Se pegarmos
um dicionário de língua portuguesa, por mais simples que seja, e o abrirmos na
indicação da palavra “fênix”, facilmente, podemos encontrar o significado desse
vocábulo mítico com que preferi desabotoar o raciocínio que ora inicio. Assim,
é possível que o leitor, curioso e determinado em enriquecer o seu patrimônio
intelectual dos termos da língua portuguesa, a “última flor do Lácio, inculta e
bela”, encontre a seguinte definição: “ave mitológica que, segundo a tradição
egípcia, durava séculos e, queimada, renascia das cinzas”. Por comparação, o
mesmo termo poderia significar ou aludir a uma “pessoa ou coisa rara”. É, pois,
justamente, a uma “pessoa rara” que quero fazer menção, buscando no fundo da
memória, situações e encontros que me trazem reminiscências agradáveis de
alguém que foi e é, para mim, “a fênix que não renascerá das cinzas”: Dom
Luciano José Cabral Duarte, atualmente, Arcebispo emérito de Aracaju, já no
alto de seus oitenta e cinco anos. Por falar em idade, lembro-me de uma
expressão usada por um amigo seu, quando ele completou 60 anos: “Dom Luciano,
perigoso não é completar 60 anos, o grave é tornar-se sexagenário [...]”.
Embora espontâneo e fino, o calemburismo diserto, eloquente e profundo, parece bastante incisivo e
provocatório, mas foi recebido de modo bastante jocoso e não arredio, como os
laços de uma boa e sincera amizade podem favorecer e permitir. Contudo, um pôr
do sol se sobrepõe a outros e, agora, o sexagenário tornou-se octogenário porque “o tempo não para”.
No dia de
minha ordenação presbiteral, 21 de janeiro de 1998, em Carira-SE, no momento em
que me foi reservada a palavra, entre tantas outras partes do discurso de
agradecimento, estavam estas palavras referidas a Dom Luciano Duarte: “Dom
Luciano Duarte sempre esteve presente nos encontros vocacionais e na vida do
próprio Seminário aonde ia toda semana, a fim de nos levar seu apoio moral,
espiritual, vocacional, pois ele mesmo sabia, mais do que ninguém, que, como
tantas vezes ouvi de seus próprios lábios, ‘a vocação sacerdotal é uma corrida
contra os obstáculos’. Até onde lhe permitiram a lucidez de sua consciência e a
transparência de suas palavras, tão eficazes e edificantes no coração dos
seminaristas, em quem encontravam ecos profundos, Dom Luciano estava lá, firme,
presente, encorajador, brincalhão e, no entanto, consciente de seu papel de
pastor, também para com os seminaristas que, frágeis, muitas vezes se sentiam
desenraizados e inseguros, como ramos secos, presos à terra por um fiapo de
raiz, prestes a serem carregados por qualquer vento um pouco mais impetuoso, e
Dom Luciano se tornava, então, um apoio benevolente [...]”.
A despeito da
jactância fortemente apologética do que venho de afirmar, não está na minha
pretensão expositiva, dentro dos limites do conhecimento e da “convivência” que
tive com Dom Luciano, não apenas no Seminário, mas, igualmente, em tantos
outros fortes momentos de fecundidade espiritual e pastoral na Arquidiocese, ou
através de seus programas radiofônicos ou televisivos, fazer propriamente uma
apologia de sua pessoa. Pelo contrário, conservo a ideia de que quem se impõe
por si mesmo e pelos seus próprios méritos e virtudes não tem necessidade de
defensor, mas a luz de sua genialidade manifestava-se, voluntária e livre,
espontânea e desimpedida, sem obstáculos, qual claridade intensa e ofuscante,
que se obriga a ser aceita por seu peculiar brilho, ao menos, por quem não
recusa aceitar a evidência da claridade da luz. Também, não o faço por um
saudosismo sentimental e melancólico da languidez de quem se abate pelo passado
que se foi, como poderia deixar transparecer. Faço-o pelo reconhecimento e pela
gratidão pessoal que sinto por tudo o que pude usufruir de seus ensinamentos,
que me inspiraram, entre tantas outras disposições afetivas, um sincero e
coerente amor pela minha vocação e pela “Igreja de Jesus, de Maria e de Pedro”.
