Non Habemus Papam!
O
pêndulo lingual da maledicência tem trabalhado muito nesses últimos tempos,
desde quando o Papa Bento XVI – agora, Papa Emérito – anunciou que renunciaria
ao Pontificado no dia 28 de fevereiro, o que, de fato, aconteceu, às 20 horas
no horário de Roma, até o momento da considerada Sé Vacante. Uma verdadeira
torrente de altercações dialéticas se precipitou nos meios de comunicação,
inclusive, com conteúdos difamatórios e até mentirosos, tentando levar ao absoluto
caos a própria vida interna da Igreja. Todo mundo querendo dar conta da vida de
um Papa que usou do direito que lhe é próprio – o da renúncia – para viver dias
mais tranquilos, longe dos holofotes da imprensa, e, assim, continuar servindo a
Igreja de Deus por meio de orações e reflexões, na derradeira etapa de sua vida
como peregrino sobre a terra, como ele mesmo o acenou em suas palavras em
Catelgandolfo, poucos minutos antes de dar-se início ao período da Sé Vacante.
Toda
essa caldeira saturada de interlocutores mal intencionados e pouco interessados
à serena verdade dos fatos à luz do que o Papa e a Igreja dizem, nada mais é do
que o reflexo de que ninguém condena quem já está condenado, como o próprio diabo
não perturba quem já lhe pertence. Em outras palavras, ninguém joga pedra em
árvore que não dá frutos. Aí aparecem alguns historiadores, filósofos,
sociólogos, teólogos, jornalistas, entre outros pensadores contemporâneos,
todos peritos em falsificar e desnortear a lucidez dos acontecimentos pela
malícia de sua argumentação, para julgar o ato livre e responsável do Romano
Pontífice. Gente que de Deus e de Igreja não entendem nada. Afirmam que Deus é
uma invenção humana como a religião, e, quanto à Igreja, querem transformá-la
numa mera instituição social, cuja função pode ser comparada, erroneamente, à
de uma grande empresa. De igual maneira, também tentam buscar, no fundo
histórico do passado, comparações absurdas de fatos acontecidos há mais de
seiscentos anos, e em contextos totalmente diferentes dos atuais, para
conseguir elucidar o choque de realidade que desinstala os mais seguros
visionários das surpresas de um pontificado. Às vezes, imagino que o velhinho
escondido dentro dos muros de Catelgandolfo deve rir bastante, considerando
engraçadas as tentativas de explicação dos eventos e hilariantes os palpites
inescrupulosos de jornalistas, vaticanistas, entre outros personagens inquietos
pelas apreensões que a inflexibilidade de sua personalidade friamente
consciente causara. Aliás, os inimigos da Igreja de Cristo podem dizer o que
quiserem em seus discursos falaciosos, desprovidos de verdade – apesar dos
estragos que fazem ao conjunto da verdadeira compreensão da Igreja – que eles
não significam nada para a vida eclesial. Sua opinião é igual à de quem fala
mal da própria família, isto é, não possui credibilidade nenhuma nem respaldo de
veracidade em seu próprio meio vivencial.
Os
verdadeiros cristãos da Igreja de Cristo emocionaram-se muito em todas as
celebrações em que o Papa Bento XVI apareceu pela última vez. Começando pelo gesto
simples quanto polêmico de sua renúncia, um dos maiores teólogos dos tempos
modernos diz adeus aos privilégios de pode e de glória do mais alto cargo
exercido na Igreja de Cristo. Claro que “poder e glória” na visão de alguns
espíritos mesquinhos e míopes que não conseguem ver além de seus próprios
preconceitos e condicionamentos dialéticos em face da verdadeira autoridade
conferida por Cristo a Pedro e aos seus sucessores na Santa Sé Apostólica.
Dos
últimos sessenta papas que governaram a Igreja de Cristo, desde Martinho V
(1417-1431) até Bento XVI (2005-2013), este foi o primeiro a renunciar durante
um período de quase seis séculos. Se o seu pontificado começou com a surpresa
de sua eleição – pois era um candidato forte e esperado, mas muito malquisto e
incompreendido por muitos que o conheciam pela ditadura do martelo com que
defendia a lisura da fé da Igreja Católica, enquanto Prefeito da Congregação
para a Doutrina da fé – também se concluiu com a imprevisível renúncia surpresa
do Pontificado. De fato, o seu pontificado foi um pontificado de surpresas,
como escreveu o sacerdote espanhol Jesús Infiesta Miguel, que, em 2005,
intitulou o seu livro, inspirado numa expressão do Cardeal italiano Carlo Maria
Martini, que afirmara que Bento XVI “reservava surpresas”: “Benedicto XVI, Las sorpresas de un pontificado”.
