Prosas de um sábio professor
Referindo-me
a Dom Luciano Duarte, lembro-me de que, naquele ano de 1987, a Conferência
Episcopal dos Bispos do Brasil, havia decidido a instituição do chamado “ano
propedêutico”, visando uma melhor preparação intelectual dos candidatos ao
sacerdócio, antes de ingressarem nos estudos científicos do, então, dito
“Segundo Grau”. A inferência dessa inovação foi fruto da constatação do baixo
nível de rendimento escolar dos vocacionados que entravam no Seminário – espero
que, hoje, eles tenham melhorado nesse aspecto. Éramos considerados “tábula
rasa”, alunos de precária escolaridade, de uma memória limpa como uma “página
branca”, como árvores secas e sem os devidos frutos da maturação sistemática do
saber. Consequentemente, num esforço ininterrupto de remediar a situação, foram
convidados por Dom Luciano professores de refinadas condições intelectuais,
alguns dos quais com especialização feita na Europa, como, por exemplo, na
França, na Itália, na Alemanha e em Portugal, para nos ajudarem no
aprofundamento dos vários ramos do conhecimento. Durante esse ano de parada
obrigatória, estudamos Latim, Francês, Português, História da Igreja, Bíblia,
Espiritualidade e História do Brasil. Faltou o ensino de matemática, química e
física, tão exigentes como foram no ano seguinte no Colégio Arquidiocesano de
Aracaju. Todas as aulas eram ministradas no recinto do próprio Seminário.
Embora a insistência no aspecto da intelectualidade parecesse frenética e
delirante, divertíamo-nos bastante, sobretudo, quando Dom Luciano dizia ao
Reitor que, no final do ano, quem não estivesse “trêmulo” de tanto estudar,
deveria ser mandado embora. E ele mesmo se encarregaria de fazer o teste no
encerramento do ano letivo, solicitando que os seminaristas estendessem os
braços. Tudo não passava de um feliz e oportuno expediente recreativo, no tom
brincalhão e solene com que ele falava de coisas sérias, como, por exemplo, a
importância de estudar, e estudar muito. Claro que a experiência nunca foi
feita, mas tenho certeza de que, no ímpeto involuntário de apenas imaginar a
concretude do ato, todos seríamos, incondicionalmente, aprovados, pois, diante
dele, a tremedeira era uma convulsão tão desintencional quanto indomável como a
de quem já se assustou quando surpreendido com a presença de uma serpente
agitando-se em seu derredor. Tranquilizar-se, de imediato, mesmo depois do
desaparecimento do anfíbio, parece-me impossível. Ainda mais, quando ele fazia
as sabatinas repentinas com perguntas para as quais nunca conseguíamos
“adivinhar” as respostas. Realmente, diante do estágio da dormência
cognoscitiva em que vivíamos, tinha de ser um suado vaticínio, sem sucesso de
coincidência com a expectativa da réplica. O saber não é uma adivinhação. O
saber é uma conquista exigente e imperativa pela qual temos de “queimar as
pestanas”, como ele recordava. Mas, se alguém respondesse bem, era notável sua
satisfação, enquanto o elogio era direcionado ao professor da disciplina:
“Quando encontrar o seu professor de geografia, diga-lhe que o parabenizo!” –
Era, implacavelmente, virulento e terrível! Seu otimismo era tal que, um dia,
ele levou ao Seminário cinco Códigos do Direito Canônico, em latim, a fim de
que aprendêssemos a língua, lendo-os. Outra vez, obrigou-nos a decorar todo o
Evangelho de Marcos: começo, meio e fim; onde começa e onde termina cada parte,
capítulo e versículo; personagens, onde Jesus se encontrava, se no Norte ou no
Sul... “Na próxima semana, eu quero tudo isto na ponta da língua”. Ficamos
aflitos e fizemos o possível para a memorização, mas ele, graças a Deus, nunca
mais tocou no assunto. Creio que, a longo prazo, seu intento não foi debalde.
