domingo, 18 de janeiro de 2015

Prosas de um sábio professor



Prosas de um sábio professor


Referindo-me a Dom Luciano Duarte, lembro-me de que, naquele ano de 1987, a Conferência Episcopal dos Bispos do Brasil, havia decidido a instituição do chamado “ano propedêutico”, visando uma melhor preparação intelectual dos candidatos ao sacerdócio, antes de ingressarem nos estudos científicos do, então, dito “Segundo Grau”. A inferência dessa inovação foi fruto da constatação do baixo nível de rendimento escolar dos vocacionados que entravam no Seminário – espero que, hoje, eles tenham melhorado nesse aspecto. Éramos considerados “tábula rasa”, alunos de precária escolaridade, de uma memória limpa como uma “página branca”, como árvores secas e sem os devidos frutos da maturação sistemática do saber. Consequentemente, num esforço ininterrupto de remediar a situação, foram convidados por Dom Luciano professores de refinadas condições intelectuais, alguns dos quais com especialização feita na Europa, como, por exemplo, na França, na Itália, na Alemanha e em Portugal, para nos ajudarem no aprofundamento dos vários ramos do conhecimento. Durante esse ano de parada obrigatória, estudamos Latim, Francês, Português, História da Igreja, Bíblia, Espiritualidade e História do Brasil. Faltou o ensino de matemática, química e física, tão exigentes como foram no ano seguinte no Colégio Arquidiocesano de Aracaju. Todas as aulas eram ministradas no recinto do próprio Seminário. Embora a insistência no aspecto da intelectualidade parecesse frenética e delirante, divertíamo-nos bastante, sobretudo, quando Dom Luciano dizia ao Reitor que, no final do ano, quem não estivesse “trêmulo” de tanto estudar, deveria ser mandado embora. E ele mesmo se encarregaria de fazer o teste no encerramento do ano letivo, solicitando que os seminaristas estendessem os braços. Tudo não passava de um feliz e oportuno expediente recreativo, no tom brincalhão e solene com que ele falava de coisas sérias, como, por exemplo, a importância de estudar, e estudar muito. Claro que a experiência nunca foi feita, mas tenho certeza de que, no ímpeto involuntário de apenas imaginar a concretude do ato, todos seríamos, incondicionalmente, aprovados, pois, diante dele, a tremedeira era uma convulsão tão desintencional quanto indomável como a de quem já se assustou quando surpreendido com a presença de uma serpente agitando-se em seu derredor. Tranquilizar-se, de imediato, mesmo depois do desaparecimento do anfíbio, parece-me impossível. Ainda mais, quando ele fazia as sabatinas repentinas com perguntas para as quais nunca conseguíamos “adivinhar” as respostas. Realmente, diante do estágio da dormência cognoscitiva em que vivíamos, tinha de ser um suado vaticínio, sem sucesso de coincidência com a expectativa da réplica. O saber não é uma adivinhação. O saber é uma conquista exigente e imperativa pela qual temos de “queimar as pestanas”, como ele recordava. Mas, se alguém respondesse bem, era notável sua satisfação, enquanto o elogio era direcionado ao professor da disciplina: “Quando encontrar o seu professor de geografia, diga-lhe que o parabenizo!” – Era, implacavelmente, virulento e terrível! Seu otimismo era tal que, um dia, ele levou ao Seminário cinco Códigos do Direito Canônico, em latim, a fim de que aprendêssemos a língua, lendo-os. Outra vez, obrigou-nos a decorar todo o Evangelho de Marcos: começo, meio e fim; onde começa e onde termina cada parte, capítulo e versículo; personagens, onde Jesus se encontrava, se no Norte ou no Sul... “Na próxima semana, eu quero tudo isto na ponta da língua”. Ficamos aflitos e fizemos o possível para a memorização, mas ele, graças a Deus, nunca mais tocou no assunto. Creio que, a longo prazo, seu intento não foi debalde. Enquanto outros tentavam incutir ou impor nos seminaristas a insegurança da própria mediocridade, como muitos ainda hoje fazem no seio da Igreja, talvez, por preguiça ou incapacidade de elevação ou ascensão aos páramos