Via crucis Domini Mei
Via crucis Domini mei é uma expressão da bela língua
latina que significa: “A via-sacra [‘o caminho da cruz’] do meu Senhor!” Foi,
pois, essa a inspiração que me veio quando pensei em escrever sobre os dias
santos que estamos vivendo com a chegada da Semana Santa. No Domingo de Ramos,
Cristo entra, de maneira inesperada, mesmo se anunciada pelas profecias
antigas, na Cidade Santa de Jerusalém, aclamado como o rei messiânico esperado
pelo povo de Israel. Mas, a expectação de um rei terreno, capaz de estabelecer
tempos de paz no meio de um povo dominado pelas nações estrangeiras – o que
acontecera ao longo dos séculos com o povo eleito do Senhor – certamente
frustra o desejo do coração dos filhos de Deus, cuja promessa tem mais a ver
com as coisas do alto e com a herança espiritual divina do que com as coisas
próprias da terra. Que povo oprimido não cansa da tirania de seus déspotas? Que
povo, humilhado de todo tipo no frenesi de suas esperanças, não deseja tempo
novo de libertação e glória, mormente, pelo fato de se tratar do sonho de uma
promessa divina?
O
ar da liberdade se respira onde não existe nenhum modo de condicionamento
externo, perpetrado pelas forças do poder caudilhista de governos totalitários
e onipresentes na vida de um povo. Israel sentia falta dessa dimensão livre de
todos os povos. A potência do Império Romano grassava sempre mais sobre os
territórios da Palestina, e, então, seria normal, depois de tantos anos de
expectativa, de repente, perceber a chegada de uma nova aurora sobre os
escombros da opressão que se arrastava por séculos acima da comunidade judaica.
Eis que aparece o Messias, montado sobre um jumentinho, filho de uma jumenta,
conforme a citação simplória do texto do profeta Zacarias: “Exulta muito, filha
de Sião! Grita de alegria, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti: ele
é justo e vitorioso, humilde, montado sobre um jumento, filho da jumenta. Ele
eliminará os carros de Efraim e os cavalos de Jerusalém; o arco de guerra será
eliminado. Ele anunciará a paz às nações. O seu domínio irá de mar a mar e do
Rio às extremidades da terra” (Zc 9,9-10). Destarte, comparável a um rei de
guerra que chega para a batalha, é anunciada a vinda do Messias no meio de seu
povo. Todavia, nada é como parece ser à primeira impressão do leitor nem dos
espectadores presentes no evento. De fato, quem é esse Messias e qual a sua
função pedagógica em meio ao vendaval histórico em que se encontra o povo de
Israel? Ainda mais, agora, depois que o Cristo conseguira atrair alguns
seguidores pelas estradas empoeiradas de Israel e nas proximidades do lago de
Genezaré, quando se deparou com alguns pescadores, que, de chofre, abandonaram,
as redes e o seguiram prontamente (Mt 4,18-22)!
A
dinâmica dos acontecimentos de dureza e perseguição despertou no povo o sentido
de um messianismo libertador imediato, cujas promessas estariam a ponto de
concretizarem-se no balanço circunstancial das imprevisíveis motivações do novo
líder que despontara. Contudo, as razões de seu aparecimento demonstraram-se
contrárias à novidade desejada. Seu messianismo estava revestido de uma
autoridade que não era desse mundo, como vemos nos poderes políticos e
governamentais de todos os tempos. Enquanto homens anelaram o prestígio e a
veneração dos deuses, Cristo, por sua vez, mesmo sendo o Filho de Deus, e,
portanto, participante da natureza da própria divindade, e “estando na forma de
Deus não usou de seu direito de ser tratado como um deus, mas se despojou,
tomando a forma de escravo. Tornando-se semelhante aos homens e reconhecido em
seu aspecto como um homem abaixou-se, tornando-se obediente até a morte sobre
uma cruz” (Fl 2,6-8). O mistério da humildade de Deus que se faz igual aos
homens em tudo, exceto no pecado, inicia o ingresso na glória pela simbologia
dos dias tensos, de angústia e de dor, de sofrimento e de morte, que culminam
na manhã luminosa da Ressurreição. Mas, antes, é preciso que Cristo viva em
plenitude o seu “êxodo”, como a semente que necessita morrer na escuridão da
terra para germinar e produzir os devidos frutos no momento oportuno. Com
efeito, “se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se
morrer, produzirá muito fruto” (Jo 12,24-). É o Filho de Deus que, moído pelos
nossos pecados, restaura nossas feridas mais profundas, trazendo-nos a alegria
salutar e perene da sua Ressurreição eterna. A glória de Cristo ressuscitado
manifesta o triunfo da cruz pela humilhante, mas voluntária, obediência ao
projeto do Pai. Segundo Angélico Poppi, a hora da paixão de Jesus coincide com
a hora da glorificação. A pequena semelhança com o grão de trigo (versículo 24)
mostra analogias com as parábolas sinóticas da semente (Mc 4,1-9.26-32 e
paralelos). Porém, no evangelho de São João, o acento é colocado sobre a
necessidade da morte, a fim de que possa trazer frutos; já os sinóticos
enfatizam a certeza da colheita abundante, não obstante a insignificância da
semente e os obstáculos para desenvolver-se, amadurecendo. Se, no contexto dos
sinóticos, Jesus pretendia reforçar a fé vacilante dos discípulos pela lentidão
do reino, aqui, em São João, ele anuncia, de modo profético, a urgência da
própria morte para a atualização do projeto salvífico do Pai em favor,
inclusive, dos pagãos, como aqueles que vieram da Grécia querendo ver Jesus (Jo
12,20-22).
Depois
de tantos séculos passados, ainda somos chamados a pendurar nossos olhos no
Cristo crucificado, pois a compaixão e a misericórdia de Deus jamais se
cansarão de encher todos os espaços vazios do tempo e da vida das gerações
humanas. No entanto, o indiferentismo diante do Crucificado e da manifestação
radical de seu amor pelo mundo, pela criatura humana, é o mais triste reflexo
de uma sociedade que pensa bastar-se a si mesma. É o que presenciamos durantes
os dias sagrados quando bares abertos e carros de som, nem sequer, respeitam a devoção
dos que ainda tentam externar sua fé e sua gratidão ao amor divino que se
derrama da cruz do Redentor sobre todos os homens. A semana santa dos pagãos,
simplesmente, alarga, cada vez mais, o abismo interior do vácuo espiritual que
os consome numa vida sem sentido, sem Deus mesmo.
“Ó
Dulcíssimo Jesus, amado Redentor! Como ainda vivemos tão longe e distantes da
vida da graça que o Teu sacrifício na cruz quis presentear-nos! Quanto tempo
perdido em busca das migalhas mundanas que jamais preencherão os mais íntimos
desejos da alma que se desencontra no garimpo inconsistente de tanta
banalidade! Que o teu grito na cruz desperte nossa consciência para que se
aproxime mais da fonte de águas cristalinas que jorram para a vida eterna e que
brotam do seu lado aberto pela lança. Dá-nos a oportunidade de encontrar o
nosso devido lugar no mistério de tua eterna redenção”. Amém!