O simples trabalhador na vinha do Senhor despediu-se do Vaticano e de Roma num
helicóptero da Força Aérea Italiana para esconder-se no castelo de verão dos
papas, à beira do lago Albano, numa região agradabilíssima, que foi palco e passagem
de muitas hostes do exército do império romano em tempos de guerra. Antes,
porém, de sua partida, deixou mais alguns recados à Igreja e ao mundo,
especialmente aos Cardeais reunidos para a despedida. No dia 27, na última
audiência geral na Praça do Vaticano, sua catequese não poderia ter sido mais eloquente,
comovente e metafórica: “Quando,
no dia 19 de Abril de quase oito anos
atrás, aceitei
assumir o ministério petrino, uma certeza firme se apoderou de mim e sempre me
acompanhou: esta certeza de que a Igreja vive da Palavra de Deus. Naquele
momento, como já disse várias vezes, as palavras que ressoaram no meu coração
foram: Senhor, porque me pedis isto…, uma coisa imensa!? Este é um grande peso
que me colocais sobre os ombros, mas se Vós mo pedis, à vossa palavra lançarei
as redes, seguro de que me guiareis, mesmo com todas as minhas fraquezas. E,
oito anos depois, posso dizer que o Senhor me guiou verdadeiramente, permaneceu
junto de mim, pude diariamente notar a sua presença”. Na Jornada Mundial da
Juventude, na Alemanha, em agosto de 2005, uma expressou que marcou a passagem
pela sua terra natal foi: “Quem crê, nunca está sozinho!” De fato, a
consciência da perene presença de Cristo em sua Igreja, mesmo em momentos de
tempestade e agitação, sempre esteve na convicção de fé de Bento XVI, durante
toda a sua vida.
E ele
continua na certeza de sua fé, quando ainda afirma na derradeira audiência pública
do Vaticano: “Foi um pedaço de caminho da Igreja que teve momentos de alegria e
luz, mas também momentos não fáceis; senti-me como São Pedro com os Apóstolos
na barca no lago da Galileia: o Senhor deu-nos muitos dias de sol e brisa
suave, dias em que a pesca foi abundante; mas houve também momentos em que as
águas estavam agitadas e o vento contrário – como, aliás, em toda a história da
Igreja – e o Senhor parecia dormir. Contudo sempre soube que, naquela barca,
está o Senhor; e sempre soube que a barca da Igreja não é minha, não é nossa,
mas é d’Ele. E o Senhor não a deixa afundar; é Ele que a conduz, certamente
também por meio dos homens que escolheu, porque assim quis. Esta foi e é uma
certeza que nada pode ofuscar. E é por isso que, hoje, o meu coração transborda
de gratidão a Deus, porque nunca deixou faltar a toda a Igreja e também a mim a
sua consolação, a sua luz, o seu amor”. O coração do Papa renunciante palpita
de reconhecimento e gratidão ao próprio dono da Igreja, Cristo, que é Aquele
que, na convicção dos autênticos crentes e fiéis discípulos, jamais deixará a
Sé verdadeiramente Vacante, pois ele nunca se ausenta do comando da barca de
Pedro que é a Igreja. Na verdade, Cristo é o Timoneiro Supremo e Eterno de sua
Igreja. Depois de agradecer a Deus, o pensamento do Santo Padre volta-se para
todos quantos estiveram ao seu lado durante o tempo de pontificado. Eis, então,
outro trecho de seu discurso de adeus: “Mas não é só a Deus que quero agradecer
neste momento. Um Papa não está sozinho na condução da barca de Pedro, embora
recaia sobre ele a primeira responsabilidade. Eu nunca me senti sozinho, ao
carregar as alegrias e o peso do ministério petrino; o Senhor colocou junto de
mim tantas pessoas que, com generosidade e amor a Deus e à Igreja, me ajudaram
e estiveram ao meu lado. E em primeiro lugar vós, amados Irmãos Cardeais: a
vossa sabedoria, os vossos conselhos, a vossa amizade foram preciosos para mim;
os meus Colaboradores, a começar pelo meu Secretário de Estado que me
acompanhou fielmente ao longo destes anos; a Secretaria de Estado e a Cúria
Romana inteira, bem como todos aqueles que, nos mais variados sectores, prestam
o seu serviço à Santa Sé: são muitos rostos que não sobressaem, permanecem na
sombra, mas precisamente no silêncio, na dedicação quotidiana, com espírito de
fé e humildade, foram para mim um apoio seguro e fiável. Um pensamento especial
para a Igreja de Roma, a minha diocese! Não posso esquecer os Irmãos no
Episcopado e no Presbiterado, as pessoas consagradas e todo o Povo de Deus: nas
visitas pastorais, nos encontros, nas audiências, nas viagens, sempre senti grande
solicitude e profundo afeto; mas também eu amei a todos e cada um sem
distinção, com aquela caridade pastoral que é o coração de cada Pastor,
sobretudo do Bispo de Roma, do Sucessor do Apóstolo Pedro. Todos os dias tinha
presente cada um de vós na oração, com o coração de pai”.