mais altos da autoformação, era como se ele desejasse ver reverberando nos futuros sacerdotes o reflexo límpido de sua luminosa “sabedoria acumulada”. Quantos não nos sentíamos motivados à leitura, à investigação curiosa, qual cultores do patrimônio da arte da informação, ao acesso sólido das fontes do saber? Assim, de maneira magistral e empolgante, tentava despertar-nos da hibernação da ignorância, quase invencível, e do entorpecimento letárgico da nossa falta de instrução. Do bojo de suas comparações riscadas a fogo, saiu uma sobre a lentidão da faculdade de aprender, e dizia: “A inteligência humana é como uma carroça de burro puxada por um burro bem velho [...]”. Santo Agostinho já dizia que a “ignorância é a mãe da admiração”, e esta, a admiração, era a única reação segura, não constrangida, de nossos olhos absortos na procedência irrefreável da nascente cuja bela linguagem se derramava. Foi um tempo bom e muito rico de tantos ensinamentos. Sua presença entre nós trazia-nos um oásis à secura sufocante dos dias lentos do Seminário, quebrando a monotonia lassa que a rotina tediosa nos impunha. Agradeço que ele tenha tentado tirar-nos do sono e da inércia da acomodação passiva da inteligência para nos ajudar na aquisição progressiva da criatividade em busca do crescimento intelectivo. Eis por que, entre outras motivações, julgo que ele não merece ser esquecido e manifesto, tempestivamente, a gratidão solícita de sua memória.
As visitas ao Seminário Menor aconteciam, catolicamente, toda semana. Quem não se lembra das buzinadas prolongadas, quando chegava, e estávamos na dispersão da ansiedade e da aceleração desregulada, quando saía? Ao ouvirmos o barulho, a correria era certa, cada um procurando uma cadeira, não muito à frente, por causa das perguntas surgidas ao acaso e que ele as desferia aleatoriamente: “Você, o que significa [...]?” Naquela hora, vinha um “branco” à mente, que a nossa família não merecia. Todavia, dele recebíamos formação cultural sobre múltiplos assuntos, e tudo era embalado pela hilariante descontração, ou seja, que no meio da exposição narrativa de seus discursos, sempre havia uma luz acesa e projetada para o lado humorístico e cômico de alguma provocante e sábia digressão. Para clarear um pouco essa ideia, gostaria de ilustrar determinadas situações com as quais nos entretínhamos com muitas risadas. Quando alguma coisa não andava bem, uma de suas reações, mais ou menos irrefletidas, era a de bater a mão direita na testa e gritar: “Pelo amor de Deus!” Ao mesmo tempo, manifestava a dúvida em relação à nossa capacidade de discernimento entre o que era realmente sério e o que era simplesmente a oportunidade de um desvio relaxante para, depois, retomar o caminho normal da seriedade da argumentação. Essa inquietação provinha de um fato que ele nos contou, mais ou menos, com estas palavras: “Que não aconteça com vocês o que se sucedeu a uma freira. Eu estava fazendo uma palestra para as freiras e, à certa altura, eu me saí com esta: a situação financeira da Arquidiocese não vai muito bem. Hoje, parece que virou moda assalto a bancos e é, justamente, o que eu estou pensando em fazer, e, como vocês sabem, sempre está presente uma loura que ajuda os assaltantes. Então, vou convidar uma freira loura, sem hábito – era o tempo em que elas eram “habitadas” –, para me ajudar e, também, vamos levar o Pe. Osvaldo, que tinha sofrido um derrame cerebral e estava paralítico. Ao término da conferência, uma freira me procurou meio aflita: ‘Dom Luciano, é verdade que o senhor tem coragem de assaltar um banco?’” Ao que ele respondeu: “Irmã, pelo amor de Deus! Tenha juízo, coloque a cabeça no lugar. Não sabe que eu não iria assaltar um banco! Ainda mais, além de carregar o saco de dinheiro, tínhamos de transportar o Pe. Osvaldo nas costas!”
Rir com gracejos arrancados de sua criatividade era uma maneira de ajudar-nos a ver a vida com um pouco mais de espontaneidade e menos rigor pelas contrariedades que ela nos apresenta.