Dom Luciano Duarte: Noventa anos
nas páginas da História de Sergipe.
Diretamente de Jerusalém, trazendo a
lume a memória de Dom Luciano Duarte, Arcebispo Emérito de Aracaju, nas páginas
da História de Sergipe, gostaria de fazer reminiscências de alguns momentos em
que tivemos a graça de sua pessoa no Seminário Menor de Aracaju, lá pelos idos
da década de oitenta.
Qual bom
pedagogo que era, ele nos ensinou que, “bom pedagogo” nunca fala assentado.
Essa postura, de alguma maneira, arrefece e amortece a expectativa do
auditório. Então, quando alguém vinha interpelado por alguma pergunta, ele
dizia: “Levante-se, fique de pé, vire-se para seus colegas e fale!” – “Falar o
quê?”. Trago à mente a explicação filosófica, que ele quis de um seminarista,
do seguinte pensamento de Henri Bérgson, um de seus filósofos franceses mais
preferidos: “A alma espiritual do homem é um longo período, uma longa frase,
com ponto, dois pontos, ponto e vírgula, reticências, mas, que não tem, jamais,
um ponto final [...]”. O seminarista, certamente muito emocionado ou tremendo
de nervosismo, levantou-se, virou-se para os demais companheiros e começou a
girar o dedo indicador direito em derredor da cabeça, como que para auxiliar a
elaboração das ideias, e disse, entaramelando e tartamudeando: “é, é, é, é
[...]”. A mão continuava girando e o pensamento, que parecia vir à manivela, tinha
desaparecido. No auge da enrubescida aflição, Dom Luciano nos questionou: “E,
então, vamos ajudar o nosso amigo?” A descontração foi geral: “Vamos, Dom
Luciano!” Nossa ajuda era tão somente
a de um espectador, de igual modo, impotente. Foi quando Dom Luciano
sugeriu-lhe: “Repita comigo: ‘o
filósofo francês, Henri Bérgson, com este pensamento, quis dizer o seguinte
[...]”. E a explanação, repetida pela vítima, precipitou-se nas minúcias
engenhosas da literatura astuciosa que só a habilidade de um bom e bem
preparado filósofo poderia entrelaçar nas teias improvisadas da artimanha
irrefutável de seu raciocínio, tão surpreendente quanto convincente.
Terminada a
explicação, outra pergunta voltou ferina: “E, então, vocês gostaram da
explicação do nosso amigo?” E a aclamação, uníssona, subiu num grito do meio
dos seminaristas: “Sim, Dom Luciano” . E ele acrescentou: “Palmas para ele!” A
festa foi maravilhosa. Porém, houve um detalhe que só ele percebeu e nos tornou
conscientes: “Quem é aplaudido não se aplaude porque é uma gravíssima falta de
educação. Entenderam?” E respondemos que sim, “entendemos”. Porém, ele sempre
nos fazia cair nos artifícios de nossas próprias contradições. “Muito bem!
Então, palmas para vocês!” A esparrela foi inevitável. Todos aplaudimos e
demonstramos que não tínhamos entendido, praticamente, nada. Como habitualmente
fazia, ele bateu a mão na testa e deu boas risadas às nossas custas. O melhor
de tudo isso era que o seu jeito lúdico de ensinar verdades simples através do
contundente estilo da ironia crítica e humorística, sem dispensar a virulência
proporcionada pela ocasião, não feria nem ofendia ninguém. Pelo contrário, quem
nos jogava no formigueiro do interrogatório, era o mesmo que nos livrava das
formigas inconsequentes das respostas. Vez por outra, ele trazia um de seus
livros, escolhia um texto e pedia que um seminarista lesse e, depois, fizesse a
interpretação do texto. Do livro “Índia a voo de Pássaro”, escolheu o relato de
seu encontro com o Patriarca Atenágoras I, de Istambul, antiga Constantinopla.
Tratava-se de uma entrevista que lhe tinha sido concedida pelo referido
Patriarca. Acabada a leitura, eis que o seminarista não se lembrava, nem
sequer, do nome do indivíduo. Mas a demência, a deterioração mental, era comum
a todos. Um nome completamente estranho e escutado pela primeira vez, quem se
lembraria? Nem mesmo eu. Vindo em auxílio, Dom Luciano, mais uma vez,
questionou: “Vamos ajudar o nosso amigo?” Claro: “Vamos, Dom Luciano!” E a
pilhéria costumeira, no bom sentido do termo, outra vez, ocupava a cena. O que
fez Dom Luciano? Começou a declinar os nomes das autoridades políticas do
Estado de Sergipe, para ver se o nome coincidia, ou não, com o da leitura
feita: “Era fulano de tal? Era cicrano? Era beltrano?” As repostas eram,
desconfiadamente, sempre negativas. Quando Dom Luciano quis saber se era Viana
de Assis, o vice-prefeito de Aracaju, a resposta foi imediata: “Sim, Dom
Luciano!”. Querem saber qual foi a reação? Batendo a mão na testa, ei-la: “Pelo
amor de Deus!”
