Bento XVI: “Não tenho mais Forças”
Acompanhei,
com interesse redobrado e disquisição jornalística, todas as especulações que
envolvem a renúncia do sempre amado Papa Bento XVI. E me pergunto: “Será que o
homem deveria levar até as últimas consequências, digo, aos derradeiros
instantes de sua existência, o imperioso dever de sua consciência em não
abandonar o remo do barco até que ele tenha chegado, definitivamente, à outra
margem?” O Papa Bento XVI responde-me que não! Mesmo na Igreja de Cristo, e
embora isso possa causar escândalo, a consciência livre de quem não reconhece
ir adiante com seus deveres e responsabilidades à frente dos afazeres de sua
missão, permite que a renúncia seja possível, pois ela está legalizada pelo
Código de Direito Canônico que tenta reger as normas de conduta da Igreja de
Cristo.
No
caso específico de Bento XVI, seria fuga da cruz? Seria declaração de
impotência e inoperosidade frente ao labor que lhe fora confiado pelo próprio
Senhor? Que lições poderíamos aprender do gesto “de fé e humildade” do Romano
Pontífice? Infelizmente, são perguntas e inquietações para as quais não
encontramos respostas prontas como gostaríamos. Na qualidade de cristão
católico, e mais ainda de sacerdote, fica o sentido do silêncio profundo por
meio do qual posso, apenas, colocar-me em oração. O fato é que, entrementes, satisfações
curiosas desse tipo, com certeza, ficarão sem respostas. Talvez, o tempo e a história
no-lo dirão! Quem poderia intuir, com toda intensidade, o que vai dentro do
coração de um Papa? Sem dúvida, trata-se de um acontecimento inédito para o
considerado mundo pós-moderno, que o vê como “um gesto de modernidade”. Ele,
que dissera não querer nada disso por livre vontade, submeteu-se, com heroísmo
e coragem, àquilo que era visto, no horizonte de sua fé inquebrantável, a
vontade de Deus, como também deve ser a sua renúncia. De fato, quando ele
pressentiu que seria o escolhido e eleito, pensou na guilhotina: “Pronto, agora
cai e golpeia você. Estava muito seguro de que este encargo não me seria
destinado, mas que Deus, depois de tantos anos fatigosos, haveria de
conceder-me um pouco de paz e de tranquilidade. A única coisa que consegui
dizer, para explicar a mim mesmo, foi: ‘Evidentemente, a vontade de Deus é
outra, e para mim começa algo completamente diferente, uma coisa nova. Mas ele
estará comigo”. Como
noticiaram os jornais da Itália, o dia 11 de fevereiro de 2013 foi o de “uma
jornada inacreditável!”. A notícia explodiu para o mundo às 11 horas e 46
minutos, em Roma. Um anúncio chocante. Segundo informações dos telejornais
internacionais, um evento criticado somente pela China.
Em
solidariedade ao Romano Pontífice, que tomou uma decisão realista e corajosa, pessoal
e solitária, talvez, tenha chegado à Igreja um momento de oração e silêncio
mais profundos, certamente, acompanhados de sofrimento e generosidade
espiritual. Com o anúncio de seu abandono às funções que são próprias e
inerentes ao estado de Romano Pontífice, dentro de pouco mais de um mês, se
Deus quiser, teremos a eleição do novo Papa. Em breve, será anunciado o novo Conclave
que nos apresentará o sucessor de Bento XVI à Cátedra Petrina. Teremos, então,
de rezar por dois papas. Um citado na oração da Eucaristia, outro, em nossas
orações pessoais com que seguiremos o amado Bento XVI, que, moralmente, não perderá
o título papal, e continuará, segundo sua própria expressão, servindo “de todo
o coração, com uma vida consagrada à oração, a Santa Igreja de Deus”. Sim, pela
oração, proximidade espiritual, também estaremos unidos a ele pelo resto de
seus dias entre nós. Deus conceda vida longa a Bento XVI.
Não
obstante todas as especulações que fazem a respeito da renúncia de Bento XVI, o
gesto do Papa foi considerado por muitos como um ato de coragem, humildade e fé,
especialmente, “pelo bem da Igreja”, como ele mesmo reconheceu. Na verdade, a
beleza de sua convicção e serenidade, demonstrava-se de modo claro, no rosto
sorridente e suave de sua primeira aparição na Audiência do dia 13 de fevereiro
na Sala Paulo VI e na última missa da Quarta-feira de Cinzas que rezou como Papa,
no mesmo dia, na Basílica de São Pedro, depois do comunicado da notícia ao
mundo. Com passos lentos, mas firmes, sem o auxílio da bengala, foi muito bem
acolhido e ovacionado pelos que estavam presentes na Audiência. O mundo inteiro
estava na expectativa de saber qual seria seu discurso inicial e de como se
apresentaria, sabendo do choque que causara em todo mundo, com a sua
surpreendente decisão de renúncia. Eis
o começo do texto da audiência geral, publicado no site do Vaticano: “Queridos irmãos e irmãs, como sabeis,
decidi… – obrigado pela vossa amizade! [comentário aos aplausos] – decidi
renunciar ao ministério que o Senhor me confiou no dia 19 de Abril de 2005.