As evocações
presentes neste “memorandum” nascem no ano de 1984, quando comecei a participar
dos encontros vocacionais no Seminário Menor “Sagrado Coração de Jesus”, em
Aracaju, não me esquecendo de que Dom Luciano sempre esteve presente nos
encontros, sobretudo, para encorajar os vocacionados à perseverança na “corrida
contra os obstáculos”, como tão bem
definia a vocação sacerdotal. Nos encontros vocacionais, a reflexão e o
“teatro” improvisado do Evangelho do domingo eram um dos momentos mais ricos de
espiritualidade, mas, também, de igual modo, de inolvidável divertimento.
Alguns vocacionados, “voluntários”, eram convidados a assumir o papel dos
personagens do Evangelho, e a dificuldade do não conhecimento do texto de cor,
de memória, era superada pelo mesmo Dom Luciano que, além de ser o “diretor” do
teatro, despreparado, era, concomitantemente, a voz grave e acentuada na consciência
de todos os “atores”.
Na verdade,
dada a ignorância bíblica da narração do texto sagrado por parte dos
vocacionados, ele era o único que o tinha registrado na memória de suas
recordações imediatas e rapidamente recuperadas para as necessidades do momento.
Mas isso não era suficiente. Cada “ator” deveria saber dar vida ao texto, e
conveniente dramatização ao acontecimento era necessária. Por conseguinte, era
o diretor do teatro quem inspirava e facilitava, com competência e dinamismo,
qual deveria ser o espírito e o ânimo de quem se expressava no palco estranho
de sua singular timidez, e com a qual não parecia muito afeito. Penso que o
diretor se divertia muito com seus insipientes atores!. Outro fato curioso era
o espírito de emulação, de competição, que ele tentava insuflar nos
vocacionados, fazendo questão de saber, a cada encontro, o número exato de
vocacionados de cada cidade, anunciando-o, imediatamente, na “Hora Católica”. Com
que entusiasmo nós ouvíamos a trilha sonora “Allegro”, da sinfonia de Beethoven, assumida pela sua “Hora
Católica”!
Naqueles idos
de 1984 a 1986, geralmente, Itabaiana se apresentava com o número mais
significante e expressivo. Era um “celeiro de vocações”. Quando ele percebia
que outras cidades faziam concorrência a Itabaiana, então, ele incitava,
jocosamente, a busca simultânea de vantagens na disputa dos números. Na
brincadeira da provocação, no melhor e sadio sentido do termo, ele não queria
que a quantidade dos vocacionados da aludida cidade diminuísse. Certa vez,
quando Frei Paulo se apresentou vitoriosa, Dom Luciano gritou: “Itabaiana,
vamos ver!” Como que para expressar o sentimento de que tal localidade deveria
permanecer na frente. Três anos passados na assídua frequência aos encontros
vocacionais, chega o momento em que deveria ingressar no Seminário Menor
“Sagrado Coração de Jesus”, o que aconteceu no dia 14 de fevereiro de 1987.
O ingresso no
Seminário Menor foi a incipiência lógica e natural de um contato mais frequente
e salutar com o Arcebispo, Dom Luciano Duarte, que sempre teve o Seminário e o
amor pelas vocações como um dos mais fortes latejos de suas preocupações permanentes
no pastoreio da Arquidiocese. Não foi em vão ou sem motivo que ele pediu que
escrevessem, bem legível e estampada, a frase do Concílio Vaticano II: “O
Seminário é o coração de uma Diocese”. Sendo, pois, o ‘coração’ da
Arquidiocese, o Seminário precisava ser bem cuidado, bem tratado, e ele o fez
com muita disposição e benemerência. Claro que quando dizemos Seminário,
devemos pensar, incontinenti, nos seminaristas. Para que servem as estruturas
físicas e materiais de concreto armado, ainda se arquitetonicamente belas, se
não existe quem as habite? Não são os seminaristas a razão de ser do Seminário?
Pois bem, Dom Luciano era muito bem consciente disto, e o demonstrava com sua
presença hebdomadária no convívio dos seminaristas.