sábado, 21 de março de 2015

A lucidez espiritual de Davi

A Lucidez espiritual de Davi

 

A história bíblica sobre Davi fala pessoalmente à consciência de todos os homens e mulheres de todos os tempos e épocas. Fala, também, de modo direto, sem desculpas ardilosas, à nossa própria consciência. Como diria, a minha professora de Sagrada Escritura da Gregoriana, em Roma, Bruna Costacurta, o pecado não cessa enquanto não for confessado. Sua espiral maligna desenvolve-se, implacavelmente, se não for detida no refúgio da lucidez espiritual do desejo sincero de conversão. Assim, o pecado de Davi começa a manifestar-se por meio da evidência de uma típica dimensão: a irresponsabilidade. Com efeito, os atos humanos, uma vez colocados na esteira do agir, permanecem lá. Não é possível voltar atrás ou apagá-los. Se forem atos perversos, o que se pode fazer é modificá-los, limitar-lhes os efeitos, mas o que foi feito permanece, e o homem é constrangido a enfrentar aquela realidade, mesmo se quisesse esquecê-la ou eliminá-la da própria vida. Se não reconhecemos diante de Deus os nossos pecados, não poderemos permitir que Ele refaça nosso caminho interior, reorientando para Ele toda a nossa vida. Mas é preciso que o façamos, com calma e serenidade, com espírito de confiança e abandono Àquele que nos conhece no mais profundo de nossas entranhas e no mais oculto de nossas dobras espirituais. Como já havia intuído Santo Agostinho: “Deus está mais íntimo de nós do que nós de nós mesmos!”.
Quando pensamos que ninguém vigia as nossas ações, Deus está vinte quatro horas no ar, talvez rindo das imbecilidades que cometemos no quarto escuro de nossa personalidade maquiavélica e astuciosa. Na Bíblia, encontramos muitas citações quanto ao olhar divino sobre o palco aberto do universo de nossas ações suspeitas, também flagradas pela luz inquieta e bruxuleante de nossa própria consciência. O belíssimo e comovente Salmo 138 revela-nos a grandeza de Deus que nos invade, misteriosamente, sem que nos demos conta nem o saibamos como. Parece até assustador a ideia de imaginar que Ele vela, de modo ininterrupto, sobre cada rasgo inconsciente e teimoso de toda a nossa existência: “Iahweh, tu me sondas e conheces: conheces meu sentar e meu levantar, de longe penetras o meu pensamento; examinas meu andar e meu deitar, meus caminhos todos são familiares a Ti” (Sl 138, 1-3). De fato: “É um saber maravilhoso, e me ultrapassa, é alto demais: não posso atingi-lo” (v. 6). Tomado por essa consciência da onipresença do Altíssimo, não é que o salmista – ou cada um de nós, por nossa vez – deva viver amedrontado como se um fantasma perseguisse nossos atos para nos punir. Nada disso! É, justamente, o contrário, pois a literatura salmíca indica-nos que o olhar divino vem ao encontro de nossa vida para nos ensinar a andar em seus caminhos: “Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração! Prova-me, e conhece minhas preocupações. Vê se não ando por caminho fatal e conduze-me pelo caminho eterno” (Sl 138,24). Deus não se alegra com o caminho torto ou errado de nossas decisões e escolhas, mas quer ver-nos trilhando o caminho de seus mandamentos, que sinalizam a estrada do bem, da verdade e da vida eterna, que Ele nos propõe com tanto primor, delicadeza, excelência e zelo. Comentando o Salmo 138, Santo Agostinho sustenta o seguinte: “O homem se senta quando se humilha pela penitência; levanta-se, contudo, quando se ergue pela esperança da vida eterna. Por este motivo, diz outro salmo: ‘Erguei-vos após terdes estado sentados, vós que comeis o pão da dor’ (Sl 126,2). Os penitentes comem o pão da dor; eles cantam em outro salmo: ‘minhas lágrimas noite e dia se tornaram o meu pão (Sl 41,4). Que significa então: ‘Erguei-vos após terdes estado sentados?’ Não vos exalteis, se não tiverdes sido humilhados. Muitos, de fato, querem erguer-se antes de terem estado sentados; querem parecer justos, antes de se confessarem pecadores”.
Portanto, não estamos distantes do intento penitencial do início dos propósitos da reflexão. Destarte, o bonito poema de Santo Agostinho nos lembra: “Quero recordar as minhas torpezas passadas, as corrupções de minha alma, não porque as ame, ao contrário, para te amar, ó Deus. É por amor do teu amor que retorno ao passado, percorrendo os antigos caminhos dos meus graves erros. A recordação é amarga, mas espero sentir tua doçura, doçura que não engana, feliz e segura, e quero recompor minha unidade depois dos dilaceramentos que sofri quando me perdi em tantas bagatelas, ao afastar-me de tua Unidade”.
Se Davi tivesse conhecido o pensamento contrito de Santo Agostinho, com certeza, teria aprovado a disposição da alma que se abre, penitencialmente, ao perdão divino, cuja experiência de gratuidade, ele foi constrangido a fazer. No fundo, isso revela que todos os homens são iguais, independentemente do momento histórico em que eles aparecem sobre o horizonte da terra. Alguns séculos são mais sombrios do que outros. As possibilidades se multiplicam no avanço e desenvolvimento das ciências. No entanto, suas angústias e sofrimentos, suas desilusões e temores, seus medos e esperanças, tudo revela o terreno seco e desafiador de sua vontade de plenitude.
De modo consequente, o fato é que também nós experimentamos os mesmos anelos de realização, e, depois de nós, as gerações futuras, talvez, mais abastadas materialmente, sentirão as mesmas necessidades do espírito, que não repousará tranquilo enquanto durarem os dias empoeirados de sua existência pelas encruzilhadas do mundo. Somente Deus é a fonte que os saciará, definitivamente, em todas as suas dimensões mais íntimas de felicidade verdadeira, autêntica.