Fi-lo em plena liberdade para o bem da Igreja, depois de ter longamente rezado
e ter examinado diante de Deus a minha consciência, bem ciente da gravidade de
tal ato, mas igualmente ciente de já não ser capaz de desempenhar o ministério
petrino com a força que o mesmo exige. Anima-me e ilumina-me a certeza de que a
Igreja é de Cristo, o Qual não lhe deixará jamais faltar a sua orientação e a
sua solicitude. Agradeço a todos pelo amor e pela oração com que me tendes
acompanhado. Obrigado! Nestes dias, não fáceis para mim, senti quase
fisicamente a força da oração que me proporciona o amor da Igreja, a vossa
oração. Continuai a rezar por mim, pela Igreja, pelo futuro Papa. O Senhor nos
guiará”.
Parecem
ser as palavras de um homem leve, livre e solto na consciência lúcida de sua
decisão, estampando no semblante a certeza de ter feito o melhor para a Igreja
que não é sua, mas de Cristo. Num momento em que, no Brasil e no mundo,
encontramos tantas pessoas azedas pelo usufruto do poder – inclusive, por
disputas desleais e páreos manchados de corrupção e suborno, como no mundo da
política, onde a lisura da ficha limpa ainda não coloca em evidência a vida dos
candidatos – o Santo Padre recolhe-se para “esconder-se do mundo”, e dar à
própria Igreja condições mais livres para continuar seu trabalho de
evangelização com forças e energias renovas. A tentação do poder está fortemente
presente nas inclinações do homem e da sociedade que se consideram
autossuficientes e detentores de seu próprio bem estar, sobretudo, material. Assim,
embrulhado pelo consumismo desenfreado, as indisposições da alma e do coração humano
acabam fechando as portas para a chegada de Deus. Por isso que, na sua mensagem
da Quarta-feira de Cinzas, o Santo Padre insistiu, mais uma vez, na necessidade
de uma consciência mais viva do ser essencialmente cristão num mundo que
rejeita Deus e seu projeto de felicidade para o homem. De fato, o Santo Padre
convida-nos à superação da mentalidade superficial e “tradicionalista” quanto
às frias motivações do falso ser cristão. Com efeito, afirma o Papa, “hoje não
se pode ser cristão como simples consequência do fato de viver numa sociedade
que tem raízes cristãs: mesmo quando se nasce numa família cristã e é educado
religiosamente, deve-se renovar, cada dia, a escolha de ser cristão, isto é,
dar a Deus o primeiro lugar, diante das tentações que uma cultura secularizada lhe
propõe continuamente, frente ao juízo crítico de muitos contemporâneos”. E o
Romano Pontífice continua de forma mais contundente: “De fato, as provas a que
a sociedade atual sobpõe o cristão, são tantas, e tocam a vida pessoal e
social. Não é fácil ser fiel ao matrimônio, praticar a misericórdia na vida
quotidiana, deixar espaço à oração e ao silêncio interior; não é fácil opor-se
publicamente a escolhas que muitos consideram óbvias, como o aborto em caso de
gravidez indesejada, a eutanásia em caso de doenças graves ou a seleção de
embriões, a fim de prevenir doenças hereditárias. A tentação em colocar de
parte a própria fé sempre está presente e a conversão se torna uma resposta a
Deus que deve ser confirmada muitas vezes na vida”.
Embora
cansado e velho, no alto de seus quase 86 anos, emoldurado na vitrine de suas
aparições públicas, ele não renunciou por falta de lucidez. Muito pelo
contrário! Sua clarividência interior, mormente, intelectiva, está mais
brilhante do que nunca. O Papa não ficou demente! E ainda vai surpreender-nos muito
até o instante em que, como desejou, esconder-se-á dos olhos do mundo curioso para
viver contemplando o rosto de Deus pela intimidade da oração. É o preço da
renúncia de nós mesmos e de nossos desejos mais secretos, que coloca em lugar
de destaque a própria presença de Deus. Talvez, a última expressão da mensagem
do Papa na audiência da Quarta-feira de cinzas traduza o sentido profundo do
distanciar-se de si mesmo para encontrar Deus e os irmãos, pois “a alternativa
entre o fechamento no nosso egoísmo e a abertura ao amor de Deus e dos outros,
poderíamos dizer que corresponde à alternativa das tentações de Cristo:
alternativa, isto é, entre o poder humano e o amor da Cruz, entre uma redenção
vista apenas no bem estar material e uma redenção como obra de Deus, a quem
damos o primado na existência. Converter-se significa não fechar-se à procura
do próprio sucesso, do próprio prestígio, da própria posição, mas fazer com
que, cada dia, nas pequenas coisas, a verdade, a fé em Deus e o amor tornem-se
a coisa mais importante”.
No
fundo, o Papa renunciante não perdeu de vista a importância de Deus e de tudo
aquilo que lhe diz respeito para a felicidade da Igreja e do mundo. Somente os
olhos da fé podem ver, em profundidade, as consequências felizes dessa
percepção intuitiva e concreta de quem viveu estudando Deus e suas implicações num
mundo pluricultural e dialético que recusa a aceitação de Sua presença nas
vicissitudes históricas da quotidianidade.