Enquanto outros tentavam incutir ou impor nos seminaristas a insegurança da
própria mediocridade, como muitos ainda hoje fazem no seio da Igreja, talvez,
por preguiça ou incapacidade de elevação ou ascensão aos páramos mais altos da
autoformação, era como se ele desejasse ver reverberando nos futuros sacerdotes
o reflexo límpido de sua luminosa “sabedoria acumulada”. Quantos não nos
sentíamos motivados à leitura, à investigação curiosa, qual cultores do
patrimônio da arte da informação, ao acesso sólido das fontes do saber? Assim,
de maneira magistral e empolgante, tentava despertar-nos da hibernação da
ignorância, quase invencível, e do entorpecimento letárgico da nossa falta de
instrução. Do bojo de suas comparações riscadas a fogo, saiu uma sobre a
lentidão da faculdade de aprender, e dizia: “A inteligência humana é como uma
carroça de burro puxada por um burro bem velho [...]”. Santo Agostinho já dizia
que a “ignorância é a mãe da admiração”, e esta, a admiração, era a única reação
segura, não constrangida, de nossos olhos absortos na procedência irrefreável
da nascente cuja bela linguagem se derramava. Foi um tempo bom e muito rico de
tantos ensinamentos. Sua presença entre nós trazia-nos um oásis à secura
sufocante dos dias lentos do Seminário, quebrando a monotonia lassa que a
rotina tediosa nos impunha. Agradeço que ele tenha tentado tirar-nos do sono e
da inércia da acomodação passiva da inteligência para nos ajudar na aquisição
progressiva da criatividade em busca do crescimento intelectivo. Eis por que,
entre outras motivações, julgo que ele não merece ser esquecido e manifesto,
tempestivamente, a gratidão solícita de sua memória.
As visitas ao
Seminário Menor aconteciam, catolicamente, toda semana. Quem não se lembra das
buzinadas prolongadas, quando chegava, e estávamos na dispersão da ansiedade e
da aceleração desregulada, quando saía? Ao ouvirmos o barulho, a correria era
certa, cada um procurando uma cadeira, não muito à frente, por causa das
perguntas surgidas ao acaso e que ele as desferia aleatoriamente: “Você, o que
significa [...]?” Naquela hora, vinha um “branco” à mente, que a nossa família
não merecia. Todavia, dele recebíamos formação cultural sobre múltiplos
assuntos, e tudo era embalado pela hilariante descontração, ou seja, que no
meio da exposição narrativa de seus discursos, sempre havia uma luz acesa e
projetada para o lado humorístico e cômico de alguma provocante e sábia
digressão. Para clarear um pouco essa ideia, gostaria de ilustrar determinadas
situações com as quais nos entretínhamos com muitas risadas. Quando alguma
coisa não andava bem, uma de suas reações, mais ou menos irrefletidas, era a de
bater a mão direita na testa e gritar: “Pelo amor de Deus!” Ao mesmo tempo,
manifestava a dúvida em relação à nossa capacidade de discernimento entre o que
era realmente sério e o que era simplesmente a oportunidade de um desvio
relaxante para, depois, retomar o caminho normal da seriedade da argumentação.
Essa inquietação provinha de um fato que ele nos contou, mais ou menos, com
estas palavras: “Que não aconteça com vocês o que se sucedeu a uma freira. Eu
estava fazendo uma palestra para as freiras e, à certa altura, eu me saí com
esta: a situação financeira da Arquidiocese não vai muito bem. Hoje, parece que
virou moda assalto a bancos e é, justamente, o que eu estou pensando em fazer,
e, como vocês sabem, sempre está presente uma loura que ajuda os assaltantes.
Então, vou convidar uma freira loura, sem hábito – era o tempo em que elas eram
“habitadas” –, para me ajudar e, também, vamos levar o Pe. Osvaldo, que tinha
sofrido um derrame cerebral e estava paralítico. Ao término da conferência, uma
freira me procurou meio aflita: ‘Dom Luciano, é verdade que o senhor tem
coragem de assaltar um banco?’” Ao que ele respondeu: “Irmã, pelo amor de Deus!
Tenha juízo, coloque a cabeça no lugar. Não sabe que eu não iria assaltar um
banco! Ainda mais, além de carregar o saco de dinheiro, tínhamos de transportar
o Pe. Osvaldo nas costas!”
Rir com
gracejos arrancados de sua criatividade era uma maneira de ajudar-nos a ver a
vida com um pouco mais de espontaneidade e menos rigor pelas contrariedades que
ela nos apresenta.