E, quando ele
começou a insistir para que fossem adquiridos dois cães para o Seminário, disse
ao Reitor: “Pe. Raimundo Cruz [hoje, in
memoriam, ele foi o primeiro padre que Dom Luciano ordenou] eu quero que
encontrem dois cachorros para o Seminário: um vira-lata e um outro, mais
civilizado.” Toda semana perguntava pelos cachorros, que ainda não haviam sido
encontrados. Já meio aborrecido, uma vez, disse imperativamente: “Da próxima
semana, não passa. Eu quero ver esses cães.” A caça foi intensificada e, até que,
enfim, foi encontrado o animal, tido como “o melhor amigo do homem”. Chamava-se
‘balão’, que, de amigo, não tinha nada [sempre tive e tenho medo de cachorro].
Semana seguinte falou que, depois do jantar, gostaria de ver o cachorro. E,
assim, aconteceu. Terminado o repasto, dirigiu-se à cozinha e, ali, esperava,
em pé, com as mãos sobrepostas, que lhe trouxessem o ilustre desconhecido. Com
a delonga da chegada, ele indagou: “Mas cadê esse cachorro? Cachorro importante
esse! Faz até o arcebispo esperar!” Diante do dito espirituoso, mesmo o
cachorro teria achado graça se estivesse presente.
Com vontade
de estar, exclusivamente, para os seminaristas, pedia ao Reitor que desligasse
a campainha e o telefone para que não fôssemos incomodados. Um dia, depois de
muito gritarem e insistirem, pessoas de uma equipe de jornalistas e repórteres,
conseguiram fazer seu rumor chegar até à sala de conferência. E Dom Luciano
disse ao Reitor: “Vá ver quem é!” Uma jornalista queria fazer-lhe uma
entrevista, cujo assunto era sobre a Constituição Brasileira, que estava por
ser homologada. Ele pediu licença, retirou-se a uma sala ao lado e concedeu-lhe
a entrevista. Depois, fez-nos este comentário: “Muito bem. Quando vocês forem
convidados para conceder uma entrevista, não se recusem porque fica mal para
vocês. Depois, eles noticiam que ‘fulano foi convidado para conceder uma
entrevista e se recusou’. É melhor aceitar e aproveitar a ocasião para mandar
seus recados. A pergunta que ela me fez eu não quis responder: ‘a esta pergunta,
eu não respondo’. Então, ela me perguntou: ‘O que o senhor quer que eu
pergunte?’ ‘Peça-me para falar sobre dois pontos positivos e dois negativos da
Constituição, pois tudo o que é humano tem o seu lado positivo e negativo
[...]. É, de vez em quando, devemos ajudar nossos irmãos menos inteligentes”.
Não podíamos deixar de conferir a entrevista pela televisão. Na verdade, os
encontros com Dom Luciano eram, ao mesmo tempo, um momento de partilha de sua
vida, de suas viagens, de seus estudos, de seus encontros, de suas preocupações
com a Igreja do Brasil e do mundo. Todos sabemos – e ele nunca escondeu de
ninguém, nem mesmo do episcopado brasileiro, o qual ele, muitas vezes, deixou-o
furioso com suas argumentações –, que, mormente, quando clareavam os lampejos
neuróticos da “rebeldia contra Roma”, ele tomava posições severas e corajosas
contra os ditos ‘teólogos e bispos católicos’ que se julgavam donos do
patrimônio da moral e da doutrina católica, quando, não, do próprio “depositum fidei” – “depósito da fé”.
Quanta presunção! Quem não leu muitos de seus artigos no “Estadão” e na “Folha
de São Paulo”? E não era um problema isolado, isto é, apenas do Brasil ou da
América Latina, que ferviam como “um barril de pólvora”.
Naqueles anos
turbulentos da situação delicada e tensa das décadas de 70 e 80, o famigerado e
temido cardeal Ratzinger, depois, o amável Papa Bento XVI, cuja eleição nada
mais é do que uma ratificação patente e serena de que ele estava no caminho
certo, remando contra corrente em meio ao turbilhão de críticas e censuras
vindas, também, da parte daqueles que mais deveriam colaborar e ajudá-lo, como
de alguns cardeais da Cúria Romana; naquela época, ele confessava
impressionado: “Eu fico cada vez mais admirado com a habilidade dos teólogos
que conseguem defender justamente o oposto do que se encontra claramente
escrito nos documentos do Magistério. E, no entanto, aquelas deturpações são
apresentadas, através de hábeis artifícios dialéticos, como o ‘verdadeiro’
significado do documento em questão”. Hoje, muitos anos passados, compreendo
melhor o significado da insistência de Dom Luciano a respeito da necessidade e
da importância da leitura sadia, segura, e da obrigação moral da capacidade de
discernimento entre o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, o conforme e o
contra. A objetividade de sua determinação e decisão, diante de certas
questões, estendia-se, também, à dinâmica concreta do quotidiano do Seminário.
Que o
arcebispo emérito, agora nonagenário, Dom Luciano Duarte, certamente flanqueado
por amigos e admiradores, possa permanecer no nosso meio por muitos anos,
incidindo sobre a tênue fímbria de nossa memória a grandeza de seu espírito e a
perenidade de sua sabedoria humana e espiritual.