caririense”
– quer dizer, carirense. O neologismo quer, somente, poder rimar com o termo
“parisiense”. Assim, eu sou muito orgulhoso da bela Carira onde me criei dos
oito aos dezesseis anos, quando tive de ingressar no Seminário Menor de Aracaju,
no dia 14 de fevereiro de 1987, há, exatos, 26 anos. Quanto chão já foi
percorrido até aqui!
Como eu já tive a
oportunidade de dizer, eu nasci na roça, no povoado Carreiro, a seis quilômetros
do município. Isso não me causa nenhum constrangimento. Minha mãe estava
sozinha e, depois, ficamos nós dois, porque a parteira chegou atrasada ou,
talvez, eu tenha me apressado. Será que eu já estava ciente de que uma vida é
muito pouca e curta para aprendermos tanto? Não sei! Às vezes, imagino-me com a
necessidade de “reencarnar-me”, a fim de que eu possa usufruir mais tempo e
poder fazer novas experiências no encantado planeta Terra. Para alguns, “a lei
do eterno retorno” poderia soar como uma maldição, e deve ser mesmo. Já pensou
uma vida vivida na desgraça e sempre retornada aos mesmos pontos de sofrimento
e dor? Segundo algumas teorias, a reencarnação é o princípio da possibilidade
de regeneração ou degradação, a partir de critérios de avaliação de como tenha
sido a própria existência das pessoas em vidas passadas, algo em que,
evidentemente, eu não acredito. Se em outras vidas, você foi uma pessoa boa,
dadivosa, generosa, na próxima reencarnação, sua vida poderia melhorar. Mas se
ela não foi tão boa assim, sua existência poderia, contrariamente, degringolar
em projetos nefastos de infelicidade e angústia. Todavia, a imaginação humana é
o único veículo capaz de possibilitar viagens fantasiosas nos meandros de sua
própria criatividade. E isso me parece um brinquedo perigoso, mas, ao mesmo
tempo, divertido e contagiante. Com efeito, não foi assim que o famoso Walt Elias
Disney “nos tubos de um órgão viu, uma vez, um grupo coral com rostos que
cantavam”, o que, tempos depois, tornou-se uma clássica cena do filme “Branca
de Neve e os Sete Anões”? Apenas o homem racional tem a prerrogativa de sua
fértil imaginação. Que maravilha, pois é dessa maneira recreativa que ele
percorre mundos inimagináveis e fantásticos. Somente a viagem do espírito pode
resgatar o valor supremo da existência humana, em todas as dimensões e estágios
de suas percepções. Quem, andando pelas terras secas do sertão carirense, que
se precipitam nos portões do grande Sertão da Bahia, cujas fronteiras, depois
de cinco quilômetros, abrem-se para à caatinga e às terras tórridas de sua vegetação
rasteira, não pensaria nos mesmos recantos obscuros da alma sertaneja que se
debate na infertilidade sofrida dos desejos de suas conquistas? À mente sensata
e perceptível responde o coração agitado pelos sentimentos leais de quem ama
sua terra natal.
A natureza renasce com poucos
pingos d’água! Foi o que aconteceu com a chuva minguada, mas perseverante, que
caiu há alguns dias antes na redondeza. A “verdura” do milagre das pastagens
que surgem ao embalo da garoa mansa ou torrencial, que se derrama sobre o duro
chão da seca, reveste-se de esperança e contentamento para os olhos cansados do
habitante agreste nas expectativas alvissareiras da produção e do lucro. É ali
onde nasce o desejo de sucesso financeiro e sobrevivência diante dos obstáculos
da vida. Singrando terra adentro, ainda são verdadeiras as palavras que Dom
Luciano Duarte dissera, há muito tempo, quando ainda não havia asfalto em
Carira, e ele passara alguns dias em “Frei Paulo Moleque”, como era considerada
a cidade antes de mudar de nome: “Vejo assim, com meus próprios olhos, o
destino desta parte do nosso povo, cuja vida é função da chuva. Nós, da praia,
não sabemos o que é isto. Ouvimos falar na seca, sofremos a subida dos preços,
assistimos ao desfile trágico dos retirantes, mas não temos a noção da seca,
que transforma esse solo fértil num tapete infinito de terra queimada, o sol
implacável torturando os campos, meses e meses, e a poeira fina, vermelha,
carregada nas costas do vento, sobre as roças desertas”. Não tenham dúvida de
que essa é uma descrição fiel do que seja o Sertão do Carira, que inicia logo
que, pela hoje BR 235, passa por Fei Paulo e Mocambo – “habitação miserável” –
em direção a Paulo Afonso. Daí que Dom Luciano Duarte continua sua descrição
geográfica, tentando atingir as fímbrias da alma do sertanejo: “A estrada de
Paulo Afonso é uma fita vermelha, pregada na roupa verde que o inverno revestiu
no sertão”. Por incrível que pareça, a realidade do Sertão é a mesma descrita
por Dom Luciano Duarte. Nada mudou senão a pista que foi feita até os limites
com a Bahia, cinco quilômetros depois de Carira. A “linha vermelha” até ali se
tornou “preta”, mas depois continua rasgando o chão vermelho da precariedade
contraproducente diante dos avanços de pistas interrompidas pela corrupção que
levou para o bolso de alguém o custo dos recursos do projeto de modernidade, de
modo especial, para os povos do Sertão da Bahia que habitam a vastidão do que
poderíamos chamar a terra dos sem fim.
Vivendo a simplicidade da
vida no Sertão, tão acolhedor quanto ameaçador pela resistência de suas
lavouras, que hoje são fartas e amanhã, não muito abundantes, ainda podemos
conceber na efervescência do espírito a capacidade para o espanto, a admiração,
quando temos a oportunidade de pedalar pelas estradas escuras do asfalto que
cintilam diante da luminosidade, quase tímida, da lua. Mas não é somente a lua
dos amantes ou românticos. Ela é também a lua dos poetas e escritores, que se
aliam às surpresas de suas formas para externar sentimentos de gratidão ao
próprio espetáculo fascinante da natureza. Da natureza que também pipoca nas
verdes pastagens pontilhadas pelos ipês amarelados pelas flores douradas da
exuberância típica do pau d’arco não violáceo. É o próprio toque do esplendor
natural que nasce do duro chão nordestino, fazendo despontar no coração do
sertanejo brilhos de intensa esperança para a reanimação da alma.
Muitas estradas antigas ainda
se conservam as mesmas de outrora, carregando sobre suas costas nuas pedras,
piçarra e poeira. Algumas vão em direção às fontes dos tempos da minha
infância, e a visão de hoje parece ser a mesma do menino do interior que, da
carroça de burro, experimentava o tempero da vida através da labuta diária de
seus pais. Na verdade, sempre uma emoção particular poder rever os mesmos
cantos da “aurora da minha vida, da minha infância querida, que os tempos não
trazem mais”, senão pelas reminiscências adormecidas e ressuscitadas pelo
entusiasmo íntimo das boas recordações. É a linha contínua da vida que se refaz
ao buscar os pontos perdidos pela distância geográfica e afetiva da puerilidade
contida no hoje do homem amadurecido pela existência afora. Com efeito, onde
houver um alinhamento de memória trilhando os caminhos do passado, certamente,
também haverá fios de felicidade bordando o presente da constituição do eu
momentâneo no auge mágico do agora. E aí pode ser onde vive a felicidade que
nos habita na realização de nós mesmos.