O Santo
Padre também agradeceu às pessoas simples que lhe escreviam cartas manifestando
amor e proximidade espiritual e afeto, o que ele entendeu como um gesto forte
para fortalecer o sentido mesmo da Igreja que não é “uma organização, uma
associação para fins religiosos ou humanitários, mas um corpo vivo, uma
comunhão de irmãos e irmãs no Corpo de Jesus Cristo, que nos une a todos. Poder
experimentar a Igreja deste modo e quase tocar com as mãos a força da sua
verdade e do seu amor é motivo de alegria, num tempo em que muitos falam do seu
declínio. Mas vejamos como a Igreja está viva!”. Para os que imaginaram que ele
estivesse abandando a própria cruz, eis sua resposta lúcida e convicta do amor
a Cristo: “Não abandono a cruz, mas permaneço de forma nova junto do Senhor
Crucificado. Deixo de trazer a potestade do ofício em prol do governo da
Igreja, mas no serviço da oração permaneço, por assim dizer, no recinto de São
Pedro. Nisto, ser-me-á de grande exemplo São Bento, cujo nome adotei como Papa.
Ele mostrou-nos o caminho para uma vida, que, ativa ou passiva, está votada
totalmente à obra de Deus”. Foi, pois, assim, numa praça locupletada com mais de
cem mil fiéis cristãos do mundo inteiro, que o Papa Bento XVI concluiu suas
aparições públicas, despindo-se do pontificado para servir à Igreja de Deus de
uma maneira diferente. Em todos os instantes de seu pontificado, ele nunca
perdeu sequer uma única oportunidade para fazer o mundo entender da gravidade
da ausência de Deus no horizonte de todas as suas instituições governamentais,
sociais e culturais. Sempre centrado em Deus, como quer ainda viver o resto dos
dias que lhe faltam, trazia no coração a certeza de que a Verdade existe, não é
relativa, nem está aberta a negociações dialéticas convencionadas pelos ímpetos
da inteligência humana. Não por acaso seu lema episcopal era “Cooperatores Veritatis” – “Cooperadores da Verdade” – que ele foi
buscar na Terceira Carta de São João, versículo oito.
Em
diálogo com o Colégio dos Cardeais presentes em Roma, prestes a deixar o
Vaticano em direção a Castelgandolfo, ainda teve tempo para mais um brilhante e
salutar recado: “Antes de vos saudar pessoalmente, desejo dizer-vos que
continuarei a estar convosco com a oração, especialmente nos próximos dias, a
fim de que sejais plenamente dóceis à ação do Espírito Santo na eleição do novo
Papa. Que o Senhor vos mostre o que Ele quer. E entre vós, entre o Colégio
Cardinalício, está também o futuro Papa ao qual já hoje prometo a minha
reverência e obediência incondicionadas. Portanto, com afeto e reconhecimento,
concedo-vos de coração a Bênção Apostólica”. Mais tarde, exatamente às dezessete
horas, do Vaticano, recolhendo-se da visibilidade de todos, muito emocionante
foi ver o Santo Padre subir no helicóptero para sua última viagem aos olhos do
mundo. Todo o voo, que durou pouco mais de quinze minutos, foi televisionado
para o mundo inteiro. Dentro da aeronave, somente o Santo Padre, seu Secretário
particular, o Arcebispo George Gänswein, o piloto e, talvez, o copiloto.
Ao
descer do carro, após breve diálogo com os que o aguardavam, adentrou no
Palácio de veraneio dos Papas e, de uma janela, saudou o povo presente na Praça
da Liberdade – um nome bastante sugestivo para a vida de Bento XVI, não mais
prisioneiro do Vaticano – com tais palavras: “Obrigado! Obrigado a todos
vós! Queridos amigos, sinto-me feliz por estar convosco, rodeado pela
beleza da criação e pela vossa simpatia, que me faz muito bem. Obrigado pela
vossa amizade, o vosso afeto! Sabeis que este meu dia é diferente dos
anteriores. Já não sou Sumo Pontífice da Igreja Católica: até às oito horas da
tarde, ainda o sou; depois já não. Sou simplesmente um peregrino que inicia a
última etapa da sua peregrinação nesta terra. Mas quero ainda, com o meu
coração, o meu amor, com a minha oração, a minha reflexão, com todas as minhas
forças interiores, trabalhar para o bem comum, o bem da Igreja e da humanidade.
E sinto-me muito apoiado pela vossa simpatia. Unidos ao Senhor, vamos para
diante a bem da Igreja e do mundo. Obrigado! Agora, de todo o coração, dou-vos
a minha Bênção: ‘Abençoe-vos Deus todo-poderoso, Pai, Filho e Espírito Santo’. Obrigado!
Boa noite! Obrigado a todos vós!”
Depois,
afastou-se da janela e desapareceu... Recolheu-se no silêncio contemplativo da
nova vida que escolhera por livre e espontânea vontade, rezando pela Igreja e
pelo mundo, mas, agora, somente diante do seu Senhor. Desse modo,
concretizou-se o Non Habemus Papam –
Não Temos Papa! Portanto, vivemos o tempo de expectativa da apresentação do
novo Romano Pontífice que será acolhido como todos os outros porque será sempre
bendito o que virá em nome do Senhor. Então, sim, mais uma vez, teremos de
acostumar-nos com o novo rosto do Sucessor de Pedro na Santa Sé Apostólica.
SÉ VACANTE